• Nenhum resultado encontrado

5. Da pluralidade medieval: relações entre direitos, costumes e teologia

5.1 O ius commune como categoria de análise

Não há palavra adequada que traduza o conceito de ius commune sem deixar uma série de mal-entendidos. Na concepção atual do direito, os termos direito comum, em português, e droit commun, em francês, referem-se ao direito que se aplica a toda a coletividade e envolve quaisquer relações jurídicas. Ele existe em oposição à noção de “direito especial”, que se concentra nas questões pertinentes a um único grupo social. O termo em inglês, common law, carrega ainda mais especificidade, pois é associado ao sistema jurídico específico dos países anglo-saxônicos, um sistema que se desenvolve a partir das decisões dos juízes nas cortes.

O ius commune medieval, por sua vez, tinha um sentido próprio. Ele estava relacionado à compreensão do período sobre a natureza e as funções do direito. Utilizar os termos atuais pode levar a transposições de sentidos inadequados ou criar simplificações que levam a compreensões estranhas ao mundo da legislação medieval. Portanto, para que não ocorramos nesses equívocos, optamos por manter ius commune em nossa explanação.

445 PENNINGTON, K. Learner Law, Droit Savant, Gelehrtes Recht: The Tiranny of a Concept. In: Syracuse

Journal of International Law and Commerce. n. 20, 1994, p. 205.

446 HARTMANN, W.; PENNINGTON, K. (eds). The History of Medieval Canon Law in the Classical

Period, 1140-1234. From Gratian to the Decretals of Pope Gregory IX. Washington DC: The Catholic University of America Press, 2008, p.VII. Essa é uma das definições possíveis do ius commune. Procuraremos demonstrar que o conceito de ius commune também é mútliplo e variável.

O termo ius commune já aparecia na documentação jurídica medieval e era interpretado a partir das glosas de Irnério e Acúrsio ao Digesto. Em um sentido restrito, o ius

commune era o direito romano a partir de Justiniano, comentado e aplicável ao conjunto da

sociedade. 447 A partir do desenvolvimento do direito canônico e dos estudos jurídicos no

contexto das universidades, o termo ius commune passou a ser utilizado para significar o

“amálgama do direito canônico com o direito civil romano”. 448

Desde meados do século XII, muitas vezes optou-se por chamar os juristas de

doctores utriusque iuris, “doutores em ambos os direitos”. Grandes civilistas – comentadores

do direito romano – também escreveram comentários sobre direito canônico, como era o caso de Baldo de Ubaldo (1327-1400). Os canonistas também precisavam conhecer o direito romano, uma vez que ele era aplicado nas cortes eclesiásticas quando as fontes de direito canônico não ofereciam uma solução.

Entretanto, assim como no caso do conceito de iurisdictio, não havia grande definição entre os juristas sobre o escopo desse conceito. O historiador James Brundage identifica ao menos cinco sentidos atribuídos ao termo ius commune a partir das fontes: direito natural, ius gentium, o Corpus de Justiniano, os cânones da Igreja e, a partir do século

XIII, o direito romano-canônico das universidades. 449 Com o desenvolvimento acelerado das

escolas de direito, uma possível compreensão de divisão entre os dois direitos – o romano e o canônico – tornou-se cada vez menos clara, com um sistema alimentando o outro e vice- versa.

A associação do ius commune com o direito das universidades foi adotada amplamente pela historiografia. Buscou-se, dessa forma, traduzir o conceito equivalendo-o a um direito simplesmente acadêmico: learned law, droit-savant, gelehrts Recht. A escolha dos termos traz um problema sério que é a interpretação de que o ius commune é um direito utilizado apenas nas escolas, como uma abstração de mestres que pouco ou nada tinham a ver com a prática do direito nas cortes. A consequência imediata dessa visão foi que o direito medieval, visto de forma apenas acadêmica, seria irrelevante para a compreensão da história

medieval em seus aspectos sociais, políticos ou culturais. 450 Acreditar nessa interpretação

447 MASSAÚ, G. C. Ius Commune: uma manifestação pluralista na idade média? In: Revista Sociologia

Jurídica. N. 06 - Janeiro-Junho/2008.

448 BRUNDAGE, J. The medieval origins of the legal profession: canonists, civilians, and courts. Chicago:

Chigago University Press, 2008, p. 76.

449 Id. The profession and practice of medieval Canon Law. Aldershot: Ashgate, 2008, pp. 238-239.

450 Para uma análise detalhada dos problemas em torno do conceito de learned law, ver PENNINGTON. K.

Learner Law, Droit Savant, Gelehrtes Recht: The Tiranny of a Concept. In: Syracuse Journal of International Law and Commerce. n. 20, 1994, p. 105-120.

significa desconsiderar a compreensão medieval do ius commune e, por conseguinte, perder de vista os princípios orientadores do direito medieval.

O ius commune e suas normas não eram exercícios acadêmicos e intelectuais estéreis confinados às salas de aulas. Suas normas formaram a base da jurisprudência medieval e podem ser consideradas “os equivalentes medievais dos preceitos de ética e moral

Cristã que os teólogos medievais desenvolveram durante a Idade Média”. 451 Como

demonstramos anteriormente, a Summa de Hostiensis parece ter sido pensada ao mesmo tempo como um manual de estudo e em sua aplicação prática. A profissionalização dos juristas a partir das universidades, a integração desses juristas às cortes laicas e à Cúria papal significava que os homens à frente das decisões legislativas haviam sido formados com base no ius commune.

O ius commune também se desenvolveu numa relação profunda com o ius

proprium, muitas vezes interpretado como “costumes locais”. Esses não eram ensinados nas

universidades, uma vez que seria impossível abarcar todas as variações regionais. Mesmo assim, o ius proprium era visto como mais um elemento do exercício da justiça. As ferramentas intelectuais utilizadas para lidar com os problemas legais nas cortes locais vinham também do direito aprendido nas universidades. Além disso, o conhecimento bíblico e teológico era parte integrante das justificativas de direito, pois na concepção medieval o direito emanava, antes de tudo, de Deus. O direito medieval se constituía também como um sistema religioso e, segundo Levy-Bruhl

Além disso, é preciso lembrar que as prescrições desses sistemas religiosos têm um caráter jurídico inegável. Basta ler o Corão ou a Bíblia, por exemplo, para constatar que esses textos não se restringem ao domínio religioso – entendo por domínio religioso as relações entre o homem e o divino –, mas são repletos de regulamentações, frequentemente minuciosas, relativas a problemas estritamente humanos como a família, a propriedade, as sucessões, as obrigações etc. 452

Para um jurista medieval não havia qualquer contradição na pluralidade, ela era parte natural do sistema de pensamento. As diferentes formas do direito poderiam ser colocadas em escalas de valores e importâncias ou utilizadas de acordo com as necessidades específicas. Elas compunham um sistema. Segundo o historiador do direito, Manlio Bellomo,

451 PENNINGTON. K. Innocent III and the Ius Commune. In: HELMHOLZ, R.; MIKAT, P.; MÜLLER, J.;

STOLLEIS, M. (org). Grundlagen des Rechts: Festschrift für Peter Landau zum 65. Geburtstag. Paderborn: Verlag Ferdinand Schöningh, 2000, p. 351.

452

A pluralidade era, portanto, parte do ‘sistema’, e o sistema em si era inconcebível e jamais teria existido sem os incontornáveis iura propria ligados à unidade do ius commune. A maior imperfeição das leis dos homens (o ius proprium) estava relacionada à menor imperfeição das leis dos governantes da terra (o ius commune), mas ambas as leis, em medidas variáveis, continham e divulgavam apenas uma tênue imagem da Justiça que era absoluta, divina e, portanto, eterna.453

Alguns historiadores, ao analisarem as obras jurídicas dos séculos XII-XIII, desmereceram seu impacto ou significado por não atentarem para essa relação fundamental entre as diferentes formas de direito. Ainda que aceitem de mais livre grado a relação entre direito canônico e direito romano, o costume e a teologia ainda têm espaço reduzido nas análises. O uso do costume, por exemplo, muitas vezes é visto como um sinal de ausência de esforço sistematizador ou legislativo. Longe de pretendermos esgotar o assunto, apresentaremos a seguir como esse ius commune, entendido como a pluralidade de formas de direito, atuava nos casos do dízimo e como esse princípio de direito estava também ligado à construção dos espaços de autoridade.