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2.4. O Mato do Tição Através das Palavras Escritas, Faladas e dos Desenhos

2.4.2 Falando Sobre o Mato do Tição

2.4.2.2. Aqui é um Quilombo?

A palavra quilombo não é desconhecida das crianças e circula atualmente com mais frequência na boca dos adultos, lideranças da associação. Também as pessoas que desenvolvem projetos na comunidade sempre se referem ao lugar como um quilombo. O termo consta no nome da associação “Associação quilombola do Mato do Tição”, nos documentos e relatórios emitidos pela instituição e está presente nos discursos das pessoas de fora e de dentro da comunidade. Também, na entrada da estrada que liga o centro de Jaboticatubas à comunidade existe uma placa com a inscrição: “Comunidade Quilombola do Mato do Tição” sob as insígnias do governo federal, estadual e do município de Jaboticatubas. Também como já citado aqui, na porta da casa de D. Divina, uma das matriarcas, existe uma placa talhada em madeira com a inscrição “Quilombo do Mato do Tição”.

Ao serem perguntadas se sabiam o que era um quilombo, as que souberam responder disseram:

“Ah... quilombo é uma cidade assim... que ela é de preto”. “Lugar de escravos fugidos”.

“Comunidade de pessoas negras”. “Lugar que tem muitos negros”.

Ao serem perguntadas por que ali era um quilombo, algumas responderam: “Essa cidade é muito legal e tem cara de ser quilombola, por causa que... das atividades muito legal. Tocar candombe, cantar em folia, dia do Judas assim, então...”

“Que eu vi lá na placa, cidade quilombola do Matição”. “Porque tinha muitos escravos que fugiram pra cá”. “Porque aqui tem muita cultura”.

“Porque aqui é uma comunidade”.

“Perto da casa do Tio Vando, depois do asfalto, tem a placa do quilombo do Matição, é o início do quilombo”.

PAULA (2014) tratando dos processos identitários das crianças quilombolas de Santa Catarina, refere-se a importância do pertencimento dessas crianças ao seu lugar e a tudo que lá é compartilhado de forma coletiva “o lugar que elas vivem não é transitório é vivido cotidianamente porque toda a gente se conhece e isso faz com que criem laços e raízes afetivas, especialmente quando essas vivências são entremeadas de brincadeiras coletivas” (p. 179). As crianças de Mato do Tição demonstram esse laço

afetivo com sua comunidade quando em tom de orgulho vão listando as diferenças de lá com relação às outras comunidades.

Quando perguntadas sobre o que tinha de diferente no Mato do Tição que não havia em outros lugares, as crianças quase que unanimemente fizeram referência aos marcadores identitários como as festas, o candombe e as celebrações existentes na comunidade acrescentando outros componentes como aula de capoeira, aula de violão, fé, muita cultura.

“Reza de São João, reza de maio, mais fé”.

“Capoeira, teatro, festas de São João, Cruzeiro, reza de São Pedro, maio de coroação”.

“O candombe, a fogueira, a reza do cruzeiro, a festa de São João”.

“Muita coisa. É tudo diferente. Lá em Jabó tem carro trançando pra lá e pra cá e aqui não tem, aqui tem rio e lá não tem, lá tem um córrego sujo, poluído. Lá os cara bebe e sai caindo, aqui os cara bebe e não cai. As festas tem... aqui tem festa e lá pra eles festa é cachaça, aqui tem reza, música e lá fora é só bebida.”

“Aqui tem muita cultura”.

Sobre as coisas boas, as referências são as brincadeiras, a família, a convivência com os parentes, as festas, as comidas e músicas das festas. Para as outras gerações as festas eram muito boas, assim como os bailes que atravessavam a madrugada e a união do povo.

A identidade como criança do Mato do Tição é muito forte entre as crianças. A compreensão de que são quilombolas aparece como um discurso que é construído a partir de várias vivências em torno dessa identidade que pode ser considerada recente no interior da comunidade.

A utilização do termo quilombola dentro de Mato do Tição acompanha o processo nacional sobre o reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo pelo Estado brasileiro. Na esteira desse processo seguem as ONGs, universidades, pesquisadores das mais diversas vinculações. Aos poucos essa identidade vai sendo incorporada e tecida entre as pessoas de Mato do Tição dando um lugar de visibilidade da comunidade confirmado pelo interesse de pesquisadores.

A identidade quilombola vai sendo incorporada e negociada principalmente por aqueles que têm maior engajamento político. No caso de Mato do Tição, o reconhecimento representa a possibilidade de terem a titulação das terras e recuperação de muitos hectares perdidos para sitiantes e fazendeiros ao longo do temp. Assim como

verbas para a execução de projetos destinados principalmente à preservação cultural e melhoria da infra estrutura local. Outros direitos como verba especial para o município que tem estudantes quilombolas nas escolas, direito a uma educação diferenciada ancorada em princípios que valorizam e incorporam no currículo a história e cultura quilombola e afro-brasileira ainda não são do conhecimento da maioria dos moradores.

As crianças vivenciam todo esse processo e vão aprendendo na escuta dos mais velhos, nos projetos desenvolvidos na comunidade criando suas formas de compreensão do que é ser quilombola, nos dizeres de Ayana (10 anos) “ser do Mato do Tição é bom demais”!

As coisas ruins foram ditas somente por algumas crianças que citaram a desunião que acontece de vez em quando, a morte de pessoas queridas, o desrespeito com a natureza partindo de pessoas de fora, o barro na rua quando chove44. As questões negativas não foram associadas às coisas materiais com exceção do barro na rua. Foram relatadas as perdas recentes de pessoas queridas e algumas situações de desunião que disseram ocorrer entre alguns.

As pessoas de outras gerações, falaram das dificuldades para a sobrevivência, o trabalho exaustivo, as dificuldades em conseguirem os recursos financeiros, a interrupção dos estudos, a falta de água encanada e energia elétrica, etc. As crianças vivem uma nova fase, principalmente no que se refere às condições materiais e oportunidades de conclusão dos estudos. Alguns já acenam o desejo de entrar na universidade e construir uma carreira de médica, contadora, advogada, cantora etc. Um menino fez reflexões sobre algumas mudanças ocorridas desde o início dessa pesquisa, em 2012, até a última conversa que tivemos em janeiro de 2015. Após um comentário de que já havia se passado três anos da minha primeira visita ao quilombo, ele falou:

Ah! Então deixa eu ver o que mudou, o que tá diferente de 2012... O que mudou... chegou água da Copasa45, não é tratada não; é do poço, não é

mais da cisterna; colocou calçamento46, quando chove não pega barrela

43 Essa questão foi em parte solucionada com a colocação de um pequeno trecho de asfalto na rua da

comunidade.

44 A Prefeitura instalou um poço artesiano que abastece toda a comunidade, anteriormente o abastecimento era feito com a água do córrego e depois através das cisternas.

mais; colocou asfalto; pintou a igreja; colocou toldo pras festas, quando chove não tem problema, as mulhé não estraga os cabelo, que gasta fortuna pra alisar porque o cabelo é ruim47. Tem mais coisa: o Galo ganhou a Libertadores, ganhou campeonato mineiro, (risos) (Enan) Já os mais velhos contando do seu tempo de crianças trazem lembranças de muitas dificuldades.

Era muito ruim, muito ruim... na minha casa, nós ficava, quando tava chovendo, nós ficava encoído, na hora de dormi nós ficava encoído, pois chuvia na cama , pelejava, pra tampá mas não tinha jeito, tava pingando assim na cama e nós encoía assim pro lado que não chovia, sentava até em cima de um travesseiro esquisito e puxava a coberta pra nós durmir um sono, foi brabo mesmo, foi brabo. Mas todo mundo tinha alegria, tinha alegria, ninguém xingava uns aos outros por que um tava melhor do que o outro. Tava tudo uma coisa só mesmo. Passei por tudo ruim, mas tô aí alegre assim mesmo. Tocou eu danço, a aperna tá doendo, o corpo tá tudo doendo mas não tem problema, depois tudo melhora, eu lá vou assim, não tem tempo ruim pra mim não. Deu pra trabaiá nós trabaia, deu pra dança nós dança, deu pra cantar nós canta e não tem raiva assim não, criei meus menino desse jeito, e eles obedece muito bem, o que tá aí, os que foi... (D. Bina, 78 anos).

Ah! Quando eu era menina eu trabalhava desde 7 anos pra comprar material de escola, não ganhava nada não, eu tinha que trabalhar e comprar. Eu trabalhava na casa dos otro e ganhava três e cinquenta por dia e comprava minhas coisas. Hoje tá muito melhor, as crianças têm muita coisa boa, tem mais oportunidade (Luíza, 30 anos).

A vida de primeiro era muito difícil. Tinha que buscar água no córrego, nas latinhas pra lavar vasilha, fazer as coisas. A gente ficava com vontade de ter um banheiro dentro de casa mas ficava pensando que tinha que tê energia, água encanada e pensava que nunca ia consegui. Eu falo pros meu menino “Agradece a Deus” as coisa era muito ruim, só cozinhava na lenha, não tinha esse negócio de gás não, a vida era muito difícil e o povo mais véio falava que era o salário que era muito poco (D. Firmina, 57 anos).

Para os mais velhos, a situação da comunidade melhorou muito se comparada há 20 anos. Existem mais oportunidades para as crianças estudarem, a estrutura das casas melhoraram, assim como a alimentação, as roupas, a locomoção e o salário.

Podemos dizer que houve uma significativa mudança nas condições de vida dos moradores se comparados à vida das gerações mais velhas que enfrentaram muitas dificuldades para garantir o sustento da família como as relatadas nos estudos

anteriores. A melhora na condição de vida dos moradores de Mato do Tição pode ser atribuída aos avanços das políticas públicas para a população rural a exemplo da instituição da aposentadoria para o trabalhador rural instituída pela Constituição Federal - CF de 1988 que universalizou o atendimento aos idosos do meio rural incluindo o setor rural informal.

A maioria das pessoas da segunda geração de Mato do Tição é beneficiária da aposentadoria rural que passou por adequações positivas em 1991 com a Lei 8213, ficando instituída a aposentadoria por idade aos trabalhadores rurais no valor de um salário mínio sem a necessidade de ter havido contribuições. O avanço foi significativo considerando que na Lei anterior de 1971, somente uma pessoa da família poderia ser beneficiária e com o recebimento de apenas meio salário mínimo. Com as mudanças (1988 e 1991), todos os trabalhadores rurais: mulheres com idade superior a 55 anos e homens acima de 60, passaram a ter direito ao benefício da aposentadoria rural por idade. De acordo com Soares (2009), “ aposentadoria rural representa um autêntico programa de renda mínima para os idosos residentes na área rural, gerando um grande impacto econômico, principalmente nos municípios mais pobres das regiões menos desenvolvidas” (p.4).

Em Silva (2008,) podemos confirmar que a aposentadoria rural trouxe significativas mudanças na vida dos moradores se comparadas aos períodos anteriores, nos quais a fonte de recursos era escassa e as pessoas ficavam a mercê dos empregadores rurais que não cumpriam a legislação trabalhista e pagavam salários baixíssimos.

2.5. A percepção do Mato do Tição através do passeio pelo quilombo e dos

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