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2 PARA A POLÔNIA

3. NO DESERTO DO SINA

O sionismo é um nacionalismo. Como tal, fundamenta-se sobre uma série de premissas, e uma delas é a de uma ideia da fixação, do enraizamento. Associada à existência de uma raiz única que abarque a totalidade, está a ideia de poder. Disso surge uma dualidade entre cultura e barbárie, ou seja, entre o que é próprio e o que pertence a um outro (GLISSANT, 2005). Essa dualidade exclui de si o outro e tem por consequência a reificação das identidades. A partir do momento que categorias como o próprio e o outro tornam-se definidas e fechadas em si mesmas, tornam-se coisas. Foi o que o sionismo fez, já, em seus primórdios, no século XIX, antes ainda que tivesse aspirações concretas a um território.

O que torna o sionismo, porém, “único entre movimentos nacionais” é que “[...] pode-se dizer que foi concebido na linguagem” (CHAVER, 2004, p. 2). Isso, segundo Rabkin (2010), deve-se à ênfase da tradição judaica nas palavras, mais do que à inexistência de um território ao qual definir como próprio.

Os ideólogos do sionismo clamavam o idioma hebraico como sua herança e, no início do século XX, este deveria ser usado pra construir um “novo homem hebreu”. Esse “novo homem” seria viril, produtivo e moderno, em oposição ao “judeu da diáspora”, ainda cheio de costumes obscuros e atrasados, fraco, submisso. E o iídiche, como um dos idiomas desse “judeu da diáspora”, deveria também ser descartado.

O “descarte” e a desvalorização o iídiche obedecia, também, ao imperativo de eliminar uma ameaça. Os pioneiros sionistas, ao migrarem para a Palestina, a enxergavam como uma terra vazia de cultura, convencidos de sua natural superioridade (RABKIN, 2010, p. 138) – haja vista que carregavam consigo uma cultura de matriz europeia. O árabe, falado pelos judeus, árabes e cristãos que já estavam na Palestina quando eles chegaram, no início do século XX, podia ser ignorado. Era, muitas vezes, visto como um sinal de primitivismo, assim como um obstáculo ao projeto cultural hegemônico, voltado ao ocidente (HELMAN, 2014, p. 37). O iídiche, pese tudo o que a propaganda sionista dizia a seu respeito, ainda era de origem europeia, além de ser o idioma de parte substancial das massas de novos imigrantes, e, portanto, poderia oferecer uma ameaça à hegemonia do hebraico. Com a criação

do Estado de Israel, isso acabou por ser traduzido no ordenamento jurídico, pois as regulações israelenses:

[…] tornaram ilegal estabelecer um teatro iídiche, publicar um jornal em idioma iídiche, abrir escolas em iídiche, bem como outras instituições iídiches. Considerações políticas e ideológicas suplantavam quaisquer outras. O iídiche deveria ser combatido de forma mais vigorosa do que qualquer outra língua, pela simples razão de que ameaçava a hegemonia do hebraico. (RABKIN, 2010, p. 139).

O iídiche acabou associado, ao mesmo tempo, com a vida da diáspora, aquela vida judaica fracassada e vitimada no khurbn, e com uma série de estereótipos antisemíticos. Associava-se intimamente com os “seres humanos inferiores, que foram como cordeiros para o abatedouro” (PORAT, 1990, p. 239).

Que um escritor, que um poeta iídiche permanecesse em Israel e, ainda mais, que abraçasse e acolhesse o sionismo parece surpreendente. Que um poeta como Sutskever, antes imbuído de ideais de universalidade e de apreço à tradição poética como algo cosmopolita, não apenas judaico, o faça é quase contraditório.

Mas, foi exatamente isso o que aconteceu, e o objetivo neste capítulo é justamente apontar que essa contradição é apenas aparente e que a assimilação de uma temática sionista à poética de Sutskever, antes de corroborar a reificação das vidas judaicas da diáspora, é uma forma de defender essas vidas.

Os dois capítulos anteriores discorrem a respeito de poemas em que o objeto é, de alguma forma, a diáspora. Em “Aquário verde”, há um rememorar místico do mundo que existia antes do khurbn, resultando na percepção de destruição dessa vida, mas, ao mesmo tempo, da persistência dela através das palavras. Já em “Para a Polônia”, o tom é mais amargo, tanto que se chegou a afirmar que nesse poema “ele repudiou o mito da simbiose cultural polono-judaica que ele ajudara a alimentar” (CAMMY, 2004, p. 240). No entanto, por mais que o poema tenha esse teor de despedida, a crença da universalidade da poesia se mantém e, junto com os restos mortais de Perets, o eu lírico

não carrega apenas a cultura judaica, mas também a polonesa – e isso lhe serviria como matéria-prima não para mera recriação do passado, mas para a reflexão criativa a respeito deste.

O presente capítulo apresenta, então, uma espécie de contraponto a eles. Nos dez poemas que compõem o ciclo “in midbor sinay” (“No deserto do Sinai”), bem como em outros poemas do período, a vocação de Sutskever para a defesa da cultura iídiche, da cultura judaica da diáspora, é confirmada – ao mesmo tempo, essa cultura retorna ao local de sua origem mítica.

Em primeiro lugar, é preciso entender que a narrativa sionista, como já dito, combatia a vida da diáspora como indigna e como atrasada. Com a consolidação de Israel como um Estado Nacional e, mais ainda, como o Estado Nacional Judaico, essa tônica é enfatizada. A historiografia sionista ganha força e profissionaliza-se.

Isso mostra-se problemático. Problemático no sentido de que essa historiografia “subscreve a uma combinação impossível de aproximações positivistas e ideológicas à história: os fatos, considerados como podendo ser encontrados exclusivamente em arquivos políticos, são tratados como a base para validar a narrativa ideológica sionista” (PAPPE, 1995, p. 67). Foi, de fato, uma historiografia que pode ser considerada bastante parcial, sendo alvo de críticas a partir do final dos anos 1970. Seus pesquisadores, afirma Pappe (1995), eram particularmente atraídos pelo conceito de E. H. Carr da “história dos vitoriosos”, ignorando, porém, os apelos de Carr à objetividade.

Isso geraria algo que, hoje, talvez nos pareça contraditório, mas as primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial, durante os primeiros anos do Estado de Israel, foram:

[…] um período durante o qual a memória do Holocausto foi suprimida na consciência nacional israelense. Clamou-se que, durante esse período, o Holocausto não teve um papel mais do que marginal na formação da identidade nacional israelense, que ele nunca esteve no centro do discurso público, que não era internalizado pelo sistema educacional. As pessoas não queriam ouvir sobre o Holocausto. A luta que precedeu a fundação do Estado e, depois, a Guerra da

Independência, suprimiram o choque do Holocausto e o impacto que teve. Não havia espaço no novo e heroico estado para exibições de fraqueza e humilhação. (SHAPIRA, 1998, p.40).

Desta forma, não apenas o khurbn, mas tudo que se associasse a ele – como o iídiche e toda a vida judaica da diáspora – era deixado em segundo plano, passava por um processo de apagamento, de reificação: naturalizados como pertencentes a um passado já esquecido e abandonado, que nada ou pouco teria a ver com a vida do “novo homem israelense”. Narrativas do trauma, narrativas da memória não deveriam ter lugar ou, então, deveriam ter um lugar meramente marginal.

Sutskever, no entanto, tentaria conciliar as duas coisas. Continuaria a escrever sobre o que fora perdido mas, paulatinamente, incorporaria Erets Isroel em sua cartografia poética, ainda que não sem tensões. No volume intitulado Em carruagens flamejantes (In fayer vogn, 1952), por exemplo, o êxtase do retorno dos judeus à sua terra ancestral se alterna com a ansiedade da separação e medo do esquecimento do que havia ocorrido na Europa – não apenas do khurbn, mas do heroísmo dos que a enfrentaram. É esse volume, por exemplo, que integra o poema intitulado “Iídiche” (Yidish), no qual pergunta carregado de ironia e desafio, se:

É preciso que eu plante minha língua e espere até que se transforme nas amêndoas com passas dos ancestrais?

que graciosa piada

prega meu irmão de poesia, o de costeletas, enquanto minha língua mãe se põe?

Lembra, em outro poema, que o passado não pode, jamais, ser apagado, substituído por uma nova narrativa:

E vais pintar por sobre a imagem da rua judia,

com um pincel imerso em tua ensolarada, nova paleta,-

A imagem anterior com um machado irá te atacar e então

ferir de tal modo, que o novo jamais irá se curar.

Ao mesmo tempo, porém, o volume contém uma série de poemas em que a terra de Israel e, sobretudo, o deserto é exaltado como o lar judaico. Lar ao qual agora os judeus retornam, depois de longo exílio, retomando muito do que aquilo que tinham deixado para trás, desde os tempos bíblicos. O ponto culminante dessa integração de Israel à poética de Sutskever, se dará no poema “No deserto do Sinai” (In midbor sinay, 1956).

Em 29 de outubro de 1956, a escalada das tensões no conflito árabe-israelense resultaria na segunda guerra entre Israel e Egito, a Guerra do Sinai. As forças israelenses tomariam a península do Sinai e, muito rapidamente, derrotariam os egípcios. Durante este conflito Sutskever serviria como correspondente do exército israelense, e dessa experiência redundariam os poemas de No deserto do Sinai (In midbor sinay, 1957).

É a partir desse poema que os receios e reservas de Sutskever com relação ao sionismo e ao Estado de Israel, seu temor do apagamento parecem deixar de existir, ou, ao menos, diminuem em grande medida. Em vez de dividir a poética de Sutskever e dois momentos distintos, esse momento marca o ápice de sua maturidade poética e do equilíbrio entre os diferentes compromissos éticos e estéticos do poeta.

Pode-se afirmar, porém que, se em momentos como os de “Aquário verde” e “Para a Polônia” sua poética constrói-se como poética da relação, portanto rizomática, desterritorializada, uma poética que aceite Israel e o sionismo de modo livre de dúvidas aponta para uma direção simetricamente oposta – ligando-se a um território.

A ligação de Sutskever com o Oriente Médio, porém, não é uma ligação nacionalista pura e simples e, ao invés de contradizer, o sionismo de Sutskever, acaba por confirmar a universalidade de sua poesia, reforça seu caráter diaspórico. Israel surge não a partir da criação do Estado Nacional, mas como uma força que presentifica e une o passado bíblico e a vida em Vilna. O deserto é, assim como a Polônia, um lugar de memória, de saudade:

A lágrima, a saudade em minha face,

é velha como tu. É cria do deserto.

Ela é um elogio cuja honra nasce

ao ver outra ardendo em tua memória -

essa, que é granito reluzente.

Esta, porém, é uma saudade menos amarga do que aquela que permearia poemas como os escritos no gueto ou 'Para a Polônia”. Não que haja aqui uma nostalgia restauradora, que “sublinha nostos (lar) e busca uma reconstrução transhistórica do lar perdido” (BOYM, 2005, p. 13), mas há justamente um sentimento de continuidade, que une distintos passados, aquele vivido e aquele transmitido pela tradição, para a criação de um presente satisfatório e imbuído de traços heroicos.

Se, à primeira vista, isso se insere perfeitamente na narrativa sionista, que constrói seus mitos seculares a partir do passado bíblico, há qualquer ruído quando Sutskever insiste em lembrar os mortos do khurbn, em lembrar as aflições e perdas pelas quais os judeus há pouco haviam passado:

No deserto do Sinai sua jovem nação se fará.

Teus mandamentos e tábuas de pedra, teus registros

gravados com um dedo flamejante

pelos esqueletos dos guetos e de Treblinka!

O tempo todo, também, o poema lembra a origem diaspórica do eu lírico (e do poeta). Isso obedece justamente ao imperativo de não deixar que o passado caia em esquecimento, falando em diversos momentos a respeito (e tornando-se parte) dos “filhos da diáspora”. E não deixa, em momento algum, de olhar para Israel sem ter a sua vida na Polônia como lente. Se, nos capítulos anteriores, escrevi que Sutskever ressignificava o passado visando construir um futuro, este é o futuro que constrói.

Ele deixa de temer ser assimilado e apagado para ser um assimilador: é o poeta iídiche que assimila seu novo lar, e não o contrário. Metaforicamente, não se deixa traduzir ao hebraico, mas traduz Israel para o iídiche, criando uma continuidade para a história dos judeus europeus. Isso se dá através de dois eixos principais: o da

conciliação de diferentes tempos e o da absorção das paisagens do deserto, resultando na elaboração de uma cartografia poética e emocional que passa, necessariamente, por uma intersecção com a tradição.

Assim como os sionistas viam no hebraico sua herança maior, Sutskever encontra na tradição judaica, na forma da bíblia e do talmude seu elo com a terra na qual se encontra, o único que lhe permite dizer que está “retornando”. Ao mesmo tempo que retorna ao misticismo panteísta de sua juventude, colorindo e ressignificando as paisagens naturais, Sutskever adota o misticismo religioso, criando um texto repleto de camadas – em que muitas delas aludem justamente à tradição religiosa erudita do judaísmo.

Isso surge já a partir da forma: são dez poemas, o traz à tona os dez mandamentos recebidos por Moisés justamente no monte Sinai, de doze estrofes cada, aludindo às Doze Tribos de Israel. Mas, está presente, também, no conteúdo, como no exemplo, em que existem menções a diversos trechos da bíblia, como ao Salmo 94 (Senhor da Vingança) e às profecias de Ezequiel – a montanha de ossos:

Despertou no Sinai, Senhor da Vingança

quando ao teu cume elevaste

teu povo morto, a montanha de ossos-

uma montanha de lamentos, dos pombos inocentes!

E clandestinamente aqueceu com vozes animadas

o sangue de crianças espirrado

as veias em teu granito e na pederneira

e revelaste tua segunda marca:

esmagados como brinquedos sob a sola -

esmagados no Sinai a morte e o medo.

E nos lábios brilham teus projéteis

enquanto permaneces ao lado de teus filhos.

Coexistem, no entanto, menções ao khurbn: quando a montanha torna-se uma montanha de lamentos e as crianças mortas, os brinquedos esmagados. Mas são, também, no Sinai esmagados a morte e o medo, e o futuro judaico se abre com a coragem dos que, no momento, lutavam.

E essa luta, acima de tudo, era feita de heroísmo. Ali, no mesmo lugar onde outrora ocorrera o matam toyre, a revelação da lei divina,

agora acontecia o matam gvuyre, a revelação da coragem: Tire os sapatos e entre em formação

Tire os sapatos e deixe que a areia te limpe

Aqui é o momento da revelação da coragem

O silêncio é um abismo. Um abismo da saudade.

O mesmo poema termina evocando a esperança de que, finalmente, os judeus possam parar de ser perseguidos e encontrar a paz:

Uma oração clama da mesma profundeza

que ela poderia no coração, ao som das cornetas,

lapidar-se num diamante sem diamante:

que possam tu e tua paz chegar de uma só vez.

Desde o monte Sinai sopra pra longe o ódio

Firma com teus filhos uma nova aliança

e torna verdes as areias vermelhas.

A fundação e as guerras pelas quais Israel passou não servem, na poética de Sutskever, para apagar a vida judaica na diáspora, antes passam a ser sua continuidade histórica. Os partisans de outrora agora vão ao deserto lutar por seu novo país.

Um povo que foi perseguido e morto tem, em seus poemas, como única opção de sobrevivência esse renascimento heroico. Renascer, no entanto, não implica abandonar o passado, transformando-o em histórias a serem repetidas sem nenhuma reflexão, mas, ao contrário, conciliá-lo e integrá-lo com o presente.

Ao contrário do que aconteceu em “Para a Polônia”, no poema “No deserto do Sinai” não há mais nenhuma tentativa de divórcio do passado. A despedida da Polônia torna-se desimportante, deixa de ser um aspecto central da vida, tanto individual quanto coletiva. A luta pela continuidade é a tônica: desde os tempos bíblicos, da travessia do deserto do Sinai até o khurbn e para além dela, na Israel renascida.

E o deserto apresenta-se como uma nova paisagem, como uma nova geografia da poética de Sutskever. Junto com a Sibéria, com Vilna, com o gueto as florestas polonesas, o deserto e os contornos do litoral israelense passam a ser parte integrante de seus versos, como se vê na segunda parte de “No deserto do Sinai”:

Ao lado de Sanafir, ilha de coral

a coroa estrelada defronte à baía de Salomão

Tua sombra no mar flutua, com o sol por beira

e rumoreja sobre eles, com uma própria demanda. Tenho uma mão imersa no mar:

– Um estilhaço vem, a mão não ficará vazia

No Mar Vermelho, purpúreo séquito derrama em meus dedos amor e liberdade.

E mais longe, mais longe ele me leva até a amorosa fonte desse rumor A Rainha de Sabá, com olhos de chama, desvela o peito, vinda da abissínia.

Toda essa geografia será retomada várias vezes durante o poema, num misto de uma geografia factual, com a geografia mítica da bíblia. Dentre toda essa cartografia, é o deserto que ocupa um lugar central. E, assim como fizera anteriormente com a Sibéria, dando-lhe luzes e cores (em contraste à imagem da imensidão branca e estéril), o deserto de Sutskever é colorido, luminoso.

Sutskever, com esses poemas, evoca um sionismo que diferia daquele dominante – tanto na Israel dos anos 1950 quanto na de hoje. Não negava a necessidade da existência do Estado de Israel e nem sua centralidade na vida judaica, a jovem nação significava para ele um porto seguro para os judeus, um lugar onde não seriam mais sujeitos às agressões sofridas na Europa. Combatia, no entanto, o apagamento das vidas da diáspora, ou sua condenação como fracas ou inválidas. E, sua maior arma nesse processo era justamente a língua iídiche – que, em sua visão, poderia conviver perfeitamente lado a lado com o hebraico.

Há aqui um ponto de tensão, no entanto: como poderia sua poética, ao mesmo tempo, abraçar o sionismo – uma ideologia nacionalista, marcada por um nomadismo em flecha e com pretensões de poder sobre um território – e defender a pluralidade linguística, coisa excluída de si pelo nacionalismo?

A poética de Sutskever em “No deserto do Sinai” é uma poética da relação, de um poeta e um povo que foram, forçosamente, “desenraizados”. O khurbn é, sem dúvida, a experiência definidora de uma cultura iídiche na segunda metade do século XX: é em iídiche que se expressam os sobreviventes e os mortos. Os sobreviventes que, no

fim, foram exilados e tiveram de se recriar. Os sobreviventes que, ao contrário dos sabras, não acreditavam criar nenhuma força moderna. O renascimento do povo judeu na poética de Sutskever não cria nenhum “novo homem”, mas é feito pelo desenraizar dos partisans e dos sobreviventes que tiveram que deixar a Europa, em busca de um novo lar.

Édouard Glissant (2005, p. 08) escreve que “a relação não é feita de coisas que são estrangeiras, mas de conhecimento compartilhado. A experiência do abismo pode agora ser dita como o melhor elemento de troca”. A experiência do abismo, no caso, é justamente o khurbn: é através dos mortos, ou seja, através da memória que a relação pode estabelecer-se e, efetivamente, se estabelece: com o exército israelense, com o passado bíblico e com os judeus sabras.

Justamente por terem tido, em primeira mão, a experiência do “abismo”, no entanto, a identidade dos sobreviventes não pode ser contida totalmente na “raiz” sionista – ela existe em relação com essa raiz, mas também com outras, como a poética de Sutskever consistentemente demonstra em sua abertura.

EPÍLOGO

A poesia é, quase sempre, um vetor de perguntas. Mesmo que, na maior parte do tempo, não haja um ponto de interrogação claro, os questionamentos estão lá. Muitas vezes, a própria linguagem está em questão. Em outras tantas, outros tipos de dúvidas se somam.

A poesia de Sutskever não é diferente. É a poesia de um sobrevivente, de um “filho da diáspora” que precisa reencontrar seu lugar no mundo. Reencontrar o lugar da própria poesia, pois a vida que tinha terminou, de modo cruel, de modo brutal. É um sobrevivente que se encontra sozinho, sem um interlocutor.

Conquanto a Alemanha Nazista tenha sido derrotada na guerra, os campos e guetos liberados, os judeus europeus foram os grandes perdedores. Sua memória, sua cultura, tornou-se, em grande parte, peça de museu. Foram esquecidos e, quando lembrados, sua existência foi posta à margem pelos próprios judeus, pelos próprios sobreviventes.

Em seu livro Becoming Israeli, Anat Helman nos traz uma triste anedota a respeito do destino da língua iídiche e da cultura judaica de modo geral. Um professor pergunta a uma menina de seis anos, numa classe primária em Israel, nos anos 1950, se ela gostaria de viver nos

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