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2. DO ESTÉTICO E DO VENAL: OBJETOS CULTURAIS COMO PRODUTO

2.1. Aproximações históricas em torno da identidade do objeto e o campo da

Compagnon (2012) se propõe a visitar uma questão perseguida por vários outros estudiosos, intelectuais dos estudos literários que o antecedem. Por isso se pergunta: o que é o texto literário? O que é a literatura? Tolstoi, Jakobson, Charles Du Bos, Sartre, Barthes, entre outros, passam pelas reflexões de Compagnon, já que todos eles buscam uma definição de literatura ou do campo literário. O autor cita Barthes (1988, p. 53) quando renuncia à tentativa de defini-la e conclui: “A literatura é aquilo que se ensina, e ponto final.”, e ao mesmo tempo nos faz recordar uma

fragilidade na autonomia da própria literatura em definir sua natureza e função. A profusão de definições e autores mostra uma inquietação e ao mesmo tempo revela um sintoma de crise de identidade de algo que para o senso comum parece ser estável, mas que de fato pertence a um questionamento que não se esgota. Compagnon (2012) explica, inclusive, que até mesmo a denominação literatura é relativamente recente, já que data do começo do século XIX, mas adverte, no entanto, que simplesmente nomear não dá fim ao questionamento sobre a natureza desse campo que tem sido objeto de estudo e debate.

Da Antiguidade até meados do século XVIII, a literatura foi entendida como imitação ou representação (mimesis) de ações humanas. No século XVIII, ainda outro posicionamento se registra, a literatura e a arte passam a ser objetos com um fim em si mesmos, o texto literário, por sua vez, passa a se definir a partir do uso estético da linguagem escrita. Compagnon (2012) explica que a noção romântica que integra essa concepção acaba sendo a mais valorizada, nela a literatura figura como redenção da vida e a única possibilidade de experimentar o absoluto e o nada. Essa concepção polariza, ainda, linguagem literária e linguagem cotidiana, e depois vai encontrar ressonância no formalismo com a criação da categoria “literariedade”, uma propriedade que garantiria e permitiria a distinção entre um texto literário de um texto não literário. Compagnon (2012) recorda ainda que Jakobson acreditava que a literariedade possibilitaria uma experimentação única com a linguagem.

A perspectiva formalista, com a noção da literariedade como propriedade intrínseca ao texto literário, o reduz a uma forma e o trata somente a partir da sua dimensão textual, limitando o modo de concebê-lo. A concepção formalista do termo pressupõe a existência de elementos linguísticos exclusivamente literários, mas segundo Compagnon (2012, p. 42) não há como fazer a distinção pois “[…] não existem elementos linguísticos exclusivamente literários, a literariedade não pode distinguir um uso literário de um uso não literário da linguagem”.

A literatura amplia sua extensão no século XX e vai permitir a inclusão e convivência de gêneros bastante diversos entre si, como o romance, o drama e a poesia lírica, o poema em prosa, a autobiografia, o relato de viagem, o romance policial, a HQ. Compagnon (2012, p. 33), quando trata da extensão da literatura, nos mobiliza a pensar no estatuto da LG quando pondera:

O estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja Proust ou uma fotonovela, e negligencia a complexidade dos níveis de literatura (como há níveis de língua) numa sociedade.

O estreitamento institucional do século XIX, ao qual o autor se refere, entende a literatura dentro da tríade romance, teatro e poesia. Ver a literatura a partir da representação daquele que lê amplia a noção do objeto literário, como também abre uma perspectiva de análise, considerando a complexidade de diferentes níveis de literatura.

Pensar a LG a partir da representação que o leitor constrói é uma possibilidade que não pode ser ignorada, ainda que a princípio essa classificação esteja também motivada por todo um aparato editorial de propaganda e defesa do lugar desses textos como “produtos” ou “bens” literários a serem consumidos. Embora não seja objeto de nossa pesquisa, não ignoramos que os efeitos da recepção das reformulações estão muito além da previsibilidade que as projeções do discurso editorial marcam, ou ainda, das nossas próprias.

Rico (2000, p. 31) explica que os leitores de Lazarillo, na ocasião do seu lançamento em 1553 ou 1554, não tinham uma obra semelhante para compará-lo e desse modo apresentavam dificuldade em lê-lo como ficção:

Un volumen cuyo contenido, en prosa, se limitaba a la autobiografía de un pregonero de Toledo – y sin más experiencias que las propias de un depreciable pregonero – claro está que no se dejaba acoger por las buenas en la misma categoría que los estilizados ensueños de Heliodoro o Diego de San Pedro.17

O crítico acrescenta, ainda:

No habituados a leer como ficción una obra de semejante carácter, inducidos por el aspecto de carta, los primeros lectores del Lazarillo esperarían encontrar en el libro el relato de unos hechos reales escrito por un auténtico Lázaro de Tormes. Los más cultos y sagaces entrarían pronto en sospechas: la admirable ensambladura jocosa de los materiales les haría pensar en una construcción artística mejor que en el fiel trasunto de una vida. (RICO, 2000, p. 77)18

                                                                                                               

17  Um volume cujo conteúdo, em prosa, se limitava à autobiografia de um pregoeiro de Toledo – e sem mais experiência que as próprias de um desprezível pregoeiro – e que tão claramente não se deixava acolher voluntariamente na mesma categoria que as estilizados fantasias de Heliodoro ou Diego de San Pedro. (Tradução nossa.)  

18   Não habituados a ler como ficção uma obra de semelhante caráter, induzidos pelo aspecto de carta, os primeiros leitores do Lazarilho esperariam encontrar no livro o relato de acontecimentos reais escritos por um autêntico Lázaro de Tormes. Os mais cultos e perspicazes suspeitariam

Compagnon (2012) agrega, ainda, que o termo literatura possui uma extensão vasta e que é difícil justificar sua ampliação, dado que o valor que o orienta não é literário, nem tampouco teórico, mas sim, social e ideológico.

Encarar as reformulações dentro da complexidade dos níveis de literatura propicia uma abordagem que está para além do julgamento que, invariavelmente, poderia levar a uma exclusão sumária do horizonte de investigação desse tipo de texto e suas relações com o texto-fonte, ou ainda da sua produtividade e função como objeto da cultura.

2.2. Representações sobre literatura que circulam nos prólogos ou textos