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RIZOMA 3: POR BAIXO DO “CHAPÉU” DO “FINGIDOR”

3.4 AQUI, O INSÓLITO É AMAZÔNIA(S)

Carpentier (2010, p. 344-350), ao referir-se à América Latina, “Aquí lo insólito es cotidiano [...] continente de simbiosis, de mutaciones, de vibraciones, de mestizajes, fue barroca desde siempre”, parece desenhar, pelo menos um pouco, essa pesquisa regada por tantos bufões, faustos, badernas temporais e tricksters. Daí Juraci não ser compreendido ou não conseguir ser melhor explicado pelos olhares mais convencionais ou quem sabe mais acomodados.

Ao tentar traduzir esse território de experimentações mestiças, leio e recebo críticas,

como: trata-se de um trabalho diferente; leitura “nova” para as artes “populares”. Tudo muito

“estranho” aos outros, mas ao mesmo tempo, confirmando as minhas escolhas: ser uma espécie de “arqueólogo” de poéticas com uma “policromía de las imágenes, por los elementos

que intervienen, que se entremezclan, y por la riqueza del linguaje” (IBID, p. 345), até mesmo

àquelas ocupando os “corpos” reservados às crônicas:

Papo chibé com jabá

Ontem eu voltava dum rolé pelo Bengola por volta do meio-dia. Ao passar pelo Veropa vi, pelo rabo do olho, as canoas encalhadas na lama da doca... Égua não, mano, bateu uma baita saudade de quando em pirralho eu vinha do Cajari e ficava dias na canoa só na mutuca, macuricando o furdunço da feira... Desci do ônibus e fiquei batendo pernas por lá, lembrando como era isso aqui no tempo do ronca. O pitiú continua o mesmo mas o resto mudou pra chuchu. De primeiro só havia canoa à vela e não tinha esse haver de carro esculhambando tudo. De tanto ficar zanzando feito um leso, me deu uma gastura no estômago, uma broca fumada! Me arranquei com mais de mil pras barracas de comida. Pedi um feijão bem adubado e ainda arrematei com uma tigela até o talo de açaí do papa, de rocha, moleque. Ralado é que quando eu estava no bem-bom, encostou na minha ilharga uma moleca entanguida e perebenta dis que querendo que eu pagasse uma gelada pra ela. Ficou lá me sujigando, enchendo a perema. Tá, cheirosa! Só o meu fraco pra gastar meus borós com uma requenguela que nem conheço. Quando já estava bebendo a lavagem da tigela de açaí pra evitar azia, me aparece um porre muito do seu enjoado que foi logo empombando comigo. Axi, porcaria! Fiquei invocado com a fuleragem do cara só falando merda. Fiquei tão encaralhado que por pouco não lhe sapequei uns cocorotes. Mas aí, já com o estômago forrado, fui dar uma espiada nas barracas de cheiro-cheiroso e caí na besteira de perguntar pelo preço dum raminho de mucura- caá. Pra que: a mulher, talvez pensando que eu estivesse estribado, cheio do pacuru, arrepiou! Eguá! Se calhá ela me achou com cara de pomboca, que cara de gringo eu não tenho. Aqui, ó! Não dei na minha mãe...Continuei batendo pernas e quando cheguei na Praça do Relógio foi que lembrei que dentro de dois dias Belém estaria completando 397 anos! E bastou dar uma abicorada na praça Dom Pedro II pra ver como a nossa cidade está mal cuidada! Lixo e cocô de urubu por todo canto, brinquedos escangalhados, tudo levando o farelo! Que cuíra me deu de querer fazer qualquer coisa ao menos para atamancar. O novo prefeito vai ter que roer uma pupunha crua, trabalhar de-com-força se não quiser passar vergonha nos quatro- centos anos da outrora Cidade das Mangueiras. (SIQUEIRA, 2013, p. 6-7)

Assimetrias são incomuns ou procurar descrevê-las também? Estilos históricos ocidentalizantes não dão conta de quem pede licença para a mãe do mato antes de narrar ou performatizar dizendo ser o filho do boto.

Alargo os olhares de Carpentier (2010) para as cenas amazônicas e acadêmicas. As

Amazônias e seus crioulismos artísticos142 foram e são solos férteis para o barroco, porque

toda mestiçagem e toda simbiose engendram esses barroquismos.

El barroquismo americano se acrece com la criolledad, con el sentido de criollo, con la conciencia que cobra el hombre americano, sea hijo de blanco venido de Europa, sea hijo de negro africano, sea hijo de indio nacido em el continente [...] la conciencia de ser otra cosa, de se uma cosa nueva, de ser una simbiosis, de ser um criollo; y el espíritu criollo de por sí es um espíritu barroco (CARPENTIER, 2010, p. 347)

Vivemos, desde sempre, tempos de barroco ou de um realismo maravilhoso

reconstruído e narrado por “um vasto mural, uma imensa cartografia, uma longa e polifônica

narrativa, algo que pode parecer realidade e que pode parecer fabulação” (LOUREIRO, 2001, p. 11), cena estranha e inimiga “de toda innovación, de todo lo que rompe com las reglas y normas [...] todo lo académico es conservador, observante, obediente de reglas.” (CARPENTIER, 2010, p. 337)

Não há espaço para obediência de regras e de harmonias geométricas para as Amazônias e suas explosões de formas. Juraci, suas Artes em mosaicos e as Amazônias não cabem em “épocas assentadas, plenas de sí mismas, seguras de sí mismas. El Barroco, em

cambio, se manifiesta donde has transformación, mutación, innovación.” (IBID, p. 344)

Em paráfrase com a questão levantada por Carpentier (2010, p. 347): por que a América Latina, inclusive as Amazônias, são lugares propícios para o barroco? Essas terras da

mestiçagem são filhas do “espíritu criollo de por sí es um espíritu barroco”, lugares do

“exótico” para os míopes culturais, mas do real maravilhoso de Carpentier (2010, p. 348): “Todo lo insólito, todo lo assombroso, todo lo que se sale de las normas estabelecidas es

maravilloso.”

Viver o latente e onipresente real maravilhoso amazônico significa tornar o insólito cotidiano, “siempre fue cotidiano” (IBID, p. 351) o como propõe Loureiro (2005, p. 25) é

preciso ter sensibilidade para “flanar pela cultura amazônica, deter-se aqui e ali, recorrer ao

passado, reenviar-se ao presente, distrair-se minunciosamente num lugar, apressar-se atentamente noutro”. No convívio entre o homem e a natureza maravilhosa: “É preciso errar

142 O crioulismo de Glissant (2005) definiria-se, como algo novo, totalmente imprevisível, que surge por meio da

combinação de elementos culturais completamente diferentes, distantes um do outro. Esses elementos se misturam, se confundem, dando origem a uma nova cultura, a cultura crioula.

pelos rios, tatear no escuro das noites da floresta, procurar os vestígios e os sinais perdidos pela várzea, vagar pelas ruas das cidades ribeirinhas.” (Id)

Remar é preciso

...e aqui cheguei. Chegamos. De bubuia por esse rio de muitas águas. Minha canoa com sua carga de sonhos tem muitos bancos à espera de outros manos e manas que queiram seguir viagem comigo para os confins do imaginário. Nem carece saber remar. Basta a vontade de desbravar o insólito, a capacidade de polir pedras, retirar espinhos, colher girassóis e descobrir o caminho mais curto para o país da fantasia. Sou irmão do rio. Conheço sua força, sua fúria e, principalmente sua generosidade. Portanto, chega-te a mim, meu irmão de sonhos, minha companheira de andanças que ainda temos muitos estirões a vencer. A noite não assusta quem conhece seus mistérios, quem leva consigo, sempre, a poronga da poesia. Para sermos felizes já temos o bastante: o afeto, a sinceridade e a coragem de falar de amor. O resto a gente aprende navegando. Anda, vem logo que o rio tem hora para encher e vazar e não convém remar contra a maré. Vem! (SIQUEIRA, 2013, p. 03)

Juraci e as pesquisas dedicadas a esse percurso, muitas vezes labiríntico, usam o devaneio como fator fecundante para suas produções, astúcia ou quem sabe opção epistemológica, para tentar compreender como nós, amazônicos, temos a necessidade de entranhar e estranhar o cotidiano com o devaneio.

Neste estudo da cultura amazônica, leva-se em conta uma cultura presente na atualidade [...] num momento em que os homens ainda não se separam da natureza, em que perdura ainda uma harmonia, mesmo entrelaçada de perigos, e se vive em um mundo que ainda não foi dessacralizado; em que o coração vive ardoroso do espírito no qual brota ainda aquele leite e mel das sagradas origens. Em que os mistérios da vida se expõem com naturalidade, o numinoso acompanha as experiências do cotidiano e os homens são eles ainda e ainda não os outros de si mesmos. (IBID, p. 27)

Em meio ao cenário amazônico não precisando ser mais real maravilhoso do que já é, encontrei um repertório infindável de artistas dando tons mais acentuados ao insólito. Juraci, aqui representando essa “corja” multiplicante, encanta públicos, especialmente nas escolas, porque simplesmente faz mágicas para as crianças; dá corações-trovas de papel; conta estórias; incentiva jovens e adultos à leitura; “bate seu ponto funcionário público” sejam em que bairros, cidades ou escola forem. Tudo isso maravilhoso ou fora do comum a quem faz da educação e da cultura algo catatônico, amorfo e chato.

Se a minha fantasia teórica é o devaneio-sincrético-etnográfico-cartográfico, o real maravilhoso amazônico repleto de verde, água, tricksters, bufões e uma corja de artistas em

bloco, podendo ser carnavalesco143, essa pesquisa é uma alegoria cujos adereços são o

convívio simbiótico, coral de vozes amazônidas, latino-americanas respondendo, desde o

143 Refiro-me a possibilidade, mesmo em um nível simbólico, de parodiar as esferas do poder. No caso da

coroação e do destronamento do rei, podemos tanto relacioná-los aos governos monárquicos da Idade Média, como também aos governos precários desde sempre. Arte carnavalizada, destronamento e a dessacralização do conceito platônico de cultura (cultura como sinônimo de obtenção do saber – mundo das ideias).

“começo” e mesmo às vezes “baixinho”, àqueles querendo desqualificar, para destruir, nosso enredo barroco.

Neoindianismos nativistas; discursos efusivos ao “popular”, políticas públicas duvidosas e folclorismos depreciadores são disfarces das garras e dos dentes afiadíssimos de uma criatura, desde que chegou, querendo desagregar e destruir as barrocadas, insisto, recheadíssimas de barricadas.

IRRIGANDO MAIS RIZOMAS

Rituais devorativos nunca findam, mesmo essa pesquisa-devaneio chamada de tese precisando de um “fim”. Fica a digestão desse banquete barroco provado desde o recebimento da primeira trova-coração de Juraci.

Fertilizando esses ainda prematuros rizomas com Glissant (2005), vi na errância um modo mais seguro de transitar pelos universos amazônicos recontados pelos artistas das bordas. Ler Juraci foi um jogo paradoxal de colocar debaixo do tapete todo aquele pó teórico aspirado na minha clássica e superacadêmica formação eurocentrada, e quase ao mesmo tempo, nos momentos agônicos nas encruzilhadas da incerteza, a mesma poeira epistêmica foi aspirada para fiar esse texto.

O desejo de tentar desenhar um mapa mais sensível para algumas cenas amazônicas,

um “Todo-o-Mundo144”, seria, com as palavras de Glissant (2005, p. 154), uma tentativa de

nutrir rizomas culturais, uma proposição suprametodológica menos intolerante e mais sectária: “que não mata à sua volta, mas que ao contrário estende suas ramificações em direção aos outros”.

Enquanto essa totalidade mundo não tentar ser descortinada, enquanto certas culturas do mundo precisarem aniquilar e erradicar a uma outra, para afirmar-se, várias culturas estarão “violadas”, inclusive, as traduzidas por Juracis e por “maltas” espalhadas por aí.

As pesquisas de Jerusa Pires Ferreira, de certo modo, deram mais equilíbrio aos meus malabarismos rizomáticos com as astúcias enunciativas de Juraci. As bordas vivem “operando nos limites dos universos culturais contíguos porém distintos, na corda-bamba para atender

aos apelos desta produção popular, que se faz em resposta direta a um tipo de público.”

(PIRES FERREIRA, 1990, p. 173). Não fui atrás desses sujeitos. Já testemunhava seus malabarismos culturais. Um mundo de vozes. Pesquisa, diversão e aprendizagem para “sempre”.

Os rizomas de Jerusa levaram-me a Amálio Pinheiro, o orientador e “bússola barroca”

para esse mapa: “Tudo é texto, já que tudo é linguagem.” (PAZ, 2009, p. 295)

Ter uma experiência barroca com a vida tem sido muito difícil. Perceber as falas microscópicas por trás das vozes mais ressonantes tem sido exercício para tudo. Igrejas,

144 “Todo-Mundo” (“Tout-Monde”): uma cultura feita, cada vez mais, de muitos mundos, uma cultura

chapéus, vozes, cemitérios, formas e cores ganharam a condição de texto e a Amazônia, desde então, virou Amazônias.

Não adianta fazer parte de um mundo tão sensorial se os nossos sentidos estão estéreis. A semiótica cultural traçada, pelos tons coloridos do barroco, vem aos poucos, aflorando meu

olhar para o outrora invisível. Juraci deixou de ser “escritor de rua” para receber tratamento

de flâneur, trickster, açougueiro e agitador de cultura. Já para as Amazônias, paisagens sociais

cotidianas começaram a se tornar mais maravilhosas. Agora parece quase “normal” a alegoria

do homem de terno branco caminhando pelo sol escaldante do Ver-o-Peso distribuindo trovas para feirantes e moradores das ruas e, em outros atos, esse performer debruçado sob um túmulo qualquer saudando e brindando Eros.

Loureiro (2001, 29-49) chama de sfumato145essa “interpenetração entre as realidades

do mundo físico as do mundo surreal [...] zona difusa [...] coabitando, convivendo, deparando-

se com o surreal como contíguo à realidade.” Devaneio de imaginários, sem repouso, na

relação sem fim do homem com a natureza: “A natureza havia no princípio. O homem veio

depois. Confrontaram-se, enfrentaram-se, alternaram-se, modificaram-se, transfiguraram-se [...] dominação submissiva versus submissão dominante.”

Em devir com Amálio cheguei a Gruzinski (2001) e à “mestiçagem”, leitura para as

misturas hiperinflacionando o solo americano de seres humanos, animais, imaginários e formas de vida, “zonas estranhas” prevalecendo na improvisação no labor diário da vida. As Américas, por esses olhares mestiços, ganharam o contorno surreal de “uma espécie de latrina fabulosa, só que aí a operação não consiste na retenção.” (PAZ, 2008, p. 30)

Cartografando esse devaneio de reencaixes mundanos, vi na gambiarra uma expressão mais próxima para traduzir a Arte de fingidores ou de malabaristas das culturas, àqueles que

administram “três objetos num território para apenas dois”146 ou invenção de solução

improvisada para um problema. A gambiarra está nos malabares dos sinais de trânsito, nos poetas que se arriscam, nas pesquisas sem certezas, nas esquinas, nas praças e nas feiras amazônicas. Esses artistas da vida procuram dilatar territórios da obviedade: onde antes cabiam dois, caberiam, três, quatro ou mil.

Essas narrativas seriam um trabalho de marchetaria: Arte da improvisação; do remendo; dos encaixes; dos ajustes; dos inventos; das engenhocas; das geringonças,

145 Segundo Loureiro (2001, p. 49): “palavra italiana que significa esfumado, zona indistinta, vaporosa, difusa ou

esbatida no sombreado dos desenhos [...] fusão dos personagens no quadro com a natureza, resultando em algo que confere uma unidade profunda ao trabalho e uma relação de empatia entre a natureza humana e a natureza cósmica.”

(SIQUEIRA, 2015) ou quem sabe “o espírito criativo e dinâmico da cultura popular e seu poder de reinvenção.” (SOBRAL, 2012)

Das inúmeras cenas vividas com os fingidores paraenses, uma delas, aquela aos pés da

escadinha das docas147, o Sarau da Lua cheia, reúne poetas fazendo “gambiarras”: as

declamações e os devaneios-desabafos acontecem em meio a transeuntes curiosos, vendedores “fingindo” apreciar os poemas, crianças correndo, chuva, monumentos históricos, maré alta, papéis em voo, e claro, lua cheia. Lá, livros são lançados, bebidas servidas e texturas múltiplas ganham e cedem espaço.

Figura 21: Academia das ruas: Sarau da lua cheia

Toda sorte de bricolagens com os estilhaços de uma ocidentalização frustrante estão espalhados nas Artes, nas Religiões, enfim, nas trocas simbólicas culturais das bordas. A relação está aí presente independente de um querer ou não querer cultural ou epistêmico. A Totalidade-Terra é uma totalidade aberta, em movimento, relação que, para Glissant (1997), seria uma trama concreta e, ao mesmo tempo, obscura, agindo silenciosamente ou escancaradamente sobre quaisquer projetos recolonizadores. Glissant (1997) não se importa especificamente com os esgotamentos de nossas matérias-primas; com as multinacionais funcionando em nós de forma crua e dura; com a poluição ainda suportável, e se não

147 Praça referência para a realização de eventos culturais públicos: passagem do círio de Nazaré, concentração

imaginamos as terríveis técnicas construídas para obtenção do lucro com morte. Eu e Juraci fingimos também nãos nos importar, mas em devires rizomáticos, procuramos “desbussolar”

as imagens redutoras costumeiramente refletidas “centripetamente” ao mundo amazônico.

Relação é primeiramente consciência dela e do que é capaz de fazer, como pulverizar as

compreensões de “Ser” e de “Essência”. Não há vida cultural regida pelo costumeiramente

chamado de identidades-raízes, porque vida é interação infinita, profusa, acumulativa e sempre em movimento dentro da roda-viva do nosso espaço-tempo planetário. Só a partir da “crença” nesse devaneio rizomático seriamos capazes de abandonar as múltiplas fronteiras (do “eu”, do “outro” da etnia, da religião, da língua, da nação) e seus corolários: a intolerância, o racismo. (Glissant, 1997)

Alteridade não é valor de mercado. Esse Outro não pode se tornar ainda mais um

espectro pelas lógicas fundamentalistas. Devorar, numa perspectiva “oswaldiana” mais

tolerante, nunca significará absorção predatória-odiosa de um suposto inimigo, seja por que razões culturais forem.

A predação tem tantos nomes: devastação florestal-cultural, concentração fundiária- cultural, especulação insaciável, ocupação extensiva e violenta de terras e de culturas. Imagem próxima de uma “sangria, isto é, de escoamento de riquezas para fora, sem benefícios que lhes seja proporcionais” (LOUREIRO, 2001, p. 408)

O morticínio provocado por políticas “desenvolvimentistas” é acompanhado de ressureições surpreendentes: Na companhia de Juraci e de suas “andanças” pelas Amazônias, “provamos” saberes-sabores culturais inimagináveis para ambos. Experienciamos talvez o “nomadismo circular” de Glissant (1997), aquele avançando e desbravando no “drama” da Relação múltipla, infinita e mais tolerante de ouvir alteridades.

Na busca desses “Outros” optamos pela errância por não desejarmos ser mais o

viajante-descobridor-conquistador, mas sim, “canoeiros”, sem comandar nem possuir essas

alteridades. Estivemos juntos nos barcos-escolas, nas escolas, nos teatros, nas praças, nos bares...

Não creio que essa cartografia de bordas recaia no risco “em mais uma versão do

‘velho processo’ colonial de transformar em recurso a ser explorado” para a “guetização, de tribalismo e da refeudalização” (SANTOS, 2010, p. 68-302). A proliferação das diferenças nessas páginas, pelo contrário, tenta, quase a todo custo, impossibilitar que raízes, predatoriamente, se assentem fortemente sobre quaisquer chãos.

Nenhum pensamento-raiz sobrevive por muito tempo nas fronteiras cujas demarcações são porosas e os “terrenos” sejam instáveis. Pensar e acreditar nas fronteiras significaria “uma

forma de ser e viver permanentemente em trânsito e na transitoriedade [...], criando espaços, [...] encruzilhada dos saberes e das tecnologias.” (SANTOS, 2010, p. 154-204)

Desejar uma pesquisa fingidora pode ser uma renúncia parcial dos horizontes ocidentais, para quem sabe, reconfigurá-la a uma constelação mais ampla de saberes (SANTOS, 2010). Fingir poderia ser: pensar sem rendições completas aos fascismos sociais infiltrados, ainda em proporções gigantescas, no fazer acadêmico!

Juraci e as bordas do Pará não precisam de pena, mas sim “penas” capazes de

reinscrevê-los. Um fazer diaspórico deslocando para as “margens” os discursos mais

conservadores seria viver e falar das margens, sem opção pelas vias unicamente “marginais”

ou “acadêmicas.” (SANTOS, 2010)

Bachelard (1978, p.29), em devir com essa pesquisa, acalenta minhas incertezas, frustrações e limitações: o critério cartesiano da evidência clara e distinta é uma tentativa de

desmantelamento: “para acompanhar o pensamento científico, é necessário reformar as

quadras racionais.”

Talvez seja o momento de esclarecer ou mesmo confundir definitivamente o uso da categoria devaneio nessa pesquisa. Tentar fugir dos pensamentos encaixotados significou transitar por várias vias, algumas “mais alternativas”, como a observação participante desses “entrelaces entre elementos invisíveis, marginais e periféricos” (LIMA, 1988, p. 26), opção, em grande parte, graças à amizade e à admiração junto às Maltas paraenses.

Não houve, a meu ver, “negociações” demoradas para adentrar nesse universo de subjetividades, mesmo assim, escrever sobre o que fazem e como fazem, significou um desarranjo de expectativas pessoais e culturais.

Experimentar as vicissitudes, ao traduzir essas bordas, foi, de certa maneira, acreditar em uma “ficção” participativa desses artistas nessa escrita. Ao contrário dos etnógrafos indo

embora levando consigo a observação para “interpretações”, Juraci sabe que ele e suas vozes

são interlocutores nesse fazer. Guardamos alguns posicionamentos divergentes. Juraci e as Maltas creem na construção de uma identidade periférica para a Amazônia. Em resposta, sem

certezas, desprezos e diminuições, eu acho que há uma “seiva” ou ancestralidade, a vida,

proliferando e contaminando os espaços desses artistas e de algumas pesquisas.

Nossas experimentações das bordas seriam escavações dessas periferias físicas, simbólicas, subversivas e, em devires múltiplos, germinadas por um cotidiano difuso e

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