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RIZOMA 3: POR BAIXO DO “CHAPÉU” DO “FINGIDOR”

3.2 MALDITOS DECOLONIAIS?

Por baixo do chapéu do boto-fingidor-Juraci pode residir uma infinidade de intenções,

inclusive a opção decolonial da desobediência disfarçada pelas “juras” aos dispositivos

enclausuradores das artes e das culturas amazônicas. O chapéu de boto e seu terno branco fazendo performances nos espaços institucionais, aparentemente, sugere uma rendição às imagens redutoras comumente associadas ao morador da passagem Felicidade, mas, desde que observado com o carinho etnográfico necessário, Juraci camufla, quem sabe, o desejo de legitimar e divulgar um discurso a partir das bordas.

Seria cômodo e confortável afirmar que o Juraboto, ao receber cachês para performatizar suas artes, estaria sendo recapturado pelas práticas recolonizadoras do gosto, das imagens e dos símbolos. A criatura, até aqui neobarroca, estaria sendo seduzida pelos “brilhos” dos processos de reestruturação dos poderes paradigmáticos?

Talvez fosse injusto admitir essa rendição sem resistência. Seria pouco provável admitir que Juraci depositou nos alçapões do esquecimento um todo massivo e gigantesco repertório afroindígena, em devires, despojando-o da visibilidade e do reconhecimento.

Juraci e esses grupos significativos de artistas das bordas participam desde 2014 de eventos custeados pelo governo estadual do Pará, dentre os quais destaco “A Noite é uma

Palavra”128, uma ocupação de espaços públicos objetivando reunir “artistas da terra”

dividindo seu verbo.

O jornalista Lúcio Flávio Pinto129, em seu blog “A Agenda Amazônica de um

jornalismo de combate”130 , demonstrou indignação diante da forma como o evento

arbitrariamente conduzia o processo de distribuição dos cachês artísticos:

128 Burilado pela Fundação Tancredo Neves e o governo estadual do Pará, “A Noite é uma Palavra” é o nome de

um projeto cujo objetivo, segundo seus idealizadores, é despertar o interesse da sociedade paraense pela poesia, além de divulgar nomes e trabalhos de escritores paraenses.

129 É brasileiro, nascido em Santarém (PA). Sociólogo e jornalista profissional desde 1966. Começou a carreira

escrevendo para periódicos de larga circulação em Belém e no Rio de Janeiro, mas em 1988 deixou a grande imprensa, dedicando-se ao seu Jornal Pessoal, periódico quinzenal entendendo as Amazônias como “Província energética desenhada pelos avanços e mutações do CAPITAL”. Tem 12 livros individuais publicados, a maioria retratando o que chama de “Tempos de ditadura piorada”. Sobre esse jornalista de ideias subversivas para “mentalidades conformadas”, Célia Regina Amorim em sua tese, na PUC/SP, “Jornal Pessoal: Uma

metalinguagem jornalística na Amazônia” destrincha questões amazônicas dialogantes com o mundo.

A direção da Fundação Cultural Tancredo Neves continua ignorando as questões suscitadas pelo pagamento de altos cachês artísticos sem qualquer critério cultural e sem a exigência de licitação pública. A atual presidente e o ex-presidente da Funtelpa, os únicos a reagir, embora não citados na matéria original sobre o assunto, alegaram que nada podem fazer para impedir esses pagamentos porque eles se originam de emendas parlamentares. Essas emendadas lhes chegam carimbadas. Isto é, com destinatário certo da verba pública e pagamento a ser feito sem maiores formalidades administrativas ou cautelas legais. Por ordem do deputado. Mais espantoso do que esse lavar de mãos, é a responsabilidade do poder legislativo, que também se mantém calado, como, aliás, todos os órgãos públicos que podiam tratar desse caso. É também uma característica do governo Simão Jatene. Não há mais dúvida que a transferência de vultosos recursos do erário para grupos de rock, bandas de música do interior e outros agrupamentos ditos musicais é um verdadeiro escândalo. Pode ter proporcionado desvio de recursos e apropriação ilícita, entre outras irregularidades e crimes. O dono de uma das bandas de rock, a Itinerário Boomerang, diz que jamais recebeu dinheiro da fundação e que vai procurar saber a razão do uso do seu nome. É o primeiro a se manifestar. Sua informação suscita imediatamente uma dúvida: será que todos os que assinaram contratos com a fundação receberam o dinheiro apontado ou sua totalidade? Todos os grupos beneficiados foram devidamente identificados? Foi demonstrada a inexigibilidade de licitação? Sem falar na razão de fundo dessas iniciativas: o que delas resultou em benefício da cultura popular? São várias as perguntas que precisam ser respondidas. Se os deputados não assumirem a responsabilidade que lhes cabe, de definir se realmente todos os cachês se originaram de emendas parlamentares, se elas foram cumpridas e etc., o Tribunal de Contas do Estado e o Ministério Público têm que investigar esses pagamentos, que se transformaram numa ação entre amigos e numa dilapidação de recursos do tesouro. Ou tudo vai ficar como está para se ver como é que fica?

Quijano (1992, p.09) ajudando-me ou não a reconstruir um olhar mais otimista sobre a

questão de grupos culturais “marginais” escolhidos “a dedo” pelos eventos institucionais vê

“a ideia de totalidade [...] um produto da Europa, da modernidade”, dispositivo comumente usado pelos maquinários governamentais dissimulando igualdade ao reconhecer, sob critérios

questionáveis, “artistas populares”. Por baixo desse “véu”, meu olhar diz e vê igualdade

hierárquica reaprisionando a produção do conhecimento, da reflexão, das artes, das culturas e da comunicação.

Liberto ou bem “amarrado” pelas práticas reinventivas eurocêntricas, Juraci e seus companheiros das bordas, ao serem ouvidos, refutam a ideia de aprisionamento. Dizem

praticar um ato subversivo, ao levarem das ruas para os teatros e para os “centros” culturais

seus discursos: “Quando sou chamado, digo logo que vou levar meus companheiros de ofício. O cachê é pequeno. O que vale é a oportunidade de reconhecimento para outros públicos”. (SIQUEIRA, 2015)

Quijano (1992, p.10) novamente poderia ser acionado para dialogar com esse fazer chamado subversivo por Juraci: “libertação das relações interculturais da prisão da colonialidade [...] de optar individualmente ou coletivamente em tais relações [...] liberdade para produzir, criticar e mudar, intercambiar cultura e sociedade”.

Aderência estratégica aos artifícios sedutores da recolonização? Não tenho certeza de ter testemunhado essa artimanha, mas percebi, em algumas performances, a exposição de “cicatrizes” ainda abertas, desconforto em estar ali, mesmo depois de “tudo”, inclusive ouvindo dos organizadores adjetivações barbáries: “não conseguem” se ajustar aos protocolos institucionais.

“Furtando” um dos olhares de Walter Mignolo (2007), suspeitei da possibilidade

residual de construção do que esse pesquisador chama de pensamento decolonial131, um fazer,

quem sabe, adaptativo ao querer construído a partir dos aprisionamentos culturais. Devaneio de um pensamento fronteiriço?

Fazer Arte com e na fronteira, consumindo um pouco mais Mignolo (2007), seria tentativa de ruptura epistêmica estratégica, a partir da inserção de bordas recheadas de

propósitos na colonialidade do poder, do saber e do ser132.

Desnaturalizar os projetos imperialistas poderia ser chamado de desobediência, categoria pensada como opção para a prática decolonial nas searas teóricas, políticas e quem sabe artísticas: “para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva” (BALLESTRIN, 2013, p. 88).

Longe de aderir ou ficar subalterno aos “modismos acadêmicos”, eu e os fingidores paraenses podemos dizer que infiltramos vozes aparentemente subalternas à voz ocidental.

131 “No pensamento decolonial a noção de colonialidade está diretamente ligada à de modernidade. Com efeito, a

colonialidade seria a face oculta da modernidade, que surge do sentimento de inferioridade imposto nos seres humanos que não se encaixam no modelo eurocêntrico. A modernidade só pode ser pensada em coexistência e simultaneidade com a colonialidade, na medida em que a identificaçao como “moderno” e “civilizado” se afirma a partir da categorização da colônia como “bárbara” e “atrasada”. E nesse sentido a escravidão, o genocídio e a exploração também são parte da modernidade, estão na face da colonialidade. O projeto decolonial ao adotar essa noção de colonialidade implica em uma mudança de posicionamento diante da história, deixando de pensar a modernidade como um objetivo e vendo-a como uma construção europeia da história a favor dos interesses da Europa.” (MIGNOLO, 2007, p. 01)

132 1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar

inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”). 4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica etecetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etecetera (Dussel, 2000, p. 49).

Podemos, nós os subalternos, falarmos? O problema levantando pela pesquisadora indo-americana Spivak (2010) só torna ainda mais complexo quando começo a pensar se há algo contra-hegemônico na camuflagem ou por debaixo dos chapéus.

Spivak (2010) não parecer crer nessa estratégia, já no título, em inglês, de sua obra: Can the subaltern speak? Ficam nas ambiguidades levantadas questões como: O subalterno tem a permissão de falar? O subalterno é capaz de falar? Como fala o subalterno?

As negociações com os discursos hegemônicos são difíceis para artistas e para pesquisadores. Spivak (2010) não vê com o otimismo nossas relações promíscuas com o pensamento ocidental. Ela pensa que os pesquisadores são incapazes de falar pelos

subalternos, mas capazes de desafiar e construir mecanismos para o “subalterno” se articular

e, um dia, ser ouvido.

Esses mecanismos da “resistência” partem de uma escrita “articulada” com os

discursos hegemônicos, mesmo porque “não são os corpos de sentidos que são transferidos nas traduções, mas sim a linguagem e seu papel para um determinado agente.” (SPIVAK, 2010, p. 16-17)

Essa reflexão parece um desalento para essa pesquisa, para Juraci e para seus companheiros de bordas. Seríamos nós, fingidores e artífices de discursos vazios e

inorgânicos? “Revela-se, assim, a banalidade das listas produzidas pelos intelectuais de

esquerda nas quais nomeiam subalternos politicamente perspicazes e capazes de auto- conhecimento” (SPIVAK, 2010, p. 33).

Cutucados ainda mais por Spivak (2010, p. 37), existe a provocação: os discursos

vindos das bordas133 não parecem tecer “um sentimento de comunidade”, uma consciência

coletiva, em especial quando insistem em narrar suas ancestralidades sob uma nostálgica investigação das raízes perdidas: “seus textos articulam a difícil tarefa de reescrever suas

próprias condições de impossibilidade como as condições de possibilidade” (SPIVAK, 2010,

p. 60)

Tentando não pensar com Spivak (2010) e querendo compreender o fingimento como prática de resistência, Santos (2007) anima minhas reflexões descrevendo o pensamento abissal e sua capacidade multiplicante de produzir e radicalizar distinções, definindo o visível, o verdadeiro e o falso.

133 Amplio o olhar de Spivak (2010) falando de camponeses, indígenas, quilombolas tentando incluir os artistas

As bordas do conhecimento geralmente são descritas como “inadequadas” a esse grau zero da intolerância e da exclusão do pensamento abissal: “a partir do qual são construídas as concepções modernas de conhecimentos e direito” (SANTOS, 2007, p. 74). Viram o não conhecimento: “crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que na melhor das hipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de investigações científicas” (SANTOS, 2007, p. 79).

Essa condição de invisibilidade imposta pela cartografia abissal, para o pesquisador português, além de medida sacrificial ou muro segregativo, pode ser entendida como um fascismo pluralista “em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente

fascistas.” (SANTOS, 2007, p. 81)

Esse não parece um cenário animador, porém, por mais que o pensamento abissal encontre maneiras de reinvenção, incluindo de artistas das ruas nas programações culturais “oficiais”, os sinais simbólicos das bordas não apagam, embora dispersos, embrionários e fragmentados, apontando “para novas constelações de sentidos referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo.” (SANTOS, 2007, p.83)

A sociologia das emergências134 de Boaventura não é nada fácil de ser executada, mas

espelhos ou dispositivos de resistência “do sul”135, como a marginalidade “teórica” dessa

pesquisa e daqueles “profanando” por um giro decolonial, desconstroem os critérios

cartesianos “da evidência clara e distinta” (BACHELARD, 1978, p. 47). Talvez, seja possível um racionalismo flexível e móvel entendido por Maritza Montero (1998) como a busca de formas alternativas de ver, interpretar e agir na América Latina. Uma concepção de comunidade e de participação assim como do saber “popular”, como formas de constituição e, ao mesmo tempo, produto de uma episteme de relação.

Poderia ser uma ideia de libertação através das práxis, pressupondo a mobilização da consciência e um sentido crítico a conduzir à desnaturalização das formas canônicas de aprender-construir-ser no mundo. Redefinição de papeis artísticos e de pesquisas.

Para isso, talvez em primeiro lugar, o reconhecimento do Outro como si mesmo e, portanto, a do sujeito-objeto da investigação como ator social e construtor do conhecimento quase sempre indeterminado, indefinido, inacabado e relativo.

134 Pensamento pós-abissal tendo como premissa a ideia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o

reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico. Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo não só diversas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre o que conta como conhecimento. (SANTOS, 2007, p. 86)

135 Para Boaventura Santos (2007), metáfora para humanidades experimentando sofrimento sistêmico e injusto

Procurar outros significaria também o reconhecimento da multiplicidade de vozes, de mundos de vida. Em relação, essas vozes falariam numa perspectiva da dependência, e logo, a da resistência: tensão entre minorias e maiorias e os modos alternativos de fazer-conhecer.

Experiências, utopias e ideias, nesse sentido, residem nas práticas dos movimentos sociais talvez podendo dialogar com as bordas artísticas paraenses:

Aquelas emblematizadas na Amazônia brasileira nos anos de 1980 pelo facão de Tuira kayapó no pescoço do presidente da Eletronorte para impedir kararaô (hoje Belo Monte), a dos mutirões de seringueiros do Acre armados de cartucheiras para realizar os “empates” (1970/80) contra a invasão de seus territórios pelos pecuaristas. No limiar do século XXI as marchas dos povos do TIPNIS na Amazônia boliviana contra a estrada que devassa seus territórios e a entrincheirada resistência na Amazônia peruana contra as hidrelétricas, com vitória momentânea contra a construção da Hidrelétrica de Inambari acalenta nossas esperanças do triunfo da vida sobre a morte representada pelo “grande projeto”. (TROCATE, 2014, p. 51)

Assistindo e fazendo parte dessa disputa simbólica de dominações e de resistências nas territorialidades artísticas, políticas e epistêmicas, às vezes ser um fingidor frustrado bebendo, de certa maneira, das águas ainda do pensamento europeu, indicam aparentemente uma

incapacidade de tecer um pensamento original e autêntico: “a alienação decorrente da

condição histórica de dominação gera um pensamento igualmente alienado, imperfeito e que

não corresponde à realidade” (PINTO, 2012, p. 341). Novamente pedindo socorro aos

pesquisadores mais otimistas ou quem sabe àqueles subvertendo esse complexo eterno de incapacidade atribuído à América Latina, Zea (2002) costuma ponderar dizendo que se não há condições de deixar imitar, deveríamos pelo menos assimilar, palavra entendida como a acomodação do que aparentemente é estranho, não precisando ser inovador ou deixar de beber das fontes ocidentais, mas readaptá-las às nossas necessidades. A complexidade dos

experimentos de Juraci e dos seus “bandos” evoca essa acomodação assimétrica de

pensamentos europeus em devir, assim espero, com os pensamentos decoloniais latino- americanos.

O professor Francisco Soares (2009, p. 03), referindo-se aos contextos plurilinguísticos-interculturais africanos dialoga, de certa maneira, com os discursos decoloniais na América Latina. Para ele, descolonizar não se resume a simples migração “para a língua do colonizador a cultura e, pelo menos em parte estruturante, os esquemas principais da língua do colonizado”. Pelo contrário:

é preciso pensarmos que não temos de um lado uma língua e uma cultura (a do colonizado), do outro lado outra cultura e língua (a do colonizador) [...]temos um demorado confronto e convívio entre os dois lados. Não há, portanto, dois centros propulsores de cultura e língua, mas um centro transicional, híbrido, com uma extrema e rápida mobilidade, que absorve, transforma, rejeita e negocia constantemente as culturas em convívio ou contradição [...] Por isso é que se dá a colonização e a descolonização da palavra e pela palavra: porque há um sujeito em transição que leva e traz, de umas para outras línguas, em sentidos diversos, sintaxes e lexemas que vão desconstruir-se e reconstruir-se uns nos outros ou com os outros. Quer isso dizer que a pessoa a que me refiro é uma espécie de língua intermédia, que não chega a constituir-se como língua, mas opera sintática e imagisticamente ligando os dois polos anteriores.

Não há, pelas palavras do professor angolano, espaço para leituras singulares e dicotômicas aos sempre existentes processos de descolonização. É preciso compreender que não há uma língua do colonizado, mas há várias, um português crioulizado, resultado de invasões, conquistas, migrações, convívios e confrontos.

Nesse convívio de resistências e reorganização dos discursos hegemônicos, tanto o colonizado quanto o novo conquistador incidem marcas a instilar, cravando significados, traços semânticos, sintáticos e rítmicos. Um escritor intra e extraeuropeu, como Juraci, inscreve em seus experimentos as alteridades coexistentes, coniventes ou paradoxais. Assim

sendo, um crioulês-amazônico eclode de um “Canto de Entrada”:

Aqui a porta o porto o parto

a ponte para o sonho sobre o leito desse rio entulhado de incertezas que guarda no tijuco da memória a história do meu povo e do meu chão. Aqui o homem

o verbo a pá a pena

a titânica missão de

erguer os ombros doloridos das manhãs. Aqui a lavra

a pá lavrando a saga nhengaíba entre restos e rostos soterrados

em busca de uma luz e de uma voz136. (BARRIGA, 2008, p. 12)

136 Poema de Juraci publicado em uma coletânea de autores “marginais” paraenses: BARRIGA, Heliana. Livro

Se os sábios narradores costumam dar os melhores conselhos137 dizendo que “a vida é

madrasta de puta”138, poderiam também afirmar: “a vida é um jogo de cartas marcadas”. O

paradoxo da resistência, em rendição, das bordas artísticas do Pará e de quem pesquisa sobre elas não perde de vista as “as racionalidades genocidas”. Parece até parte desse jogo! Será que a velha arte da velhacaria e da falcatrua eclode dessa narrativa de trapaças chamada de vida ou de academia?

137 Uma referência aos narradores de experiências traduzidos por Benjamin (1989).

138 Essa reflexão partiu de um repentista. No terminal rodoviário da cidade de Marabá/PA, esse personagem-

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