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O Candombe – Tecendo Laços com a Ancestralidade Afro-Brasileira

Um grupo de três homens assentados em bancos de madeira iniciam o toque nos três tambores, esses toques são acompanhados por um instrumento semelhante a cuíca e um outro pequeno tambor que é batido por uma baqueta. O Sr. Dante faz o sinal da cruz e passa as mãos pelos tambores, demonstrando pedir a benção. Inicia um canto pedindo licença para Nossa Senhora e em seguida dão vivas a N. Senhora Aparecida, São Sebastião, São Benedito e São João. Um coro responde às vivas. Inicia um canto que é difícil de compreender. Em seguida dança movimentando os ombros de forma circular e vai batendo os pés no chão num gingado cadenciado com as batidas do tambor, após umas três voltas de dança, retoma os cantos. Em seguida entra outro senhor que pede licença e reinicia todo o processo feito pelo Sr. Dante cantando outras músicas (Caderno de campo, 20/05/2013).

Assim como a Festa do Cruzeiro é associada à mãe Josefa Basília, e o pai Benjamim José de Siqueira deixou as heranças do catolicismo através da reza do terço, das ladainhas em latim e culto aos santos, o Candombe no Mato do Tição é uma herança de Constança uma das fundadoras do quilombo. Tia Tança, como carinhosamente é tratada, foi escravizada. No relato de moradores mais antigos, foi aquela que deixou os legados ancestrais de ligação mais direta com a cultura africana e afro-brasileira. A ancestralidade é aqui compreendida como uma visão de mundo africana, negro/africana, afro-brasileira25 que considera que vivos e mortos, o real e o sobrenatural, a vida cotidiana e a vida espiritual assim como os entes da natureza estão interligados e interagem entre si nos processos de manutenção da vida. De acordo com MARTINS (2001)

A concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementaridade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir (p.79).

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Considera-se aqui afro-brasileiros os africanos e africanas na diáspora que mantém a perspectiva da ancestralidade tanto do ponto de vista religioso quanto relacionado aos valores da vida, assim como os processos incessantes de resistência quanto ao racismo e demais sistemas de opressão aos quais tais grupos estão submetidos historicamente. Sabemos que nem todos comungam dessa concepção devido ao longo processo de desenraizamento cultural ao qual a população negra foi submetida historicamente.

De acordo com PEREIRA,26 (2005) o Candombe não é uma festa e sim um ritual de origem banto que tem a marca do sagrado com elementos do catolicismo, da umbanda e do culto aos antepassados. Louvam principalmente os santos: São Benedito, N. S. do Rosário, N. S. Aparecida, Santana, São João, S. Sebastião, Jesus Cristo. Homenageiam e rememoram os antepassados que são pessoas da família ou da comunidade que contribuíram de forma marcante na vida do grupo e que ganharam a condição de entes exemplares após a morte.

Os antigos e os santos viveram entre as pessoas e se destacaram de alguma forma. No caso dos santos eles são trazidos para perto, são humanizados para darem o sentimento proximidade e semelhança aos devotos. São Benedito, por exemplo, por ser um santo negro, também é considerado um antigo, um antepassado do povo de Mato do Tição. Ele é visto como um escravo, um pai e um santo ao mesmo tempo. Em um ponto de Candombe ele é apresentado como o responsável por acabar com o cativeiro dos negros “O Pai Benedito num qué, casca de coco no terreiro, se num foi Benedito, num acabava o cativeiro”. Apesar dos antepassados não serem cultuados da mesma forma que os santos, os candombeiros sabem fazer essa distinção, ambos têm lugar especial na memória das pessoas. Santos e antepassados estão presentes nos pontos religiosos e profanos do candombe 27. Assim como estão presentes na vida das pessoas. De acordo com NOBLES (2006) citado por NOGUEIRA (2013) essa concepção de que os mortos estão presentes na vida dos vivos e são reverenciados constantemente e especialmente em momentos de celebração é comum em diversas culturas africanas:

Mesmo após a morte física a pessoa continuava a viver na comunidade em espírito, tanto nas lembranças das experiências vividas com a pessoa no tempo em que ela era viva, quanto nas histórias contadas sobre os antepassados e rituais de comunicação com a dimensão do invisível (p.96)

25 Nessa tentativa de descrever o candombe do Mato do Tição, além das observações feitas em campo e conversas com alguns moradores, tomamos como referência a obra de Edmilson de Almeida Pereira “Os tambores estão frios” já citado na p.34.

26 PEREIRA listou 18 tipos diferentes de pontos do Candombe que variam de acordo com o lugar e a

ocasião. São eles: de abertura; de demanda; de brincadeira (bizarria); de apaziguamento; para capitães; para os ancestrais; de Zambi; para Jesus cristo e os santos; para Nossa senhora; para as mulheres; para a bandeira; para a Santa Cruz; para disfarçar; de alerta; para pedir cachaça; de convite para entrar no Candombe; de improviso; de encerramento. O uso desses pontos varia de lugar para lugar.

Em Mato do Tição, a rememoração dos antepassados está presente nas rezas aos santos, nas celebrações eucarísticas, no culto de encomendação das almas e no candombe. Também se faz presente nas conversas de algumas crianças que perderam entes queridos assim como na memória dos mais velhos que contam sobre os antigos como Tia Tança, Josefa Basílio e Benjamim Siqueira, fundadores do quilombo.

Ainda com relação aos antepassados, pode-se dizer que a família tem lugar central na cosmogonia presente no Candombe. As famílias negras no Brasil se estruturam também como uma forma de resistência e de sobrevivência nos tempos de cativeiro e em rememoração às formas de organização em seus territórios em África. De acordo com SLENES (1994), quando os negros se casavam, adquiriam uma moradia e se organizavam para terem uma convivência com os filhos. A constituição de famílias era uma das formas de reação à violência e também permitia aos negros atingirem alguns objetivos materiais e culturais. Pertencer a uma família, dentre outras coisas permitia aos negros escravizados ou libertos, criarem condições para preservarem, reelaborarem e repassarem algumas de suas tradições sociais e culturais aos filhos, sobrinhos e netos.

Podemos dizer que, no Mato do Tição a família28, tem um lugar central na dinâmica do grupo. Família que no caso de Mato do Tição não se resume ao núcleo familiar restrito (e também esse possui várias configurações: avós e netos; mãe e filha; pai, mãe e filhos) que é parte de uma rede familiar que se estende para a comunidade como um todo. Foi e é na família que os conhecimentos foram aprendidos, as tradições reelaboradas e preservadas. Através da família, se mantém os laços com os antigos e com o sagrado. Na família aprende-se a ser uma pessoa do Mato do Tição. O respeito aos mais velhos que é ensinado/aprendido de geração em geração realça a importância dada aos antepassados, aos fundadores. O louvor aos santos, a Jesus Cristo e a Nossa Senhora perpetuam as heranças do sagrado deixadas pelos pais, mães, avós e bisavós. Os irmãos e irmãs Siqueira, cada um a sua maneira, dão continuidade ao legado deixado

28 De acordo com VAINFAS(1986) durante o período da escravidão “a noção de família subordinou-se à existência da comunidade negra , universo aglutinante dos africanos para o convívio pessoal, núcleo de solidariedade, lazer e integração social. As injunções da escravidão reiteravam no plano da ‘família’ a identidade entre comunidade negra e comunidade escrava (p.37).

pelos antigos e assumem com orgulho a organização das festas religiosas, participando ativamente de todo o seu processo. São lideranças da tradição29.

A importância dos antepassados também é um elemento constitutivo da cultura banto. E surgiu de acordo com SANTOS (1996, p.323) citados por PEREIRA (2005) nos processos de intermediação com Deus. Por um temor do filho de um grande chefe banto que não conseguia se aproximar diretamente de Deus, o espírito de seu pai então é chamado para interceder por ele e por seu povo. Aos poucos cada chefe adotou essa prática para se aproximar de Deus de modo que cada família passou a ter seus espíritos ancestrais que com o tempo passaram de mediadores a entes adorados. Para Pereira, os ancestrais constituem-se como aqueles que emanam energia vital para os seus descendentes e se constituem como elo que “religa os humanos a Deus” (p.281).

Nos cantos do Candombe de Mato do Tição os antepassados/antigos são invocados30, são convidados a estarem ali presentes para transmitirem força e energia. Aos santos reverenciados, é pedido proteção, são feitos agradecimentos e louvações.

Os candombeiros reverenciam os antigos pelas narrativas, cantos, danças, preservação dos instrumentos que são a puíta e o ganzá e os tambores que no Mato do Tição recebem o nome de Crivo, Santana e Requinta. Através da memória, os candombeiros recuperam os aprendizados, as práticas, as sensações deixadas pelos antigos. Recuperam experiências e histórias de luta, de resistência, de sofrimentos e de alegria.

28 O termo tradição colocado nesse texto da forma como as pessoas do Mato do Tição se referem a ele,

como uma cultura, uma prática religiosa ou não que existe há muito tempo, que foi deixada pelos antepassados e que eles devem manter e preservar pois se constitui como a marca daquele lugar.

29 Invocar os antigos, de acordo com Pereira, não significa incorporação. Para os candombeiros de Mato

do Tição é pouco comum a incorporação de algum ancestral no rito do Candombe. Isto é, quando os antigos são chamados, os candombeiros sabem/sentem que eles se fazem presentes, mas sem a incorporação. Destacam que a incorporação acontece em casos extremos quando um candombeiro é médium e chama muito por um ancestral que pode ser um preto velho, nesses casos, são feitos trabalhos para desincorporação.

CAPÍTULO 2

“SEJAM BEM VINDOS AO QUILOMBO DE MATO DO TIÇÃO” – A PERCEPÇÃO DO LUGAR PELAS CRIANÇAS

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