• Nenhum resultado encontrado

Luciano Ramos Mendes. CAMINHA ENTRE AS PALAVRAS COMO NUM CAMPO MINADO: [comentário acerca da poesia de Abraham Sutskever, com tradução]

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Luciano Ramos Mendes. CAMINHA ENTRE AS PALAVRAS COMO NUM CAMPO MINADO: [comentário acerca da poesia de Abraham Sutskever, com tradução]"

Copied!
141
0
0

Texto

(1)

Luciano Ramos Mendes

CAMINHA ENTRE AS PALAVRAS COMO NUM CAMPO MINADO:

[comentário acerca da poesia de Abraham Sutskever, com tradução]

Dissertação submetida ao Programa de pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa

Florianópolis 2017

(2)

Mendes, Luciano

Caminha entre as palavras como num campo minado : [comentário acerca da poesia de Abraham

Sutskever, com tradução] / Luciano Mendes ; orientadora, Maria Aparecida Barbosa, 2017. 140 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura,

Florianópolis, 2017. Inclui referências.

1. Literatura. 2. Poesia iídiche. 3. Estudos judaicos. I. Barbosa, Maria Aparecida. II.

Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

(3)
(4)

A todos aqueles que tiveram sua língua

(5)

AGRADECIMENTOS

Fazer agradecimentos é sempre arriscar-se. Escolher palavras, citar pessoas. Sempre demasiado fácil deixar alguém – ou alguma palavra – de fora e, com isso, incorrer em erro. É inevitável, também, incorrer no kitsch. Aviso, portanto, que serão apenas alguns parciais agradecimentos – mas todos aqueles que ajudaram a construir meu caminho, antes e durante a feitura dessa dissertação, seriam dignos de figurarem aqui. As eventuais incorreções ou omissões são fruto da inglória inexatidão da memória, em especial ao fazer essa espécie de catálogo.

Gostaria de iniciar esses agradecimentos com uma menção à minha família. Meus pais, Luciana e Antônio, sempre foram grandes incentivadores dos meus estudos, de minhas leituras. Não foram poucos os sacrifícios que fizeram, a professora e o ourives, para que eu visse a atividade dela com o brilho das joias deste. Eu não faria isso se não tivessem obtido sucesso.

Há, também, meu irmão, Lucas, amigo descoberto tardiamente: do companheiro de brincadeiras da infância ao adolescente distante, acabou redescoberto e tornado peça mais importante em minha vida do que talvez ele mesmo imagine.

Preciso agradecer meus professores, todos, e, de modo especial, minha orientadora durante o atribulado processo que deu origem a essa dissertação: Maria Aparecida Barbosa. Ela colaborou com conhecimentos, correções e cobranças para este trabalho. É preciso, ainda, lembrar dos meus colegas discentes.

Hanna, ex-companheira e eterna amiga, sem a qual eu nunca teria ido até minha querida Varsóvia para estudar iídiche. Sem a qual eu jamais teria tido a coragem de tentar a seleção do mestrado.

Piotr Kilanowski, que começou como um professor na UFPR e tornou-se um grande e valioso amigo e incentivador.

Aos amigos que, ao longo da vida, se tornaram irmãos: Marcia Franco, Samuel Rodrigues Teixeira, Semy Monastier, Tiago Guilherme Pinheiro.

(6)

Aos outros amigos, mais recentes, mas não menos importantes: Akio, Ana Carolina, Ana Elisa (Anilisi), Ananda, Daniel Falkemback, Débora (Dex), Eduardo (Dudão), Enaiê Azambuja, Érica Ignácio (Sula), Fabiano Calixto, Guilherme Bernardes, Haluana, Hugo Simões, Lucas Fernandes (Nandes), Luciane Alves, Maria Elisa (Mariel), Maria Thereza, Priscila Merizzio, Raquel Pontes, Rosângela (Rozão), Sérgio Maciel (Ernesto).

Aos colegas que, ao redor do mundo, lutam pela sobrevivência do iídiche. Em especial, meus professores em Varsóvia: Agata Kondrat, Karolina Szymaniak e Kobi Weitzner.

Para Getúlio Zagreu, por ser meu primeiro amigo na cidade de Fortaleza e pela interlocução e afirmação na hora em que tive mais dúvidas a respeito de mim e desse texto.

Aos amigos não humanos: Flora (in memoriam), Tutti (in memoriam), Joca (in memoriam), Mucha, Batatinha, Banguela, Manteiguinha, Preta, Cabeluda, Tereza, Frederico e Loli.

Aos camaradas de esperança utópica: Bea, Bia, Bruno, Carla, Carol, Chico (e, para ele, um agradecimento especial, por me ajudar a caminhar no labirinto do pensamento de Adorno), Dante, Dias, Dinny, Felipe, Kal, Karyn, Leandro, Mundico, Paulo, Tarsila, Thainan, Tomé e outros tantos.

E, por fim, para as duas pessoas que habitam minha vida e a fazem plena de sentido, um sentido intraduzível em palavras: Natália e Catarina.

(7)

There was a reason for that, I think, as there is now for allowing my uncle’s khurbn to speak through me. The poems that I first began to hear at Treblinka are the clearest message I have ever gotten about why I write poetry. They are an answer also to the proposition — raised by Adorno & others — that poetry cannot or should not be written after Auschwitz. Our search since then has been for the origins of poetry, not only as a willful desire to wipe the slate clean but as a recognition of those other voices & the scraps of poems they left behind them in the mud.

Havia uma razão para isso, eu acho, assim como agora há uma para deixar o khurbn de meu tio falar através de mim. Os poemas que comecei a ouvir pela primeira vez em Treblinka são a mensagem mais clara que eu já recebi sobre o motivo de eu escrever poesia. Eles também são uma resposta à ideia – levantada por Adorno & outros – de que a poesia não pode ou não deve ser escrita depois de Auschwitz. Nossa busca desde então foi pelas origens da poesia, não apenas como um desejo obstinado de limpar a lousa, mas como um reconhecimento dessas outras vozes & migalhas de poemas que eles deixaram atrás de si na lama.

(8)

. ז ֵע6ם ַע ֵמ ,בֹק ֲעַי תי ֵבּ; םִי ָר ְצ ִמּ ִמ ,ל ֵא ָר ְשִׂי תא ֵצ ְבּ .י ָתוֹל ְשׁ ְמ ַמ ,ל ֵא ָר ְשִׂי ;וֹשׁ ְדָק ְל ה ָדוּהְי ה ָתְי ָה (Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó de

um povo de língua estranha, Judá foi seu santuário, e Israel, seu domínio.) Salmo 114: 1,2

(9)

RESUMO

A poesia de Abraham Sutskever é frequentemente apontada como uma obra de teor testemunhal, cantando os horrores e a sobrevivência ao khurbn (“destruição” em iídiche, nome dado ao holocausto nesse idioma). O presente trabalho busca, para além de uma introdução da obra de Sutskever ao universo letrado em língua portuguesa do Brasil, utilizar três de seus poemas (griner akvarium, tsu poyln, e in midbor sinay – respectivamente “Aquário verde”, “Para a Polônia” e “No deserto do Sinai”), para apontar outra leitura de sua obra escrita após a Segunda Guerra Mundial. É uma leitura em que, através de uma espécie de nostalgia reflexiva, conforme definida por Svetlana Boym, e de uma postura “mística” ante a história e a poesia, dentro dos termos definidos por Gerschom Sholem, o mundo do pós-guerra é reavaliado, e uma nova relação com o tempo e o espaço judaicos no pré e pós-guerra surge numa poética da relação. Essa poética relacional e rizomática dá continuidade à yidishland (literalmente “País Iídiche”), o império cultural sem fronteiras em que a língua iídiche era falada. Essa continuidade é um ato de resistência à destruição e ao apagamento e é uma forma de enfrentamento da reificação não apenas do khurbn, mas também dos modos de vida judaicos na diáspora.

Palavras-chave: Abraham Sutskever. Poesia em língua iídiche. Poética da relação. Nostalgia. Reificação. Resistência.

(10)

ABSTRACT

Abraham Sutskever's poetry is usually seen as a work of testimony, singing about the horrors and the survival thought the khurbn (literally 'destruction' in Yiddish, name given to the holocaust in the language). This paper aims to use three of Sutskever's post-war poems (griner akvarium, tsu poyln, e in midbor sinay – respectively 'Green Aquarium', 'To Poland' and 'In the desert of Sinay') in order to unveil another reading of his work. A reading in which though the lenses of reflective nostalgia, as defined by Svetlana Boym, all of his work is a continuum and a struggle in order to keep the world that was apparently destroyed alive. For this he will incur in a 'mystical' posture, similar to the one read in Gershon Scholem. Sutskever's fight is one to keep both yidishland and the khurbn from being reified, using them to build a poetic of relation – more or less like what Edouard Glissant sees in the work of Caribbean writers.

Keywords: Abraham Sutskever. Yiddish poetry. Poetics of relation. Nostalgia. Reification. Resistance.

(11)

א טקאַרטסב ד בֿב עבֿטב זיא רעוועקצוס םהרבֿאַ ןאפֿ עיזעאָפּ י וו תניח תודע אַ י םעד ןגעוו ,רעדיל ןאַ ןליהנאַ וצ טליצ ריפַּאפּ סאָד .םויק ןוא ןברוח רעדנאַ א רד טימ .עיצאַטערפּרעטני ִי ִי יא׳ ןוא ׳ןליופּ וצ׳ ,׳םאיראַווקאַ רענירג׳ :רעדיל ימ ן זיא אסריג יד .׳יניס ראָבד עזש יד תודע זיולב אָטשינ ןענעז עקרעוו -פֿוא אַ רעבאָ ,רעדיל ן פֿ ק שידיי ראַפֿ המוקתּ ןו וטלא ,ר יז צינאַב ךיא .עטקירעביאראַפֿ ןעוועג זיא סע ןעוו מ ךו פֿער ןופֿ ןטפּעצנאָק יד טי על ק עוויס טסימ רעד ןוא ,םיוב אַנאַלטעווס יפֿכּ ,טפֿאַשקנעב פֿ םזיצי יד .םולש מאָשרעג ןו ייווצ ה רעוועקצוס יוו ףיוא הנבֿה רעד ראַפֿ ןעסילש ןענעז אָ ט אַשצפֿח טימ ךיז טשטאָפּעצ פֿ ט דנאַלשידיי יד ןוא ןברוח ִיִיס ןאפֿ. ש י ,אַיגלאַטסאָנ ,רעוועקצוס םהרבֿאַ :עטראָווסיל פּ שידי אָ עיזע

(12)

SUMÁRIO PRELIMINARMENTE ... 12! 1. AQUÁRIO VERDE ... 29 2. PARA A POLÔNIA ... 39 3. NO DESERTO DO SINAI ... 56 EPÍLOGO ... 66 REFERÊNCIAS ... 69

APÊNDICE 1 - Algumas palavras sobre o ato de traduzir Sutskever ... 77

APÊNDICE 2 - Poemas traduzidos ... 79

Aquário verde ... 79

Iídiche ... 88

Ode à pomba ... 91

Num lugarejo ... 92

Quem vai restar, o que vai restar? Vento vai restar. ... 96

Explicar? Como se pode explicar? ... 98

Para a Polônia ... 100

O caminho do escorpião ... 119

(13)

PRELIMINARMENTE

– Caminha entre as palavras como num campo minado: um passo em falso, um movimento em falso e todas as palavras, que você passou a vida toda costurando em suas veias rebentarão contigo junto -

Assim me sussurrou minha própria sombra, quando ambos, cegados por moinhos-refletores, avançávamos durante noite por um sangrento campo minado e cada passo meu posicionava-se na morte ou na vida, fazia uma cicatriz no coração, como um prego num violino. (SUTSKEVER, 1963, p. 227).

O título desta dissertação é um trecho do poema “Aquário verde” (griner akvarium). No poema, o narrador é instado a caminhar por entre as palavras do mesmo modo que o poeta Abraham Sutskever, ao fugir do gueto de Vilna, avançou num campo minado real. As palavras tanto são sua chance de sobrevivência quanto algo com que acautelar-se. Exigem escolha a cada passo, a cada instante, relacionada ao posicionamento entre elas – e essa escolha exige sutileza. Cada escolha é uma ferida, cada palavra utilizada é uma miríade de outras que são abandonadas, renúncia que acaba por deixar marcas. Tal é o ofício do poeta.

A partir disso, levantam-se muitas questões. Se a escolha das palavras é cuidadosa, ela não pode ser aleatória. Muito pelo contrário: desde seu ponto mais elementar, ela obedece a uma série de imperativos. A começar pela intensidade com que Sutskever aferrou-se a um idioma “moribundo” – no caso, o iídiche, que, depois da Segunda Guerra Mundial e do khurbn1, perdeu grande parte de seus falantes e foi 1 Palavra iídiche cujo significado literal é 'destruição', o nome dado ao que, em português, se convencionou chamar de 'holocausto'. Escolho usar essa palavra de forma consistente em detrimento do termo em português ou, ainda, do termo hebraico shoah. Refiro-me justamente à destruição dos judeus do leste europeu, majoritariamente falantes de iídiche, de seus corpos, memórias e língua, de seus espíritos. Concordando com a citação de Jerome Rothenberg que uso como epígrafe à dissertação, nenhum outro

(14)

abandonado pela grande maioria dos sobreviventes, pois, como explica Benjamin Harshav:

[…] em Israel corria um ódio extremamente emocional contra o iídiche – a “língua batata” dos pobres, encarnando os traços mais fracos da subserviente e parasitária “mentalidade da Diáspora” - reforçado pelos sentimentos de culpa de uma sociedade criada por moços que haviam abandonado seus pais e seu mundo na Europa Oriental a fim de proceder à reconstrução de suas vidas mesmas, da imagem do judeu e da própria sociedade humana […]. (HARSHAV, 1994, p. 93).

Ou seja, o recém-fundado Estado não tinha, ou pelo menos não desejava ter espaço para a vida judaica “de antes”. Esse passado europeu, diaspórico, era visto como um passado de fraqueza, de submissão, no qual os judeus postavam-se sempre como inferiores aos outros povos, sendo, através de sua passividade, os próprios responsáveis pelas tragédias que lhes acometiam – como os pogroms2 e o khurbn.

Portanto, procedeu-se essa reconstrução de vidas judaicas como israelenses. Isso configura-se como um nomadismo “em flecha”: não é uma errância verdadeira, mas, sim, algo derivado de um desejo de conquista, de posse da terra e de formação de uma nação ao redor de uma ideia de poder – ou seja, um Estado (GLISSANT, 2006). E é das tensões entre essa espécie de pensamento sionista e as escolhas de Sutskever que surgem os questionamentos que ambiciono levantar.

Não à toa o Estado de Israel, ao nascer, elege para si um único

nome me parece adequado. Utilizar um nome que não seja o que me parece mais acertado apenas por motivos de convenção ou estilo me parece fazer uma crítica apolítica e não engajada, portanto, inadequada do meu ponto de vista.

2 Pogrom era um ataque das multidões gentias aos judeus, de forma mais ou menos espontânea. São uma das mais antigas e violentas manifestações de antissemitismo. Pintores judeus radicados nas Américas, entre os quais Lasar Segall e José Gurvich, pintaram cenas de pogroms.

(15)

idioma, o hebraico. Ora, se, por um lado, faz-se necessária a eleição de um idioma nacional que possa ser utilizado como lingua franca pelos indivíduos que, embora judeus, tinham origens e idiomas distintos, por outro, isso ocorre de modo um tanto quanto intransigente, buscando criar uma cultura plenamente hebraica ensimesmada, em detrimento de séculos de história em iídiche, russo, ladino, judeu-grego, judeu-persa, judeu-árabe, etc., séculos de falares múltiplos e relacionais – falares que, ao mesmo tempo que são indiscutivelmente judaicos, incorporam elementos que um dia foram estrangeiros. Israel funda-se como uma nação ocidental, pois baseia-se na intransigência linguística (GLISSANT, 2010, p. 15). Uma intransigência, é certo, pontuada por uma tolerância em múltiplas instâncias – que não se caracterizava por uma “ideologia multilingual”, mas por uma aceitação relutante de uma realidade multilingual (HELMAN, 2014, p. 34).

Ou, melhor: para fundamentar-se como nação, nos moldes das grandes nações europeias, naquilo que Glissant define como uma “raiz total”, Israel precisava impor o hebraico como seu idioma veicular, como um aspecto central da vida judaica – o idioma tornaria-se sua metrópole (GLISSANT, 2010, p. 18). Isso se torna explícito quando David Ben-Gurion, primeiro governante do país, reclama a respeito da narrativa de Rozka Korczak sobre o khurbn, em iídiche (que fora o idioma nativo do próprio Ben-Gurion), que o idioma lhe “irritava os ouvidos” (KAVON, 2014), ou quando, alguns anos mais tarde, disse que o hebraico deveria substituir o iídiche também na diáspora (JEWISH TELEGRAPHIC AGENCY, 1969).

Seria impossível fundar-se um Estado nacional baseado num idioma sem aspiração à terra, num idioma que não se baseava no espaço, mas no tempo. Os judeus deveriam ter uma ligação com o Estado de Israel e deviam constituir-se, onde quer que estivessem, numa nação que pudesse olhar para aquela terra como sua. Israel, como qualquer outro Estado, tinha a pretensão “de ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o homem” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 37).

O iídiche, por sua vez, já era o idioma de escolha dos socialistas seculares do Algemeyner Yidisher Arbeter Bund in Lite, Poyln un Rusland (Partido Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, conhecido simplesmente como Bund) e dos religiosos

(16)

hassídicos3 - os primeiros por ser a língua das massas, os últimos não apenas por isso, mas também por considerarem que o hebraico, a língua sagrada, não deveria ser utilizada para assuntos terrenos. Nenhum dos grupos encontraram necessidade de definir-se no espaço, pois definiam-se temporalmente através da visão de uma iminente e inevitável revolução, social ou espiritual.

Obviamente que, ante a tudo isso, a escolha de Sutskever, que então vivia em Israel, de continuar a escrever em iídiche é crucial para sua obra poética. Foi estimulado por outros poetas a abandonar o idioma e a adotar o hebraico. Foi o que muitos fizeram, a exemplo de Uri Tsvi Grinberg. Sutskever não apenas se recusa veementemente a fazê-lo, mas também se coloca em posição de enfrentamento, como escreve no poema intulado “Iídiche” (Yidish):

É preciso que eu comece do princípio? É preciso que eu,

como Abraão,

destrua todos os ídolos, como um irmão?

É preciso que eu me permita ser traduzido vivo? É preciso que eu plante minha língua

e espere até que se transforme nas amêndoas com passas dos ancestrais?

que engraçada piada

prega meu irmão de poesia, o de costeletas, enquanto minha língua-mãe se põe?

(SUTSKEVER, 1963, p. 33)

O projeto poético de Sutskever depois do khurbn apresenta-se como um projeto de preservação amplo, que abrange todo o modo de 3 O hassidismo é um movimento religioso judaico surgido no que hoje é a Ucrânia oriental, durante o século XVIII. Fundado por Baal Shem Tov, enfatiza o sentimento religioso e a vivência, possibilitando uma espiritualidade mais inclusiva, em oposição a um judaísmo excessivamente legalista e intelectualizado que vinha se desenvolvendo, afastado das populações mais simples.

(17)

existência judaica na diáspora – toda a existência falante de iídiche. É através da escritura em iídiche que Sutskever ressuscita a “Jerusalém da Lituânia”, a Vilna do período entreguerras, espaço e tempo em que a cultura iídiche moderna atingiu seu ápice.

À primeira vista, esse gesto está carregado de nostalgia. A palavra nostalgia vem do grego, ou, como sugere Svetlana Boym (2007, p. 7), pseudogrego, grego nostálgico: é a união das raízes gregas nostos, retorno para o lar, e algia, dor, e surgiu na literatura médica do século XVII, inicialmente descrita em 1688 na dissertação do médico suíço Johanes Hofer. Ele reconhecia a pré-existência da entidade, porém acreditava que faltavam-lhe rigor e uma nomenclatura científica, universal (BOYM, 2007; NATALI, 2006).

Era uma doença como as outras, e Hofer deu-lhe causas que variavam desde a desnutrição (causada pela falta dos alimentos habituais) até afecções de ordem neurológica. Os sintomas eram febre, insônia, suspiros frequentes, palpitações, astenia e anorexia (HARDER; HOFER, 1688), e essa lista seria ampliada em trabalhos posteriores ao do médico suíço (NATALI, 2006). Propunha alguns tratamentos: em primeiro lugar, a purgação; no caso de falha desse método, a sangria através da abertura das veias braquiais maiores; e, no caso de falha desse outro método, o médico deveria dar ao doente uma esperança de retorno para casa, mesmo que falsa (HARDER; HOFER, 1688).

A doença teve seu apogeu no século XIX, desaparecendo no início do século XX. Isso, porém, não quer dizer que ninguém tenha sentido seus efeitos, apenas que a medicina, agora mais rigorosa e mais fria, buscando assumir ares científicos, descartou-a como entidade nosológica.

Sobreviveu, porém, como um sentimento, uma forma de pensar. A nostalgia só pode existir no pensamento moderno, dentro do qual é considerada um problema. Ela deixou de referir-se, como no caso dos primeiros pacientes de Hofer, a um apego ao lar distante, passando a designar um apego ao tempo passado É uma forma de relacionar-se com o passado e com os mortos, uma recusa em abandoná-los. É, e empresto aqui as palavras de Walter Benjamin, a “a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz” (1987, p. 225). Isso, numa sociedade marcada pelo desejo de progresso e pela celebração do novo, é visto como negativo; é impensável que se

(18)

prefira o passado ao futuro, que há sempre de ser melhor (NATALI, 2006).

Fica claro, então, que, na recém-nascida Israel, que elegera para si o hebraico moderno como idioma, continuar com o iídiche era uma espécie de aceitação da vida da diáspora como válida – e não poderia ser, pois o judeu diaspórico era fraco e havia, nas palavras de Khayim Nakhman Bialik, se deixado levar para a “cidade da matança”:

Vem, agora, e eu te levo às suas tocas, As casinhas, privadas e chiqueiros donde Estão os herdeiros dos Asmoneus, tremendo de medo, cheios de medo – os filhos dos Macabeus!

A semente dos santos, crias dos leões4 (BIALIK, 1922, p. 14).

Dentro da nova nascente mentalidade israelense, o iídiche figurava como parte de um passado a ser abandonado, em que os judeus viviam submissos entre outros povos e eram fracos, passivos. O futuro se faria em Israel e não teria nenhuma ligação com a vida judaica na Europa – por mais que esse futuro fosse, em última análise, uma emulação das vidas europeias na Europa. O futuro se faria em hebraico, idioma semítico, herdeiro genuíno da tradição que remontava aos tempos bíblicos5. Qualquer coisa que fosse a intuito diferente disso – como o constante rememorar a Polônia do entreguerras e a persistência do iídiche na poética de Sutskever, por exemplo – seria nostalgia, em seu sentido mais negativo, ou seja, a negação do presente e de um futuro necessariamente melhores (pois o sentido da história seria, supostamente, uma via de mão única em direção ao progresso), em função de um apego a um passado idealizado.

Mas, por mais que no campo político e ideológico a fundação 4 Poema escrito originalmente em hebraico, e traduzido para o iídiche pelo próprio Bialik. Traduzi, aqui, a partir da versão iídiche – originalmente publicada em 1906. Retirei o texto original de uma publicação de 1922. 5 Isso, é claro, na narrativa adotada pelo sionismo. O hebraico moderno, na

verdade, foi reconstruído de modo artificial, com claro intuito nacionalista durante o Haskalah, a “iluminação judaica”.

(19)

do Estado de Israel tenha simbolizado a vitória do sionismo ante as outras correntes políticas judaicas surgidas a partir do século XIX, como o bundismo, isso não se resolveu de modo tão simples. É bastante evidente, nos primeiros anos da literatura israelense, que se apresentava sem cessar uma tensão entre o dever e a vontade de homenagear os mortos e a necessidade de criar esse novo paradigma, tanto na escritura hebraica quanto iídiche – e ainda mais presente na segunda, justamente por ter sido preterida na construção dessas novas formas de existência.

Lado a lado com a ideia de nostalgia, caminha, ao menos no caso em questão, o trauma, “uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69), que permeia o todo a respeito do qual se escreve aqui. O khurbn foi algo tão monumental, tão gigantesco que se torna inescapável para seus objetos. E justamente esse trauma cria uma “carência absoluta” do narrar, gerando o testemunho como ato elementar para o sobrevivente, para efetivamente colocá-lo em contato com os outros, os que não estiveram lá onde ele esteve e não viram o que ele viu.

Apesar da proximidade entre os termos (trauma e nostalgia), há uma diferença fundamental. Na nostalgia, há uma romantização de um período ou lugar, uma recusa em abandoná-los. O trauma, por sua vez, caminha no sentido oposto – a tragédia é tão pujante, tão imensa, que o sobrevivente se vê impossibilitado de sair dela, de mover-se para o presente. Em ambos, há uma fixação em algum ponto do passado. Na nostalgia, isso acontece porque o passado, de alguma forma, era mais atraente. No espectro oposto, o trauma causa essa fixação não pela atratividade desse passado, mas por sua monstruosidade.

Relacionam-se intimamente no sentido de que, talvez, impossibilitado de seguir em frente o sobrevivente, o traumatizado encontre um caminho para trás, para o passado anterior à tragédia – que lhe parecerá idílico. A nostalgia, então, pode ser encarada como um modelo melancólico de enfrentamento do trauma: escapa-se de um passado traumático em direção ao passado, até que se torne agradável. O trauma concretiza-se numa obrigatoriedade da nostalgia.

Pode-se encontrar esse modelo na obra de Sutskever através de um constante reavivamento, não apenas dos fatos e dos mortos do khurbn, mas também do mundo que florescera antes que acontecesse, como quando, em “Aquário verde”, Sutskever pede para ver os mortos.

(20)

Contudo, seria demasiado simples inserir aquilo que Sutskever escreveu no período do pós-guerra nessa lógica, considerando sua escritura meramente uma obra testemunhal, ainda que acrescida de inegável valor estético. A hipótese desta pesquisa é que as escolhas e a poética de Sutskever não são meramente nostálgicas ou de teor traumático (por mais que transitem ao longo e através desse espectro), mas que elas obedecem também a outro tipo de ordenação: a da criação de uma narrativa alternativa, contra-histórica, que enfrenta a narrativa oficial – uma narrativa de resistência que, ainda que a posteriori, se contrapõe à desintegração que Miłosz nos diz que períodos tempestuosos da história trazem (2012, p. 113).

Apesar de me referir aqui a uma resistência a posteriori, quase toda a biografia de Sutskever é uma história de resistência: durante a Primeira Guerra Mundial, sua família refugiou-se na Sibéria, retornando para Vilna depois da morte de seu patriarca. Na Segunda Guerra, Sutskever, que acabara de casar-se com seu amor de adolescência, Freydke, e de publicar seu segundo volume de poemas, será prisioneiro no gueto de Vilna – onde será integrado à “brigada do papel”, um grupo de estudiosos e intelectuais judeus escolhidos pelos nazistas para escolher “tesouros” que, após a eliminação dos judeus europeus, iriam para um museu. Ao invés disso, eles enterraram tudo o que puderam, retornando depois da guerra para recuperá-los. Ao escapar do gueto, Sutskever une-se aos partisans, tomando parte da resistência armada, e logo é levado para a URSS, por intercessão de Ilya Ehrenburg, que escreve a seu respeito no Pravda, fazendo de Sutskever um símbolo da resistência judaica contra o nazismo.

Trata-se, além disso, da introdução dessa poesia e do poeta, com algumas de suas preocupações éticas e estéticas, ao público leitor da língua portuguesa brasileira. A poesia de Sutskever recebeu, aqui, umas poucas traduções na coletânea de poesia judaica reunida por Jacob Guinsburg, Quatro mil anos de poesia (1969)6.

6 A recepção da obra de Sutskever, ao redor do mundo, apesar de mais ampla, ainda fica aquém do status do poeta. Foi amplamente traduzido par ao inglês e para o hebraico, além do francês, italiano, dinamarquês, polonês e alemão. Em todos esses idiomas, no entanto, Sutskever é traduzido quase que exclusivamente através da chave memorialística da sua obra, seja através do testemunho do khurbn ou das reminiscências da

(21)

Em alguns momentos, a nostalgia e a melancolia dominam sua poética. Ao invés da estagnação, contudo, o que sucede é um trabalho positivo do luto e da superação do trauma, ainda que a necessidade do rememorar não desapareça – poder-se-ia dizer que a memória do khurbn, para Sutskever, é um imperativo ético e estético. O que aparenta ser nostálgico em Sutskever é, na verdade, parte desse enfrentamento do trauma, que se dá na forma de um rizoma, ou seja, de uma relação não dual, que se forma não a partir de oposições dialéticas ou hierárquicas, mas de múltiplos pontos de entrada e saída. Isso significa que nesse enfrentamento do trauma que Sutskever busca fazer com sua poesia não existe uma dualidade, mas sim uma multiplicidade. Borram-se as fronteiras entre os opostos, cá e lá, antes e depois; diáspora e não diáspora acabam, em muitos momentos, sendo superpostos.

Cabe lembrar que, antes de 1948, quando foi fundado o Estado de Israel, os judeus eram um povo sem território, cuja lembrança de um lar ancestral mítico (a terra de Israel) convivia lado a lado com a errância e o diasporismo, existindo ao lado e no meio de outros povos, cujos costumes, literaturas e falares eram incorporados e assimilados em maior ou menor grau.

Existia um impulso de modernidade que era, no entanto, imbuído de qualquer coisa ligada a uma ancestralidade. Concorriam à esperança de algo novo, seja a emancipação judaica, a revolução proletária ou a fundação de um Estado nacional judaico (coincidindo com a localização dos reinos judaicos da antiguidade bíblica ou, mesmo, algures), e uma tradição que era traçada até os textos bíblicos e talmúdicos, ou, mais exatamente, através deles.

Esse amálgama entre passado e futuro, entre tradição e revolução não era algo novo na história judaica. Gerschom Scholem (2004) aponta para a existência dessas características no misticismo judaico (e nos misticismos de modo geral) e para a importância que esse misticismo teve para o desenvolvimento das linhas de força dominantes na modernidade judaica.

Jordan D. Finkin (2015) dá a essa característica da modernidade judaica o nome de doikayt (aqui-cidade) – termo que empresta do programa político do Bund: um sentimento de pertença dos judeus aos

(22)

locais em que habitassem, sem, no entanto, que precisassem ser assimilados. Inscreviam as vidas judaicas a uma cultura secular e centrada no idioma. Com isso buscavam enfatizar “o valor e o direito de os judeus viver onde quer que se encontrassem” (SHANDLER, 2003, p. 128-129). Amarrado a esse mesmo conceito, andava a ideia da yidishland (literalmente, país iídiche) – uma nação sem fronteiras, que se estendia através dos falantes do iídiche. Finkin estende o doikayt a um sentimento de pertencimento a algo maior que as fronteiras definidas no espaço e no tempo, a capacidade de percorrer o tempo como espaço e vice-versa, e deixava-se aberta ao que viesse da alteridade, borrando as fronteiras entre novo e antigo, entre o próprio e o do outro, entre o próximo e o distante e o universal.

Conexões naturais, reflexivas e orgânicas aos lugares são parte de ser humano. A autorreflexão judaica, no entanto, tende a delinear tensões sobre esse terreno. Os judeus são um povo diaspórico e o pensamento diaspórico, para o bem ou par ao mal, tem uma afinidade para com o portativo. Mas, diferentemente do pequeno pedaço de terra possuído pelo pai de Boris em A última noite de Boris Grushenko, de Woody Allen, que ele carrega consigo sob o casaco, o território não é portátil. O tempo, no entanto, e com ele uma percepção da história, uma conexão para com um sentimento de missão e de significado historicamente orientados, são todos transmissíveis. (FINKIN, 2015, p. 89).

Essa citação aponta para o fato de que os judeus, incapazes de herdarem através das gerações um território espacial, transmitiram aos seus uma espécie de território temporal – as noções de tempo e um determinado modo de encarar a história, bem como seu lugar dentro dela. E, “além disso, o 'narrador' do tempo judaico e do espaço judaico não é apenas o rabino ou o historiador, o líder político ou o intelectual público, mas de fato também o escritor e o poeta” (FINKIN, 2015, p. 89).

Porém, com o khurbn e a fundação do estado de Israel, os limites de tempo e espaço podem ser mais bem definidos, pois esses

(23)

eventos são marcos, pontos de partida. Há uma ruptura da continuidade histórica judaica, como havia acontecido na história ocidental através do advento da Revolução Francesa. Os judeus agora passam a ter um território físico para o qual olhar, bem como um futuro ligado ao destino dessa terra.

No entanto, a obra de Sutskever ignora essa delimitação, sendo que sua poética é, antes de mais nada, uma “poética da relação”: seu mistério fundamental está no outro e no modo com que ele o articula com o que é próprio a partir dessa construção rizomática, acêntrica. Dialoga com várias poesias europeias – os poetas poloneses são os primeiros e mais marcante desses interlocutores, mas também outros, como Paul Valéry e William Blake, estarão presentes como vozes que o poeta ouve e ecoa –, e com a literatura hebraica e iídiche, tanto em suas formas modernas quanto na forma da tradição. Ele continua, apesar de tudo, um indivíduo diaspórico. Ainda que abrace o sionismo e o Estado de Israel, é como se, depois de tantos séculos na diáspora dos judeus na diáspora, a ideia de um lar nacional não pudesse ser inteiramente assimilada.

Theodor Adorno (1962) afirmou que escrever poesia depois de Auschwitz tornara-se algo bárbaro, que chegava ao ponto de corroer até mesmo o conhecimento de porque se tornara impossível escrever poemas. Apesar da preocupação primeira de Adorno ser relativa a questões da indústria da crítica cultural, esse trecho pode ser lido como uma indicação de uma ruptura da continuidade poética de modo dialético depois do khurbn. Para Adorno, continuar a escrever (e a inscrever) a poesia no mesmo local de outrora tornara-se impossível. Isso, em parte, acontecera porque o capitalismo industrial e a lógica de mercado impossibilitavam a aceitação natural de uma “totalidade subjetiva”, haja vista que a “problematização da constituição da subjetividade é um problema fundamentado historicamente nas condições hostis e desumanas de existência propostas pelo capitalismo industrial” (GINZBURG, 2003, p. 64-65). Considerando o khurbn, porém, isso vai além: a experiência que se baseia em “uma experiência coletiva, histórica, de aniquilação” (GINZBURG, 2003, p. 66) que não permitiria, para Adorno, a constituição de um sujeito lírico pleno.

Isso não significa uma impossibilidade, em termos absolutos, da escritura poética. É, antes, uma percepção da necessidade de renovação

(24)

da poesia. Poéticas como a de Paul Celan (citado como exemplo por Adorno), Tadeusz Różewicz e Abraham Sutskever não apenas dão continuidade às poéticas pré-existentes, mas também reexaminam o lugar de origem da poesia e a retiram do campo da reificação que Adorno enxerga como barbárico.

Celan e Różewicz voltaram-se, em sua poesia, para o silêncio, para a negatividade e para uma certa insustentabilidade da linguagem humana para isso. Sutskever, por sua vez, insere a poesia num lugar divino, que advém da irracionalidade criativa – é algo que permeia toda a existência, a começar pelas palavras, mas a partir delas, chegando até a própria matéria e ao espírito. Essa relação de Sutskever com a poesia, em especial no pós-guerra, é muito similar à que, para Gerschom Scholem (2004), os místicos judaicos mantinham com a escritura e com a revelação.

Essa relação se pauta sobretudo no paradoxo: a experiência mística, o contato direto entre o indivíduo e o divido ou com a realidade metafísica, é inapreensível para a racionalidade, para as línguas humanas e, portanto, deve ser expressa a partir de paradoxos (SCHOLEM, 1995, p.60). Ao mesmo tempo o místico situa-se num determinado ponto histórico da história das religiões e precisa de uma tradição religiosa a que se referir, precisa aderir a uma escritura sagrada. (p. 63) Do mesmo modo constitui-se o paradoxo da poesia de Sutskever, em que a própria poesia é a escritura e a divindade, mas cuja revelação pura e simples, tornou-se impossível a partir do khurbn. Assim como toda experiência mística nasce, em primeiro lugar, de uma percepção imediata da proximidade com Deus, mas num contexto em que há um abismo entre este e o homem, a poesia de Sutskever nasce de uma percepção imediata do poeta de sua proximidade com a língua e a poesia, num contexto em que a história lhes impôs um abismo.

Abraham Sutskever descobriu a literatura iídiche, que inicialmente ignorava, depois de ter escrito seus primeiros versos em hebraico. O iídiche por muito tempo teve um estatuto de língua menor, não cultivada, sua literatura não-religiosa e moderna havia se desenvolvido apenas a partir das últimas décadas do século XIX. Abandonou, porém, a escrita hebraica de modo ritualizado, queimando os textos (CAMMY, 2007, p. 306). Assumiu o iídiche como idioma

(25)

literário com determinação que permaneceu mesmo em tempos difíceis para a língua, por exemplo, ao editar a primeira e mais importante revista de literatura iídiche de Israel, Di Goldene Keyt (“A corrente dourada”), até meados dos anos 1990. Escreveu aqueles que são considerados os mais sionistas dos poemas em iídiche (CAMMY, 2004), nos quais exalta a nova terra judaica como a terra do renascimento do povo assassinado – a mesma terra onde arbitrariamente se decidiu que o poeta deveria cantar noutra língua:

Seria esta a pequena grande terra sem medida?

Seria esta a terra, de que se fala no Sidur?

[…] seria a terra das visões e transes

em que nem mesmo a morte é real? (SUTSKEVER, 1961, p. 43).

Mas, ao invés de dividir-se em diferentes partes, não relacionadas ou contraditórias entre si, a obra de Sutskever forma um todo organizado em que há uma continuidade da narrativa histórica iídiche: a vivacidade do período entre guerras, os anos do khurbn e a sobrevivência da língua, literatura e cultura depois da Segunda Guerra Mundial e da Guerra de Independência de Israel.

Faz isso, porém, de forma subterrânea, não sendo parte da narrativa oficial: em Israel se fala e se escreve em hebraico, não em iídiche. Existe uma cultura israelense, sabra, que só se relaciona com a cultura iídiche no grande panorama do judaísmo.

Aliás, através da escrita de Sutskever, é possível apontar para a continuidade não apenas da história iídiche, mas de toda a tradição judaica, uma tradição que sobrevive graças às palavras e ao textual, e no que se insere junto com tudo aquilo que era produzido em hebraico (e, na diáspora, em outros idiomas, como o inglês de Saul Bellow, o polonês de Julian Tuwim e até mesmo o português de Moacyr Scliar): “A continuidade judaica sempre se articulou em palavras proferidas ou escritas, num sempre expansível labirinto de interpretações, debates e discordâncias, e numa interação humana única.” (OZ; OZ-SALZBERGER, 2015, p. 15).

A obra de Sutskever se insere nesse contexto, dando continuidade não apenas à cultura iídiche de Mendele Mokher Sforim,

(26)

Sholem Aleykhem e Y. L. Perets, mas também remontando à bíblia e a escritores hebraicos como Bialik e Agnon. A única coisa que essa obra nega é justamente a quebra dessa continuidade, seja a partir do khurbn, seja a partir da fundação do Estado de Israel.

É paradoxal, então, que, ao negar a narrativa que o sionismo cria para si mesmo, Sutskever assuma, ele próprio, as vestes de um escritor que poderia ser considerado sionista. Mas, ele não vê, na “nova criação”, corporificada no país judeu, uma nova vida, mas a continuação da vida anterior que, assim como ele e sua poesia, sobreviveu a tudo.

Considerando que a obra do poeta é bastante extensa, para efeito de uma análise mais detida, a dissertação elenca três poemas – sem, no entanto, excluir a possibilidade de mencionar ou citar outros –, “Aquário verde” (griner akvarium, 1955), “Para a Polônia” (tsu poyln, 1946) e “No deserto do Sinai” (in midbor sinay, 1975). A escolha desses poemas se deve ao fato de terem sido escritos depois do khurbn, ao fato de serem poemas longos e bastante significativos não só do escopo geral, mas por se referirem a diferentes forças estéticas presentes em sua escritura: a memória, o trauma, o luto entrincheirados em um (ou mais) lado indefinido de uma batalha entre as preocupações éticas e estéticas. A evocação do belo, do poético caminha nesses poemas lado a lado – mas não de forma livre de tensões – com o dever da memória, através da continuidade, da ressurreição ou do renascimento.

“Aquário verde” foi publicado em 1955, como parte do volume Ode à pomba (Ode tsu der toyb). O volume contém três seções: uma homônima que consiste num longo poema de configuração neoclássica; outra em versos brancos modernistas, sobre o continente africano, intitulada “Elefantes à noite” (Helfandn bay nakht); e “Aquário verde”, contendo fragmentos de prosa poética, chamados por Sutskever de “pequenas descrições”. Essa seção dividia-se em duas seções menores, a primeira sendo “Aquário verde” propriamente dita, e a segunda chamada “O diário do Messias” (meshiakh togbukh).

As “pequenas descrições” são textos de tamanho variável, de duas a quinze páginas, de teor descritivo e memorialístico, no qual, porém, intromete-se uma atmosfera surrealista. Sutskever cria cenas que, ao mesmo tempo que remetem ao seu passado em Vilna e ao período da Guerra, são oníricas, fantásticas. O poema “Aquário verde” aponta a uma tendência nostálgica e testemunhal. As descrições não

(27)

apenas remetem ao passado, mas tentam insistentemente trazer os mortos de volta. O desenvolvimento da análise do poema consistirá no tema do primeiro capítulo da dissertação.

“Para a Polônia” é um poema cronologicamente anterior, escrito em 1946, mas cujas preocupações e tensões serão mais bem percebidas depois da leitura detalhada de “Aquário verde”, por isso é analisado no segundo capítulo. Foi escrito quando, logo após o fim da guerra e os Tribunais de Nuremberg, o poeta tentou estabelecer-se na Polônia, mais especificamente na cidade de Łódż. A crescente atmosfera de hostilidade aos judeus restantes, cujo ponto culminante foi o pogrom de Kielce, fez com que ele e sua esposa decidissem abandonar o país. “Para a Polônia” é uma despedida: uma ode na qual o poeta elenca os motivos – especialmente literários, mas também históricos e culturais – que justificavam o seu amor pela Polônia, mas, não obstante, ele dá seu adeus ao país.

Ainda que o poema se inicie de forma nostálgica, apresentando uma versão romantizada e idealizada da Polônia, exaltando a história e literatura do país, suas benfeitorias aos judeus, essa visão idílica, porém, logo dá lugar a um sentimento mais amargo. Tal guinada mostra uma clara evolução da nostalgia e melancolia para um luto devidamente trabalhado: o objeto de amor do eu lírico, aquilo que, extrapolando os termos de Sigmund Freud (2014), foi o depositário de uma libido e que foi perdido começa a ser percebido como tal, deixa de ser idealizado, permitindo que esse desejo seja movido para um novo objeto.

Esse objeto vem apontado no poema, quando o eu lírico carrega o túmulo de Perets7, um dos pais da literatura iídiche, para a Palestina. Retornará em mais detalhes no poema analisado no capítulo terceiro da dissertação, in midbor sinay ('No deserto do Sinai'), publicado em 1975, pouco depois da Guerra do Yom Kippur. Esse é um dos poemas que rendeu a Sutskever a fama de ter escrito os mais sionistas dos poemas em iídiche. É, de fato, a aceitação e a libertação e transferência da libido para um novo objeto, a nova terra agora é constituída não de florestas, mas de desertos. O trabalho de luto aqui foi levado a cabo de modo 7 Yitskhok Leybush Peretz (comumente I. L. Perets) (1852-1915): escritor e dramaturgo judeu polonês, considerado um dos três grandes clássicos da literatura iídiche moderna, junto com Sholem Aleikhem e Mendele Mokher Seforim.

(28)

efetivo.

Isso, porém, não quer dizer que a ruptura com o passado foi total. Muito pelo contrário, é agora o ponto mais maduro dessa poética, em que se torna rizoma. A poesia de Sutskever é agora, mais do que nunca, uma escritura desterritorializada, localizada entre as coisas:

Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 37).

Isso acontece simultaneamente entre o tempo e o espaço que se confundem: entre Vilna e a Sibéria e o Negev e a África, entre a Guerra de Independência e o khurbn, entre os partisans e os rabinos, entre a modernidade e a tradição, etc. É uma poética cartográfica que, mapeando os acontecimentos, tempos e locais envolvidos na história judaica, na história iídiche, enfrenta a máquina do esquecimento, assim como Kafka, para Deleuze e Guattari (1995), enfrentava a máquina burocrática.

Ambas, a máquina burocrática e a máquina do esquecimento são duas faces da mesma moeda, a da reificação, pois transformam aquilo sobre o qual agem em produtos, em objetos não passíveis de contemplação e de recriação. Fazem isso através de múltiplos devires, os devires da continuidade e da sobrevivência do iídiche, que se manifestam através da memória, através da tradição, mas também através do anseio pelo novo. Isso acontece mesmo (na verdade, talvez especialmente por isso) que seja de forma subterrânea, contra-histórica.

Essa poesia desterritorializada, que não se prende a um lugar ou tempo específico, mas que lança suas raízes na multiplicidade, faz-se, então, poética da relação: aberta, explosiva, horizontal. Não há um cerne, mas muitos. Se, a partir de um paradigma freudiano, pode-se dizer que o luto foi resolvido e a libido, liberada, ela não recai somente sob essa nova terra, mas sobre uma miríade, uma infinitude de objetos, lugares e tempos, de forma não apenas a manter viva uma tradição, mas também a questioná-la e reinventá-la a partir da linguagem. E talvez o

(29)

que seja ainda mais importante: combater a reificação e a objetificação da tragédia e das vidas por ela tocadas.

(30)

1. AQUÁRIO VERDE

– Seus dentes são barras de osso. Atrás deles, numa cela de cristal, suas palavras agrilhoadas. Lembre-se dos conselhos de um ancião: as palavras vis, as que colocaram em sua taça pérolas venenosas, a elas dê a liberdade. Como agradecimento por sua misericórdia, elas construirão a eternidade para você; mas as outras, as inocentes, elas, que gorjeiam falsas como um rouxinol sobre um túmulo – não as deve poupar. Enforque-as, como se fosse o carrasco delas! Pois assim que você as deixa sair de tua boca ou de tua pena – elas se transformam em demônios. As estrelas não cairão, pois eu falo a verdade!

(SUTSKEVER, 1963, p. 227).

-Assim se inicia o poema em prosa, ou “pequena descrição” segundo Sutskever, chamado “Aquário verde”. O poema foi retirado da seção homônima, parte final do livro Ode à pomba (ode tsu der toyb), publicado em 1955. Compõem, também, “Ode à pomba” e “Elefantes à noite” (helfandn bay nakht). Respectivamente, esses poemas constituem um longo poema neoclássico em que o poeta busca um equilíbrio entre sua vocação estética e o tratamento ético de seu testemunho e da memória dos que pereceram no khurbn (MENDES, 2015) e uma coletânea de poemas modernistas em que o poeta experimenta as formas do mesmo modo como desbrava novas terras.

As palavras, por mais que surjam diante do poeta apenas quando do ato criativo poético, são, à sua maneira, inerentes, não somente devido à língua, mas também à forma da tradição e da memória que ele carrega. Essas palavras podem ser de vários tipos. Existem palavras inocentes, inócuas. E existem palavras cruéis, dolorosas, até mesmo assassinas. São justamente essas segundas que devem ser libertas na forma de poemas. As outras, as inocentes, não devem persistir – são as palavras que pertencem a outro ordenamento da realidade, um ordenamento mundano, prosaico. No fazer poético, nada passa despercebido, nada no fazer do poeta é inconsequente ou isento de

(31)

potência – nada pode ser inocente, pois o mundo não o é. E, se isso é verdade de modo geral, torna-se uma afirmação ainda mais veemente para o poeta que canta a morte e a (sobre)vida dos assassinados no khurbn.

E “Aquário verde” é isso, uma espécie de kadish – a oração que o judeu religioso recita em nome dos mortos que lhe eram próximos – em que o poeta relembra as pessoas e coisas que perdeu com o khurbn.

Essa rememoração acontece de forma bastante poderosa, os mortos, nessa poesia, são trazidos de volta de maneira quase tão brusca quanto foram, anteriormente, levados. Isso, sob a visão do modo de pensar a história e literatura judaicas hegemônico depois da Segunda Guerra Mundial, pode gerar uma leitura do poema como um poema de nostalgia.

A nostalgia pode, sob uma perspectiva de leitura dominante na modernidade, ser vista como negação do progresso e um aferrar-se a um passado perdido (NATALI, 2006). No mundo moderno em que a história passou a ser encarada como um processo, como um movimento, a ordem seria seguir em frente – o progresso.

O progresso dos judeus deveria ser abandonar a diáspora, em que foram perseguidos e humilhados, em que eram fracos, e ir para o Estado de Israel. O judeu israelense não seria mais o mesmo da diáspora; ele jamais se deixaria levar para a cidade da matança. Ele ergueria sua cabeça e resistiria, contra tudo e todos – fossem os ingleses, os árabes ou as dificuldades impostas pela terra. Abunda na literatura e na história israelenses a figura dos pioneiros judeus na Palestina, os halutzim, que drenavam pântanos e irrigavam o deserto, tudo isso com o fuzil na mão (NEUMANN, 2011).

E, para que se fizesse isso, para que esse desejo de conquista se concretizasse, deveria eliminar-se toda e qualquer ligação com o passado. O khurbn e a fundação do Estado de Israel configuram-se como uma revolução: um ponto de ruptura com o passado, a partir de quando se inicia uma nova história para os judeus. Uma história feita em hebraico, uma história em que o passado na diáspora era apenas lamento e dor. A narrativa oficial é de que o povo judeu esperou por dois mil anos para o retorno à terra, esses dois mil anos foram uma interrupção do curso de sua história, do curso de seu progresso. Para que isso se tornasse real, a vida da diáspora deveria ser apagada ou, pelo menos,

(32)

relegada a um papel subalterno. Não à toa que o iídiche se tornaria, em Israel, a língua das avós, “a língua batata dos pobres” (HARSHAV, 1994, p. 93).

Persistir escrevendo em iídiche – quando praticamente exigia-se que adotasse o hebraico, idioma do novo país, idioma eleito para o renascimento dos judeus – pode ser encarado como nostalgia, em seu sentido mais negativo. Conforme essa chave de leitura nos diz, ao escrever em iídiche ao invés de fazê-lo em hebraico, Abraham Sutskever se recusa a integrar-se de modo pleno a Israel. Através da leitura de alguns de seus poemas, repletos de rememorações das paisagens e personagens da diáspora, poderiam atestar isso. Aparentemente, é o que acontece em “Aquário verde”, em que o narrador pede para ver novamente os mortos, alegra-se de reconhecer seus rostos e tenta, por fim, tocá-los:

[...]

- Certo. Eu dou a minha palavra. Só sem frases longas. Pois o sol se torna ao ramo azul e num instante cairá no abismo...

- Eu quero ver os mortos!

- Que desejo... Nu, que seja. Minha palavra me é preciosa... Veja!

[...] Eu olho pra dentro: pessoas nadam lá como peixes. Inúmeros rostos fosforescentes. Jovens. Velhos. E jovensvelhos de uma só vez. Todos os que eu vi a vida inteira e que a morte ungiu com uma existência verde; eles todos nadam em um aquário verde, numa suave e sedosa música aérea. Aqui vivem os mortos!

(SUTSKEVER, 1963, p. 228).

O eu lírico aqui pede, claramente, para ver os mortos e sente-se bem ao lado deles, no mundo deles. O mundo presente é esquecido, em detrimento desse passado. Poderia buscar explicar-se essa nostalgia como sendo causada pelo trauma do khurbn, que “é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN-SILVA, 2008).

Nesse sentido, o teor memorialístico de “Aquário verde” torna possível pensar o poema dentro do panorama da narrativa do trauma,

(33)

como de fato boa parte da obra de Sutskever é tradicionalmente encarada pela crítica. Nesse caso, a própria forma do poema corrobora as dificuldades inerentes ao gênero. Afeito às formas clássicas, Sutskever parece incapaz de abarcar nelas o trauma que evoca no texto. Isso implicaria uma imposição à memória. Por conseguinte, o poema se apresenta em forma de prosa; em uma metarreferência narrativa, as palavras vencem o eu lírico e lhe escapam selvagens, incontroláveis, violentamente. Nesse debordamento, as palavras conquistam locais antes inauditos e realizam o que quer que desejem:

Aha, eis minhas palavras prestes a sair... conseguiram uma vitória sobre alguém e, aparentemente, decidiram conquistar fortalezas nas quais nenhuma palavra até então conseguira entrar. Em homens, em anjos e, por que não, nas estrelas? Bêbedas com as flores de papoula d'outro mundo, elas realizam suas fantasias. (SUTSKEVER, 1963, p. 228).

Essa narrativa do trauma, esse testemunho, no entanto, apresenta-se de modo indireto, haja vista que não é narrado o momento do trauma, mas o mundo pré-lapsário. Parece haver aqui uma qualquer coisa de lutuosa, um lamento pelo mundo que foi destruído.

O testemunho, ou seja, a narrativa do trauma, pode ser encarado como parte essencial do processo de luto, sem a possibilidade dessa narrativa, o trauma jamais seria trabalhado, acarretando uma falha naquilo que Sigmund Freud denomina “economia do luto” e condenando o indivíduo à melancolia (FREUD, 2014).

Alguns aspectos estéticos de “Aquário verde” apontam de forma sutil, porém mais direta, para esse processo de luto, de um processo curativo que decorre do período de luto, um antídoto à melancolia causada pelo trauma do khurbn. A cor verde é tomada como um símbolo para isso – a cor da vida e da esperança, sendo, no universo imagético de Sutskever, representativa da natureza e da poesia.

As duas forças, natureza e poesia, são dois pilares da construção de mundo do poeta. Abraham Sutskever não era um judeu religioso. Era influenciado por um panteísmo derivado de Espinosa – que, a propósito, é mencionado no poema intitulado “Uma conversa com Espinosa” (a

(34)

redn mit shpinoze, 1948). Em seus sistemas ético e estético, as duas feições (natureza e poesia) correspondem aos dois principais repositórios da divindade. Essas crenças eram aparentes desde seus primeiros poemas, como o ciclo “Estrelas na neve” (shtern in shney, 1936) e não desparece completamente nem mesmo em seus poemas do gueto, em que a poesia e a natureza representam uma chance de ressurreição ou sobrevivência – como em “A primeira noite no gueto” (di ershte nakht in geto, 1941).

Ao contrário, a proximidade com a morte só aproxima mais esse tema. Em “A mulher de chapéu Panamá” (di froy in der stroyener paname), segundo texto do ciclo de “Aquário verde”, ele evoca o “anjo da poesia” como seu protetor:

Num dia da Era da Carnificina eu estava sentado num quarto escuro escrevendo. Como se o Anjo das Canções me dissesse: Em suas próprias mãos está a escolha. Se sua canção me inspirar, eu te protegerei com uma espada flamejante, mas se não – você não deve reclamar... minha consciência permanecerá limpa. (SUTSKEVER, 1963, p. 231).

Ao mesmo tempo, no entanto, a cor verde aponta para algo de rançoso, de venenoso, à atmosfera sufocante do gueto (“[…] O verde dos abetos sombrios através da neblina;/ o verde de uma nuvem com a vesícula rota; [...]” ) e a ressurreição depois da tragédia (“[…] o verde que se revela num bambolê girado por uma criança de sete anos; /o verde das folhas de repolho sob gotas de orvalho que ensanguentam os dedos; / o primeiro verde sob a neve que derrete numa dança ao redor de uma florzinha azul; [...]”) – ressurreição que, assim como a sobrevivência, se tornaria possível apenas através da natureza e da poesia.

Esse poder regenerativo da poesia e da natureza, ao qual a cor verde faz referência, aparece não apenas em griner akvarium (“Aquário verde”), mas em outros poemas, como, por exemplo, vos vet blaybn (“O que vai restar”) em que Sutskever escreve: “Quem vai restar, o que vai restar? Uma expiração / Que fará brotar a grama de uma nova Criação/ Um violino-rosa, talvez, por si só vá resistir/ E sete folhas de grama

(35)

poderão discernir”. Na verdade, quase toda a obra de Sutskever escrita a partir do khurbn é permeada por essa ideia da poesia como força de salvação e fonte de proteção, pois “(a poesia) serve como testemunha das poucas ações humanas durante a violência que representam a habilidade da vida de reafirmar-se e negar a esmagadora influência da morte e da destruição” (LEAMAN, 2002).

O eu lírico encontra-se deslocado no lugar tal em que se encontra, no presente da narrativa. Mostra-se desejoso de dar continuidade a um passado – com o qual aparentemente se relaciona com muito mais intensidade do que com seu presente. O eu lírico de “O aquário verde” crê pertencer (ou gostaria de crer que pertence) ao lado interno do aquário. É o nostálgico de que Svetlana Boym fala, pois ele “está procurando um destinatário espiritual. Ao encontrar o silêncio, ele busca sinais memoráveis, desesperadamente errando ao lê-los” (2007, p. 12). O erro de leitura se evidencia quando o eu lírico, como Orfeu proibido de olhar para trás em busca de Eurídice, descobre que nada pode ser tocado, por mais que possa enxergar o mundo perdido, nada lá pode ser efetivamente alcançado. Ao tentar romper a parede de vidro do aquário, esta parede de vidro se rompe e tudo o que lá estava desaparece, sobrando apenas a percepção da morte, um teste de realidade concluído sem sucesso: “E os mortos, os mortos – eles morreram?”

Ainda assim, parece ser daquele outro lado irremediavelmente perdido que provêm as palavras de seus poemas. Esse lugar é o mesmo local que serve de fonte para tudo em sua poética: a métrica estrita de seus poemas, bem como o próprio idioma iídiche a as memórias e imagens que constroem esses poemas. Essas palavras são, ao mesmo tempo, tudo o que lhe resta desse mundo e elas são as responsáveis por recriá-lo. Foi, afinal, uma palavra – a soberana dentre elas – que atendeu ao seu pedido para ver os mortos. Até então, o poema parecia encontrar-se no campo que Svetlana Boym (2007, p. 13) define como “nostalgia restauradora”, que busca um retorno do passado, mesmo que não se trate de um passado verdadeiro, mas um pretérito que se configura através de valores considerados tradicionais, um retorno à estase original, ao momento pré-lapsário; no caso, a Polônia entreguerras (o lapso aqui seria o khurbn).

A partir de então, no entanto, o poema passa a apontar a outra direção. A nostalgia persiste, mas é uma “nostalgia reflexiva”. Essa

(36)

nostalgia, segundo Boym (2007, p. 15), não busca recriar o passado, pois entende os tempos histórico e individual, percebe a finitude humana e a irrevogabilidade dos fatos. Não há aqui uma tentativa de restabelecer o passado, mas sim uma mediação entre o indivíduo, a história e a memória, resultando na criação de uma estética individual.

Essa divisão, é claro, é fictícia. Ao mesmo tempo que ambas as espécies de nostalgia estão presentes no poema – e em toda a obra de Abraham Sutskever escrita a partir do khurbn –, a nostalgia reflexiva é sempre umas forças motrizes de sua poética. Da mesma forma, parece-me impossível que, após o trauma, a nostalgia restauradora não esteja sempre presente, subreptícia. A poesia em iídiche é a forma que Sutskever encontrou para lidar com ambas as formas de nostalgia e favorecer a reflexão, que lhe permitiu encontrar um lugar, ou melhor, um campo por onde movimentar-se, num ponto de contato entre o ético e o estético, entre o individual e o coletivo, entre o lembrar e o esquecer. E ferramenta essencial para isso são justamente as palavras, chaves de compreensão do mundo e de corporificação da realidade. Nesse sentido, a escritura de Sutskever assume um caráter místico: carregadas de significado, cada uma das palavras é um veículo do divino, e, como tal, constroem, desconstroem e reconstroem o mundo. É apenas perpassando as palavras, com seus pesos e sentidos ocultos, com sua relação histórica, que o mundo aparentemente perdido pode ter a continuidade que o poeta lhe quer dar.

Considerando esse caráter místico do poema, pode-se propor uma segunda forma de leitura do poema, em que ele é visto justamente a partir dos paradigmas de uma experiência mística, conforme propostos por Gershom Scholem (2012; BIALE, 2004).

É certo que os poemas de Sutskever não tratam de temas religiosos, mas quando Scholem (2012, p. 25) fala de experiências místicas ele cita a possibilidade de que existam místicos desligados da religião, inclusive citando como exemplos alguns poetas, William Blake e Arthur Rimbaud. Tampouco creio que o poeta tenha experimentado, ele próprio, uma experiência desse tipo, mas o poema é a narração de uma dessas experiências místicas. É a partir de sua inserção numa tradição altamente textualizada como a tradição (religiosa e cultural) judaica, em que a irracionalidade da experiência mística muitas vezes foi traduzida para a forma escrita, que isso se torna possível.

(37)

É preciso, em primeiro lugar, delinear uma experiência mística e encontrar suas características no poema. A experiência mística “é por sua própria natureza indistinta e inarticulada” e “ela não pode simples e totalmente ser traduzida em imagens ou conceitos agudos, e muitas vezes desafia qualquer tentativa – mesmo posteriormente – de supri-la com um conteúdo positivo” (SCHOLEM, 2012, p. 18). Eis que, após sentir um “movimento na alma” dá vazão as palavras, em um episódio que remonta às cenas religiosas e que, ao mesmo tempo, é descrito de forma fragmentária:

Trombetas soam.

Tochas como pássaros flamejantes.

Linhas as acompanham. Quadros de música. Defronte a uma dessas palavras, que avançava cavalgando usando uma coroa na qual reluziam minhas lágrimas, devia ser a soberana, eu caí de joelhos.

É significativo que a palavra soberana seja apenas descrita como tal e que ela jamais seja nomeada. Pois nomeá-la a dotaria de um significado fechado e isso é inadmissível: “a palavra absoluta é, como tal, insignificativa, mas está prenhe de significado” (SCHOLEM, 2012, p. 20).

Retorno, novamente, ao modo como as palavras transbordam desde o narrador. Esse modo poderoso e irrefreável é fruto da irracionalidade mística, bem como o já citado modo de organização do texto. A prosa livre, na forma de um fluxo de consciência, vence a rigidez da forma poética organizada com métrica e rima, destruindo os moldes previamente concebidos, reorganizando-os. É assim que, para o eu lírico, as palavras possibilitam a revelação e mantém-se como autoridade, “na sua infinita capacidade de assumir novas formas” (SCHOLEM, 2012, p. 21).

A experiência do eu lírico é, portanto, uma experiência mística. Destruição e criação caminham lado a lado, e há uma revelação. Essa revelação é profundamente órfica em seu significado:

– Eu quero sentir teu corpo mais uma vez! – Não se pode aproximar, o vidro, o vidro...

(38)

– Não, a barreira logo vai desaparecer, eu vou quebrar o vidro verde com a cabeça –

Depois do décimo-segundo golpe, o aquário rebentou.

Onde estão os lábios, onde está a voz? E os mortos, os mortos – eles morreram?

Ninguém. Defronte a mim – grama. E acima – um galho de laranjeira ou as crianças brincando com bolhas de sabão douradas.

O passado pode ser enxergado, através do poder das palavras, da memória. Pode-se reconhecer lugares, pessoas e sentimentos. Permanecerá, no entanto, sempre intocável, mas a barreira que separa o presente do passado não é totalmente impermeável, permitindo o diálogo ou a relação, pois não forma uma oposição dialética, para com o presente e o futuro, mas relaciona-se com ele através de múltiplas linhas de força, de múltiplas imagens.

A tentativa, no entanto, de tornar esse passado algo que pode ser tocado, ou seja, a tentativa de coisificá-lo, apreendê-lo sem pensamento e reflexão só faz com que se perca. Mais uma ve,z o poema traz um alerta ao poeta, mostrando que o passado deve ser interpretado e recriado, a relação com o passado deve ser dinâmica; uma relação estática – ter o passado tal qual era, tangível em todos seus aspectos – o destruiria, o afastaria.

Mais uma vez, a poética de Sutskever vai ao encontro das proposições teóricas de Gershom Scholem (BIALE, 2004). assim como a modernidade judaica era tributária direta dos movimentos místicos e de certa irracionalidade. A poesia de Sutskever é tributária dessa modernidade, é fruto de sua irracionalidade criativa, bem como das tentativas modernas – e racionais – de lidar com ela, é sua continuadora direta, ainda que, mais uma vez, subterrânea.

É como se aquilo que, durante os séculos XIX e início do século XX tivesse vindo à tona, formando a modernidade judaica, fosse assimilado agora por uma nova cultura. Por ser essa nova cultura, a cultura israelense, uma cultura judaica – essa assimilação deu-se sem a rejeição que pairava em torno da assimilação pelas culturas gentias. Era, porém, tal como as culturas europeias da modernidade, racional e focada na construção nacional. Ao mesmo tempo, na diáspora (em especial nos

Referências

Documentos relacionados

A Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, por intermédio da Divisão Multidisciplinar de Assistência ao Estudante (DIMAE/PROAES) torna público o lançamento do presente edital

Neste capítulo será discutido sobre a educação para população do campo através das aulas radiofônicas, as quais faziam parte de um programa educativo orientado

Ao analisar o conjunto de empresas de dois segmentos da BM&FBOVESPA –Energia Elétrica e Bancos –, verifi cando as métricas fi nanceiras de rentabilidade e risco Nunes, Nova

− Situação das ações, pois estas devem ser registradas em planos de ação, que vão conter data de abertura do registro, responsável pela ação e prazo para solução do problema,

No sentido de verificar a estabilidade do efeito corona, foram preparadas 2 amostras de tecido engomado de algodão para cada tempo de tratamento corona (1 a 25 min.), sendo que

E se, no que toca à viticultura, a aposta nas castas autóctones da região, como a Azal, Avesso ou Lou- reiro seria inevitável, a Quinta da Lixa alberga já, nas suas

Como já afirmei, esta pesquisa tentou compreender o olhar das crianças negras sobre sua realidade e suas relações no ambiente escolar. Através deste olhar, na simplicidade das vozes

Cândida Fonseca Duração e local: 11/09/2017 a 03/11/2017 – Hospital São Francisco Xavier Objectivos e actividades desenvolvidas: Os meus objectivos centraram-se na