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– Seus dentes são barras de osso. Atrás deles, numa cela de cristal, suas palavras agrilhoadas. Lembre-se dos conselhos de um ancião: as palavras vis, as que colocaram em sua taça pérolas venenosas, a elas dê a liberdade. Como agradecimento por sua misericórdia, elas construirão a eternidade para você; mas as outras, as inocentes, elas, que gorjeiam falsas como um rouxinol sobre um túmulo – não as deve poupar. Enforque-as, como se fosse o carrasco delas! Pois assim que você as deixa sair de tua boca ou de tua pena – elas se transformam em demônios. As estrelas não cairão, pois eu falo a verdade!

(SUTSKEVER, 1963, p. 227).

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Assim se inicia o poema em prosa, ou “pequena descrição” segundo Sutskever, chamado “Aquário verde”. O poema foi retirado da seção homônima, parte final do livro Ode à pomba (ode tsu der toyb), publicado em 1955. Compõem, também, “Ode à pomba” e “Elefantes à noite” (helfandn bay nakht). Respectivamente, esses poemas constituem um longo poema neoclássico em que o poeta busca um equilíbrio entre sua vocação estética e o tratamento ético de seu testemunho e da memória dos que pereceram no khurbn (MENDES, 2015) e uma coletânea de poemas modernistas em que o poeta experimenta as formas do mesmo modo como desbrava novas terras.

As palavras, por mais que surjam diante do poeta apenas quando do ato criativo poético, são, à sua maneira, inerentes, não somente devido à língua, mas também à forma da tradição e da memória que ele carrega. Essas palavras podem ser de vários tipos. Existem palavras inocentes, inócuas. E existem palavras cruéis, dolorosas, até mesmo assassinas. São justamente essas segundas que devem ser libertas na forma de poemas. As outras, as inocentes, não devem persistir – são as palavras que pertencem a outro ordenamento da realidade, um ordenamento mundano, prosaico. No fazer poético, nada passa despercebido, nada no fazer do poeta é inconsequente ou isento de

potência – nada pode ser inocente, pois o mundo não o é. E, se isso é verdade de modo geral, torna-se uma afirmação ainda mais veemente para o poeta que canta a morte e a (sobre)vida dos assassinados no khurbn.

E “Aquário verde” é isso, uma espécie de kadish – a oração que o judeu religioso recita em nome dos mortos que lhe eram próximos – em que o poeta relembra as pessoas e coisas que perdeu com o khurbn.

Essa rememoração acontece de forma bastante poderosa, os mortos, nessa poesia, são trazidos de volta de maneira quase tão brusca quanto foram, anteriormente, levados. Isso, sob a visão do modo de pensar a história e literatura judaicas hegemônico depois da Segunda Guerra Mundial, pode gerar uma leitura do poema como um poema de nostalgia.

A nostalgia pode, sob uma perspectiva de leitura dominante na modernidade, ser vista como negação do progresso e um aferrar-se a um passado perdido (NATALI, 2006). No mundo moderno em que a história passou a ser encarada como um processo, como um movimento, a ordem seria seguir em frente – o progresso.

O progresso dos judeus deveria ser abandonar a diáspora, em que foram perseguidos e humilhados, em que eram fracos, e ir para o Estado de Israel. O judeu israelense não seria mais o mesmo da diáspora; ele jamais se deixaria levar para a cidade da matança. Ele ergueria sua cabeça e resistiria, contra tudo e todos – fossem os ingleses, os árabes ou as dificuldades impostas pela terra. Abunda na literatura e na história israelenses a figura dos pioneiros judeus na Palestina, os halutzim, que drenavam pântanos e irrigavam o deserto, tudo isso com o fuzil na mão (NEUMANN, 2011).

E, para que se fizesse isso, para que esse desejo de conquista se concretizasse, deveria eliminar-se toda e qualquer ligação com o passado. O khurbn e a fundação do Estado de Israel configuram-se como uma revolução: um ponto de ruptura com o passado, a partir de quando se inicia uma nova história para os judeus. Uma história feita em hebraico, uma história em que o passado na diáspora era apenas lamento e dor. A narrativa oficial é de que o povo judeu esperou por dois mil anos para o retorno à terra, esses dois mil anos foram uma interrupção do curso de sua história, do curso de seu progresso. Para que isso se tornasse real, a vida da diáspora deveria ser apagada ou, pelo menos,

relegada a um papel subalterno. Não à toa que o iídiche se tornaria, em Israel, a língua das avós, “a língua batata dos pobres” (HARSHAV, 1994, p. 93).

Persistir escrevendo em iídiche – quando praticamente exigia-se que adotasse o hebraico, idioma do novo país, idioma eleito para o renascimento dos judeus – pode ser encarado como nostalgia, em seu sentido mais negativo. Conforme essa chave de leitura nos diz, ao escrever em iídiche ao invés de fazê-lo em hebraico, Abraham Sutskever se recusa a integrar-se de modo pleno a Israel. Através da leitura de alguns de seus poemas, repletos de rememorações das paisagens e personagens da diáspora, poderiam atestar isso. Aparentemente, é o que acontece em “Aquário verde”, em que o narrador pede para ver novamente os mortos, alegra-se de reconhecer seus rostos e tenta, por fim, tocá-los:

[...]

- Certo. Eu dou a minha palavra. Só sem frases longas. Pois o sol se torna ao ramo azul e num instante cairá no abismo...

- Eu quero ver os mortos!

- Que desejo... Nu, que seja. Minha palavra me é preciosa... Veja!

[...] Eu olho pra dentro: pessoas nadam lá como peixes. Inúmeros rostos fosforescentes. Jovens. Velhos. E jovensvelhos de uma só vez. Todos os que eu vi a vida inteira e que a morte ungiu com uma existência verde; eles todos nadam em um aquário verde, numa suave e sedosa música aérea. Aqui vivem os mortos!

(SUTSKEVER, 1963, p. 228).

O eu lírico aqui pede, claramente, para ver os mortos e sente-se bem ao lado deles, no mundo deles. O mundo presente é esquecido, em detrimento desse passado. Poderia buscar explicar-se essa nostalgia como sendo causada pelo trauma do khurbn, que “é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN- SILVA, 2008).

Nesse sentido, o teor memorialístico de “Aquário verde” torna possível pensar o poema dentro do panorama da narrativa do trauma,

como de fato boa parte da obra de Sutskever é tradicionalmente encarada pela crítica. Nesse caso, a própria forma do poema corrobora as dificuldades inerentes ao gênero. Afeito às formas clássicas, Sutskever parece incapaz de abarcar nelas o trauma que evoca no texto. Isso implicaria uma imposição à memória. Por conseguinte, o poema se apresenta em forma de prosa; em uma metarreferência narrativa, as palavras vencem o eu lírico e lhe escapam selvagens, incontroláveis, violentamente. Nesse debordamento, as palavras conquistam locais antes inauditos e realizam o que quer que desejem:

Aha, eis minhas palavras prestes a sair... conseguiram uma vitória sobre alguém e, aparentemente, decidiram conquistar fortalezas nas quais nenhuma palavra até então conseguira entrar. Em homens, em anjos e, por que não, nas estrelas? Bêbedas com as flores de papoula d'outro mundo, elas realizam suas fantasias. (SUTSKEVER, 1963, p. 228).

Essa narrativa do trauma, esse testemunho, no entanto, apresenta-se de modo indireto, haja vista que não é narrado o momento do trauma, mas o mundo pré-lapsário. Parece haver aqui uma qualquer coisa de lutuosa, um lamento pelo mundo que foi destruído.

O testemunho, ou seja, a narrativa do trauma, pode ser encarado como parte essencial do processo de luto, sem a possibilidade dessa narrativa, o trauma jamais seria trabalhado, acarretando uma falha naquilo que Sigmund Freud denomina “economia do luto” e condenando o indivíduo à melancolia (FREUD, 2014).

Alguns aspectos estéticos de “Aquário verde” apontam de forma sutil, porém mais direta, para esse processo de luto, de um processo curativo que decorre do período de luto, um antídoto à melancolia causada pelo trauma do khurbn. A cor verde é tomada como um símbolo para isso – a cor da vida e da esperança, sendo, no universo imagético de Sutskever, representativa da natureza e da poesia.

As duas forças, natureza e poesia, são dois pilares da construção de mundo do poeta. Abraham Sutskever não era um judeu religioso. Era influenciado por um panteísmo derivado de Espinosa – que, a propósito, é mencionado no poema intitulado “Uma conversa com Espinosa” (a

redn mit shpinoze, 1948). Em seus sistemas ético e estético, as duas feições (natureza e poesia) correspondem aos dois principais repositórios da divindade. Essas crenças eram aparentes desde seus primeiros poemas, como o ciclo “Estrelas na neve” (shtern in shney, 1936) e não desparece completamente nem mesmo em seus poemas do gueto, em que a poesia e a natureza representam uma chance de ressurreição ou sobrevivência – como em “A primeira noite no gueto” (di ershte nakht in geto, 1941).

Ao contrário, a proximidade com a morte só aproxima mais esse tema. Em “A mulher de chapéu Panamá” (di froy in der stroyener paname), segundo texto do ciclo de “Aquário verde”, ele evoca o “anjo da poesia” como seu protetor:

Num dia da Era da Carnificina eu estava sentado num quarto escuro escrevendo. Como se o Anjo das Canções me dissesse: Em suas próprias mãos está a escolha. Se sua canção me inspirar, eu te protegerei com uma espada flamejante, mas se não – você não deve reclamar... minha consciência permanecerá limpa. (SUTSKEVER, 1963, p. 231).

Ao mesmo tempo, no entanto, a cor verde aponta para algo de rançoso, de venenoso, à atmosfera sufocante do gueto (“[…] O verde dos abetos sombrios através da neblina;/ o verde de uma nuvem com a vesícula rota; [...]” ) e a ressurreição depois da tragédia (“[…] o verde que se revela num bambolê girado por uma criança de sete anos; /o verde das folhas de repolho sob gotas de orvalho que ensanguentam os dedos; / o primeiro verde sob a neve que derrete numa dança ao redor de uma florzinha azul; [...]”) – ressurreição que, assim como a sobrevivência, se tornaria possível apenas através da natureza e da poesia.

Esse poder regenerativo da poesia e da natureza, ao qual a cor verde faz referência, aparece não apenas em griner akvarium (“Aquário verde”), mas em outros poemas, como, por exemplo, vos vet blaybn (“O que vai restar”) em que Sutskever escreve: “Quem vai restar, o que vai restar? Uma expiração / Que fará brotar a grama de uma nova Criação/ Um violino-rosa, talvez, por si só vá resistir/ E sete folhas de grama

poderão discernir”. Na verdade, quase toda a obra de Sutskever escrita a partir do khurbn é permeada por essa ideia da poesia como força de salvação e fonte de proteção, pois “(a poesia) serve como testemunha das poucas ações humanas durante a violência que representam a habilidade da vida de reafirmar-se e negar a esmagadora influência da morte e da destruição” (LEAMAN, 2002).

O eu lírico encontra-se deslocado no lugar tal em que se encontra, no presente da narrativa. Mostra-se desejoso de dar continuidade a um passado – com o qual aparentemente se relaciona com muito mais intensidade do que com seu presente. O eu lírico de “O aquário verde” crê pertencer (ou gostaria de crer que pertence) ao lado interno do aquário. É o nostálgico de que Svetlana Boym fala, pois ele “está procurando um destinatário espiritual. Ao encontrar o silêncio, ele busca sinais memoráveis, desesperadamente errando ao lê-los” (2007, p. 12). O erro de leitura se evidencia quando o eu lírico, como Orfeu proibido de olhar para trás em busca de Eurídice, descobre que nada pode ser tocado, por mais que possa enxergar o mundo perdido, nada lá pode ser efetivamente alcançado. Ao tentar romper a parede de vidro do aquário, esta parede de vidro se rompe e tudo o que lá estava desaparece, sobrando apenas a percepção da morte, um teste de realidade concluído sem sucesso: “E os mortos, os mortos – eles morreram?”

Ainda assim, parece ser daquele outro lado irremediavelmente perdido que provêm as palavras de seus poemas. Esse lugar é o mesmo local que serve de fonte para tudo em sua poética: a métrica estrita de seus poemas, bem como o próprio idioma iídiche a as memórias e imagens que constroem esses poemas. Essas palavras são, ao mesmo tempo, tudo o que lhe resta desse mundo e elas são as responsáveis por recriá-lo. Foi, afinal, uma palavra – a soberana dentre elas – que atendeu ao seu pedido para ver os mortos. Até então, o poema parecia encontrar- se no campo que Svetlana Boym (2007, p. 13) define como “nostalgia restauradora”, que busca um retorno do passado, mesmo que não se trate de um passado verdadeiro, mas um pretérito que se configura através de valores considerados tradicionais, um retorno à estase original, ao momento pré-lapsário; no caso, a Polônia entreguerras (o lapso aqui seria o khurbn).

A partir de então, no entanto, o poema passa a apontar a outra direção. A nostalgia persiste, mas é uma “nostalgia reflexiva”. Essa

nostalgia, segundo Boym (2007, p. 15), não busca recriar o passado, pois entende os tempos histórico e individual, percebe a finitude humana e a irrevogabilidade dos fatos. Não há aqui uma tentativa de restabelecer o passado, mas sim uma mediação entre o indivíduo, a história e a memória, resultando na criação de uma estética individual.

Essa divisão, é claro, é fictícia. Ao mesmo tempo que ambas as espécies de nostalgia estão presentes no poema – e em toda a obra de Abraham Sutskever escrita a partir do khurbn –, a nostalgia reflexiva é sempre umas forças motrizes de sua poética. Da mesma forma, parece- me impossível que, após o trauma, a nostalgia restauradora não esteja sempre presente, subreptícia. A poesia em iídiche é a forma que Sutskever encontrou para lidar com ambas as formas de nostalgia e favorecer a reflexão, que lhe permitiu encontrar um lugar, ou melhor, um campo por onde movimentar-se, num ponto de contato entre o ético e o estético, entre o individual e o coletivo, entre o lembrar e o esquecer. E ferramenta essencial para isso são justamente as palavras, chaves de compreensão do mundo e de corporificação da realidade. Nesse sentido, a escritura de Sutskever assume um caráter místico: carregadas de significado, cada uma das palavras é um veículo do divino, e, como tal, constroem, desconstroem e reconstroem o mundo. É apenas perpassando as palavras, com seus pesos e sentidos ocultos, com sua relação histórica, que o mundo aparentemente perdido pode ter a continuidade que o poeta lhe quer dar.

Considerando esse caráter místico do poema, pode-se propor uma segunda forma de leitura do poema, em que ele é visto justamente a partir dos paradigmas de uma experiência mística, conforme propostos por Gershom Scholem (2012; BIALE, 2004).

É certo que os poemas de Sutskever não tratam de temas religiosos, mas quando Scholem (2012, p. 25) fala de experiências místicas ele cita a possibilidade de que existam místicos desligados da religião, inclusive citando como exemplos alguns poetas, William Blake e Arthur Rimbaud. Tampouco creio que o poeta tenha experimentado, ele próprio, uma experiência desse tipo, mas o poema é a narração de uma dessas experiências místicas. É a partir de sua inserção numa tradição altamente textualizada como a tradição (religiosa e cultural) judaica, em que a irracionalidade da experiência mística muitas vezes foi traduzida para a forma escrita, que isso se torna possível.

É preciso, em primeiro lugar, delinear uma experiência mística e encontrar suas características no poema. A experiência mística “é por sua própria natureza indistinta e inarticulada” e “ela não pode simples e totalmente ser traduzida em imagens ou conceitos agudos, e muitas vezes desafia qualquer tentativa – mesmo posteriormente – de supri-la com um conteúdo positivo” (SCHOLEM, 2012, p. 18). Eis que, após sentir um “movimento na alma” dá vazão as palavras, em um episódio que remonta às cenas religiosas e que, ao mesmo tempo, é descrito de forma fragmentária:

Trombetas soam.

Tochas como pássaros flamejantes.

Linhas as acompanham. Quadros de música. Defronte a uma dessas palavras, que avançava cavalgando usando uma coroa na qual reluziam minhas lágrimas, devia ser a soberana, eu caí de joelhos.

É significativo que a palavra soberana seja apenas descrita como tal e que ela jamais seja nomeada. Pois nomeá-la a dotaria de um significado fechado e isso é inadmissível: “a palavra absoluta é, como tal, insignificativa, mas está prenhe de significado” (SCHOLEM, 2012, p. 20).

Retorno, novamente, ao modo como as palavras transbordam desde o narrador. Esse modo poderoso e irrefreável é fruto da irracionalidade mística, bem como o já citado modo de organização do texto. A prosa livre, na forma de um fluxo de consciência, vence a rigidez da forma poética organizada com métrica e rima, destruindo os moldes previamente concebidos, reorganizando-os. É assim que, para o eu lírico, as palavras possibilitam a revelação e mantém-se como autoridade, “na sua infinita capacidade de assumir novas formas” (SCHOLEM, 2012, p. 21).

A experiência do eu lírico é, portanto, uma experiência mística. Destruição e criação caminham lado a lado, e há uma revelação. Essa revelação é profundamente órfica em seu significado:

– Eu quero sentir teu corpo mais uma vez! – Não se pode aproximar, o vidro, o vidro...

– Não, a barreira logo vai desaparecer, eu vou quebrar o vidro verde com a cabeça –

Depois do décimo-segundo golpe, o aquário rebentou.

Onde estão os lábios, onde está a voz? E os mortos, os mortos – eles morreram?

Ninguém. Defronte a mim – grama. E acima – um galho de laranjeira ou as crianças brincando com bolhas de sabão douradas.

O passado pode ser enxergado, através do poder das palavras, da memória. Pode-se reconhecer lugares, pessoas e sentimentos. Permanecerá, no entanto, sempre intocável, mas a barreira que separa o presente do passado não é totalmente impermeável, permitindo o diálogo ou a relação, pois não forma uma oposição dialética, para com o presente e o futuro, mas relaciona-se com ele através de múltiplas linhas de força, de múltiplas imagens.

A tentativa, no entanto, de tornar esse passado algo que pode ser tocado, ou seja, a tentativa de coisificá-lo, apreendê-lo sem pensamento e reflexão só faz com que se perca. Mais uma ve,z o poema traz um alerta ao poeta, mostrando que o passado deve ser interpretado e recriado, a relação com o passado deve ser dinâmica; uma relação estática – ter o passado tal qual era, tangível em todos seus aspectos – o destruiria, o afastaria.

Mais uma vez, a poética de Sutskever vai ao encontro das proposições teóricas de Gershom Scholem (BIALE, 2004). assim como a modernidade judaica era tributária direta dos movimentos místicos e de certa irracionalidade. A poesia de Sutskever é tributária dessa modernidade, é fruto de sua irracionalidade criativa, bem como das tentativas modernas – e racionais – de lidar com ela, é sua continuadora direta, ainda que, mais uma vez, subterrânea.

É como se aquilo que, durante os séculos XIX e início do século XX tivesse vindo à tona, formando a modernidade judaica, fosse assimilado agora por uma nova cultura. Por ser essa nova cultura, a cultura israelense, uma cultura judaica – essa assimilação deu-se sem a rejeição que pairava em torno da assimilação pelas culturas gentias. Era, porém, tal como as culturas europeias da modernidade, racional e focada na construção nacional. Ao mesmo tempo, na diáspora (em especial nos

EUA), a cultura judaica focou-se na resolução do trauma do khurbn e na defesa contra o antissemitismo. Isso gera, intencionalmente ou não, um ponto de ruptura com o período pré-guerra, em que os judeus na diáspora constituam um povo sem nação, dotado de uma cultura com alta carga de ‘irracionalidade’- uma ‘irracionalidade criativa’, nas palavras de Scholem.

Mas isso acontece apenas no nível mais visível, o das narrativas oficiais. Existe a contrapartida, na narrativa histórico e no modo de ver o tempo que é criado através da poética de Sutskever, por exemplo, em que essa modernidade continua sem um ponto de fratura evidente.

Por mais que sua poesia recupere e presentifique um mundo perdido – a Polônia iídiche do entreguerras –, isso será feito de modo crítico e antiutópico, isso não será feito de modo a reificar esse mundo e as relações dele com a história. Não é por acaso que em 'Para a Polônia', poema que leio no capítulo seguinte, ele se despeça do país de sua juventude, despindo-o de idealização e o enxergando de modo crítico – mas sem deixar de levar algo consigo, algo que, como se verá, relaciona-se de modo íntimo com as palavras.

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