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Quilombos Contemporâneos – Ressemantização do Termo

No decorrer dos últimos séculos, através das mais variadas formas, africanos e seus descendentes se agruparam em comunidades pelo território brasileiro. De acordo com REIS e GOMES “onde houve escravidão, houve resistência” (1996, p.9) e essa se traduziu, dentre outras maneiras, em quilombos.

Historicamente, a organização dos quilombos nas Américas colonizadas constituiu-se como uma forma utilizada pelos escravizados em busca de liberdade, como alternativa ao sistema escravista predominante nas colônias. Muitos dos quilombos foram constituídos em locais de difícil acesso o que impediria a sua descoberta pelos senhores e capitães do mato no caso do Brasil. Cada grupo quilombola organizou a sua maneira formas de manutenção da vida através do plantio de roças, da criação de animais, das trocas com as populações envolventes etc. O exemplo clássico de autogestão e auto sustentação é do quilombo de Palmares localizado na Serra da Barriga em Alagoas que se manteve enquanto estrutura econômico-social e política durante mais de um século e transformou-se em símbolo de resistência, constituindo-se como um mito, inspirador das lutas dos movimentos negros brasileiros.

De acordo com RATTS (2001), na efervescência dos “novos movimentos sociais” de finais dos anos 70 e 80, Palmares também se constituiu como referência para diversos intelectuais e militantes do movimento negro que evidenciavam o quilombo como ideal da resistência, da liberdade, da comunialidade e da solidariedade. Para RUFINO (1985) o negro quilombola era o portador da utopia, uma utopia de comunhão entre os negros por força da opressão, luta e resistência. Assim como Abdias Nascimento (1980) cunhou o termo “quilombismo” para propor uma forma de organização do movimento negro ancorada em uma atuação pan-africanista inspirado no modelo do que foi o quilombo dos Palmares. Beatriz Nascimento, intelectual e militante negra que segundo RATTS (2007) foi uma das pesquisadoras que mais se dedicou ao tema dos quilombos, também expressava essa concepção alargada do quilombo como simbologia e ideologia da resistência negra no Brasil: “a utilização do termo quilombo passa a ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta” (NASCIMENTO 1989, apud. RATTS, 2007, p. 53).

Todo esse movimento tanto de intelectuais negros como de militantes, ainda vinculavam suas reflexões ao quilombo do passado, presos nas concepções de quilombos constituídos somente através da fuga de escravizados situados em localidades isoladas, concepção essa originária do sistema repressor da colônia4.

No entanto, agrupamentos negros também se organizaram de outras formas que não a de escravizados fugidos. Com o término da escravidão, grupos significativos dirigiram-se para regiões onde já existiam quilombos, organizando outros tantos através da ocupação de terras distantes dos núcleos centrais; terras doadas a santos, espaços abandonados por mineradores, hectares doados por antigos senhores e aquisições próprias.

Esses agrupamentos, ora nomeados como comunidades negras rurais, ora como agrupamentos negros rurais, terras de preto etc. passaram a ser alvo de uma significativa produção acadêmica a partir das comemorações do Centenário da Abolição em 1988 que revelaram a existência de inúmeras comunidades negras espalhadas pelo Brasil e constituídas das mais diversas formas.

A atuação do movimento negro brasileiro nesse período aliadas à divulgação dos estudos sobre as terras de preto impulsionou uma mobilização em torno da necessidade de se criar uma legislação para proteção dessas comunidades. A proposta chegou à Assembleia Nacional Constituinte desembocando na publicação do ART. 216 Inciso V. parag. 5º:

Ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Disposições transitórias – Art. 68 – Aos remanescentes de comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Nesse cenário, empreenderam-se debates em torno da utilização ou não do termo quilombo para essas comunidades “recém descobertas” pelos pesquisadores. O

3. Em 1740, o Conselho Ultramarino, órgão colonial responsável pelo controle central patrimonial, considera quilombo ‘toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles’ (MOURA, 1981, p.16, op. cit. RATTS, 2001, p. 312).

debate ancorava-se justamente na diversidade de formas de acesso às terras, de formas de existir e de se organizar dessas comunidades. Poderiam essas terras de preto serem chamadas de quilombos e pleitearem o reconhecimento legal em decorrência disso?

Esses debates contribuíram para a mobilização e organização das comunidades negras articuladas aos movimentes negros do Brasil. Iniciam-se em algumas localidades do País, encontros e seminários e, em 1995, realiza-se o 1º Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais com representantes de 26 comunidades além da continuidade dos debates acadêmicos alertando para a necessidade de ressemantização do termo quilombo considerando a diversidade de origem dos mesmos.

Os debates e lutas culminaram na publicação do Decreto 4.887/03, que regulamentou os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por esses grupos, ficando instituído que a caracterização das comunidades como remanescentes de quilombos poderia ser atestada mediante autodefinição dos membros das próprias comunidades, estendendo-se a caracterização de remanescentes de quilombos não somente àqueles quilombos históricos, constituídos de escravizados fugidos, mas, também, às comunidades negras constituídas a partir de diversos marcos fundadores, sejam heranças de antigos senhores, compra de terras por pessoas ou grupos familiares, ocupação de terras abandonadas por senhores de escravos etc. De acordo com O’Dwyer:

Contemporaneamente, portanto, o termo Quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram construídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses grupos também não se define pelo tamanho e número de seus membros, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo (1995, p.2).

Compartilho com a definição de quilombo apresentada por O’Dwyer e outros autores como RATTS (1998) e ARRUTI (2003), mas com a preocupação de que essa “nova” conceituação ou ressemantização não se constitua como uma imposição

para que grupos e comunidades negras tenham que, obrigatoriamente, se adequar ao reconhecimento de seus direitos, considerando-se que podem existir comunidades que ainda não aceitaram a identificação como quilombolas mas que carregam as características que as constituem enquanto grupos detentores de direitos, guardiãs de culturas próprias, auto identificadas como negras/pretas. Temos como exemplo dessa situação a comunidade de Pinhões, localizada em Minas Gerais, que tem desenvolvido um extenso debate em torno da possível autoidentificação como quilombolas e os desdobramentos disso quanto ao pleito da posse coletiva de suas terras já que o território de Pinhões foi dividido em lotes/propriedades individuais.

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