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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO

E SEMIÓTICA

HIRAN DE MOURA POSSAS

O Jogral é Jornal: devorações n

as “acontecências” de Antonio Juraci

Siqueira

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

HIRAN DE MOURA POSSAS

O Jogral é Jornal: devorações nas “acontecências” de Antonio Juraci

Siqueira

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para o título de Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Linha de Pesquisa: Cultura e Ambientes Midiáticos, sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro.

São Paulo

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BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos

Não se nutre rizomas sozinho...

Aos Deuses ... Esse concílio conspirou favoravelmente ...

Obrigado, Juraci, “Irmão de Devaneios”, por permitir que “flanasse” por teus livros, por tua

casa e nas reuniões poéticas...

Agradeço ao Amálio e à Jerusa – A Letra e a Voz – não necessariamente nessa ordem, pelas orientações para toda vida, especialmente pelo exemplo de humildade acompanhado de tanta erudição...

À Amiga Micheliny por nossos diálogos e por suas “santinhas milagreiras”, principalmente a

minha-sua Nazinha de Nazaré das ruas...

À UNIFESSPA (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), personificada pela professora Glaucia, diretora da FECAMPO, por compreender a “sofreguidão prazerosa” da escrita.

À CAPES possibilitando a continuidade desse sonho.

Ao meu pai, Orlando, por superar as “quatro pontes” ...

Ao amigo, desde 2010, Agenor, um exemplo de Melgaço para o mundo.

A um pequenino Anjo Barroco: Destemido .... Meu eterno e mais fiel escudeiro...

Ao “remédio” chamado Mille. Suas sessões de “acupuntura” são um bem enorme para minha

família...

À dona Ruth por suas palavras de incentivo e pelo seu exemplo de Mãe-Vó.

Especialmente, agradeço a minha querida filha, Maria Cecília, a Tita, pela compreensão as minhas ausências; pelo amadurecimento e pelos gestos carinhosos de amor e dedicação a nossa família. Sou seu fã ...

E ... a minha Esposa ... Amiga ... Mulher ... VERA LUCIA CINTRA POSSAS, a Pimpa, por

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Sempre que somos rejeitados, em qualquer nível, pensamos em ficar na oposição. Esta deve ser uma posição tática e provisória: o que interessa são as novas articulações na direção dos outros, incluindo aquele outro que nos rejeitou. Daí a crise difícil e saudável: temos de aprender a conviver em regimes de tensão, suspensão e movimento com inúmeras alteridades conflituosas e inacabadas em vaivém, sempre dentro-fora e fora-dentro...

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POSSAS, Hiran de Moura. O Jogral é Jornal: devorações nas “acontecências” de Antonio

Juraci Siqueira. 2015. 122f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, 2015.

A pesquisa examinou, em algumas experimentações artísticas e jornalísticas de Antonio Juraci Siqueira - artista “marginal” paraense com mais de oitenta publicações -a trajetória do

verbo criativo do “flâneurparaense” em direção ao meio extra verbal e à palavra de outros. O corpus empírico considerou os cordéis: “Irmã Serafina Cinque: O Anjo da Transamazônica”;

“Os Novos Versos Sacânicos” e “O chapéu do Boto”, bem como contos, crônicas e poemas

em memórias de jornais, de revistas e de antologias poéticas. Em sua delimitação temporal, a pesquisa seguiu a linha histórica do artista narrada pelas mídias impressas, pelo próprio poeta e por vozes testemunhando essa trajetória. A partir dessas ponderações, em que medida os rearranjos culturais nas Amazônias Juraci são “geometrizáveis” e/ou de feições neobarrocas?

Na busca de respostas à problemática, a hipótese principal supõe que, ao suturar múltiplas vozes mundanas às suas Artes, Juraci ora fia tecidos narrativos interculturais, ora borda

escrituras “necrosadas” pelos folclorismos centrípetos. Pela necessidade de se testar,

questionar e investigar o(s) objeto(s) proposto(s), foram escolhidas as seguintes premissas metodológicas, considerando a realização de um fazer etnográfico e cartográfico: levantamento, no arquivo público municipal de Belém, de jornais, revistas e antologias acolhendo informações sobre o artista e suas obras; consulta do arquivo pessoal do poeta; realização de entrevistas com Juraci, pesquisadores e artífices paraenses; observação participante em eventos culturais nas ruas, praças, feiras, cemitérios e teatros, e

“garimpagem” de pesquisas sob a luz da Teoria da Comunicação na América Latina (Martín -Barbero), da Semiótica Cultural Russa (Lótman, Bakhtin), do barroco e da mestiçagem (Severo Sarduy, Haroldo de Campos, Lezama Lima, Alejo Carpentier, Jerusa Pires Ferreira e Amálio Pinheiro). Posteriormente, na exploração dessas informações, foram extraídas as seguintes categorias analítico-empíricas: miopias acadêmicas às marchetarias de Antonio Juraci; os engastes micro-macro nos tempos-espaços amazônicos dessas texturas; suas

rearticulações de séries culturais usando representações “satânicas”, e a tradução de devires

recorrentes do convívio simbiótico amazônico entre homens, animais, natureza e cultura. Ao decantar as indagações levantadas, tencionamos, a partir das vozes de transcriadores de um cotidiano insólito, reinscrever, de forma múltipla, provisória e aberta a contribuições, esses mapas sociais historicamente ignorados, mas “recheados” de sentidos.

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ABSTRACT

The research want to examine some artistic and journalistic trials of Antonio Juraci Smith, artist "marginal" Para over eighty publications. His empirical corpus shall emphasize twine, "Irmã Serafina Cinque: O Anjo da Transamazônica"; "Os Novos Versos Sacânicos" and "O Chapéu do Boto" as well as some short stories, essays and poems in newspapers memories, magazines and poetic anthologies. In his time delimitation, the research will follow the storyline of the artist narrated by print, by the poet himself and voices witnessing this trajectory. From these considerations, the extent to which cultural shifts in Amazons Juraci would "geometricable" and / or neo-baroque features? In the search for answers to the problems, the main hypothesis assumes that, when suturing multiple worldly voices to their Arts, Juraci now relies intercultural narrative tissues, sometimes edge scriptures "necrotic" by centripetal folklore. By the need to test, question and investigate (s) object (s) proposed (s), the following methodological assumptions considering conducting an ethnographic and cartographic were chosen: survey, the municipal public file of Bethlehem, newspapers, magazines and anthologies accepting information about the artist and his works; consulting the staff of the poet file; interviews with Juraci, researchers, craftsmen Pará; participant observation in cultural events in the streets, squares, markets, cemeteries and theaters, and "mining" of research in the light of Communication Theory in Latin America (Martin-Barbero), the Russian Cultural Semiotics (Lótman, Bakhtin), Baroque and miscegenation (Severo Sarduy, Haroldo de Campos, Lezama Lima, Alejo Carpentier, Jerusa Pires Ferreira and Amalio Pinheiro). Subsequently, the holdings of such information, the following analytical and empirical categories were extracted: the academic myopia marquetries Antonio Juraci; the joints micro-macro in Amazonian spacetimes these textures; rearticulations its cultural series using "satanic" representations, and the applicants becomings translation of the symbiotic interaction between Amazon men, animals, nature and culture. To settle the questions raised, it is expected, as of “transcriadores” voices of an unusual daily life, restore, in multiple forms, provisional and open to contributions, these social maps historically ignored, but full directions

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Sumário

ENTRELAÇANDO RIZOMAS EM CATOGRAFIAS DE DEVANEIOS...11

RIZOMA 1: DE TOTÓ DO CAJARY A ANTONIO JURACI ... 23

1.1 O JOGRAL NOS JORNAIS...23

1.2 EMBARAÇADO NOS REDUCIONISMOS ACADÊMICOS...47

1.2.1 Nas Malhas da “Tradição”...47

1.2.2 Nas redes redutoras das dicotomias...52

1.2.3 Engessado por armaduras semióticas...54

RIZOMA 2: BRICOLAGENS AO DEVIR ... 56

2.1 JURAS AO BOTO...56

2.2 BADERNAS ESPAÇO-TEMPORAIS...58

2.2.1 Trapaceando as “ampulhetas” ocidentais...58

2.2.2 Amazônias: soleiras de passagens...62

2.3 RIZOMAS SAT(C)ÂNICOS...71

RIZOMA 3: POR BAIXO DO “CHAPÉU” DO “FINGIDOR” ... 81

3.1 ENTRE MALTAS, CIRANDEIROS E SALTEADORES...81

3.2 MALDITOS DECOLONIAIS? ...89

3.3 DO CHAPÉU, UM TRICKSTER?...97

3.4 AQUI, O INSÓLITO É AMAZÔNIA(S)...102

IRRIGANDO MAIS RIZOMAS...106

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Lista de Figuras

Figura 1: O leitor poeta...24

Figura 2: Totó, as imagens e as questões sociais...26

Figura 3: O bacharel em filosofia...27

Figura 4: Totó, o simbolista-modernista...28

Figura 5: Entre a filosofia, a poesia e o açougue...30

Figura 6: 1ª Edição do PQP...32

Figura 7: Charge “pornográfica”...36

Figura 8: “Garotas da Capa”...38

Figura 9: Capa dos Versos Sacânicos...39

Figura 10: Performance: O filho do boto...40

Figura 11: Sob o signo da merda...41

Figura 12: Crítica de Alfredo Garcia...42

Figura 12: Ossos do ofício...43

Figura 13: O performer...44

Figura 14: Juraboto e uma “moradora de rua”...45

Figura 15: Memórias de Daudibon...47

Figura 16: Le chapeau de boto de Ana Daudibon...50

Figura 17: Momentos marginais: Instituto Cultural do Extremo Norte; Sociedade dos Poetas Vivos e Cirandeiros das Palavras...82

Figura 18: A Malta de Poetas Folhas & Ervas...83

Figura 19: Cemirério da Soledad...85

Figura 20: Um Trickster?...99

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Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar [...] Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas...

João do Rio

ENTRELAÇANDO RIZOMAS: CARTOGRAFIA DE DEVANEIOS

Cartografar afetos 1 foi uma das expressões delineadas para minhas flanadas

dialogantes com os outros. Em Belém, encontrei um sujeito sorridente e atencioso distribuindo trovas em folhas de cartolina sob a forma de coração. Não lembro o ano, mas foi na Praça da República2 lotada, quente e repleta de artistas inventados e inventores nas “ruas”.

Antonio Juraci Siqueira, o Juraboto, iniciou sua jornada como flâneur3 devorador em Cajary,

localidade do município de Afuá, no estado do Pará. Ainda menino, descobriu a literatura pelos folhetos de cordel chegados à cidade pelas mãos de migrantes nortenordestinos. Aos 16 anos, cursando o ensino médio, experimentou ires e vires por Macapá (AP). Em 1976 mudou-se para Belém. Provou, traduzindo em versos, as ruas da capital, assim como os saberes rotarianos4 do curso de Filosofia, na Universidade Federal do Pará. Vem participando, desde

então, de eventos estimulados por diversas entidades lítero-culturais, dentre elas a União Brasileira de Trovadores; o Extremo Norte; a Malta de Poetas Folhas & Ervas; a Academia

1 Olhar sensível do pesquisador, sua integridade intelectual, e uma extraordinária percepção e abertura para o

outro (POSSAS, 2014).

2 Qualquer pena seria insuficiente para descrever a referida praça, uma das maiores da capital paraense. Uso a de

João do Rio (1997, p. 102): “A musa das ruas é a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida”.

33 Fico com a imagem de flâneur refletida por João do Rio (1997, p. 03): “O flâneur é ingênuo quase sempre.

Para diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno” de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da utilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...”

4Pequeno empréstimo da palavra usada por Gilberto Freyre, em “Bahia e Baianos”. Segundo Freyre e meu

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Brasileira da Trova e os Cirandeiros das Palavras. Metatexto de experiências, aparentemente inconciliáveis aos olhos das razões indolentes5, Juraci atua como oficineiro,

apologista-performista e “escrevedor” com mais de 80 títulos individuais entre folhetos de cordel, livros de poesias, “cronicontos” e histórias humorísticas por ele chamadas de “picantes”.

No dia 13 de Fevereiro de 1980, iniciou suas incursões pela imprensa no “Jornaleco”, espaço editorial-paródico, do jornal “A Província do Pará”. Anos mais tarde, no PQP – Um Jornal Pra Quem Pode e nas revistas de “Consultório Médico” Chá de Cadeira, Carona e Morena, por mais de duas décadas, refinou sua veia humorística, parodiando escrituras, sujeitos públicos e o país. Ultimamente, atento à existência de uma sociedade sendo redesenhada pelos valores tecnocratas e dando têmpera ao seu processo criador, vem construindo vínculos com as mídias digitais, transcodificando para seu blog “O blog do boto”6

e para sua página do facebook7, sua oralidade à procura de outras territorialidades.

Algemado pelas armadilhas dicotômicas, Juraci vem sendo considerado por instituições contaminadas por esse vício científico um poeta “da rua”, exemplar vivo de uma poética recarregada de folclorismos e isso, de certa maneira, estimulou minha indignação e receio de que o coral de vozes teóricas8 anunciando uma suposta morte para as narrativas da

voz e da escrita, mais tarde entendidos como provocação teórica, além de participação em pesquisas, buscando trazer para os espaços canônicos os chamados “espoliados”, matrizes subjetivas sufocadas por sujeitos soberanos persistindo em sobreviver também nos espaços acadêmicos.

Nesse processo arqueológico de fenômenos culturais da “periferia”, as experiências artísticas de Antonio Juraci Siqueira dialogantes com o cotidiano, tentando decompô-las em categorias empírico-analíticas, dão aparência ao meu complexo e errático objeto de estudo: as fricções9 culturais em alguns cordéis, crônicas, contos e poemas do seu manancial artístico.

O corpus empírico da pesquisa compreenderá os cordéis: “Irmã Serafina: O Anjo da

Transamazônica”; “Os novos versos sacânicos”; “O chapéu do boto”; “O balaio de gatos”; Acontecências: crônicas da vida simples”; “O menino que ouvia estrelas e se sonhava

5 Para o pesquisador português Boaventura Santos (2002), seriam pensamentos, como sociedade patriarcal:

produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades-fortaleza; democracia autoritária; desenvolvimento global desigual e excludente.

6 http://blogdobotojuraci.blogspot.com.br/

7 www.facebook.com.br/juraboto

8 Refiro-me a Walter Benjamin (1989), Todorov (1970) e Adorno (1983), quando em vozes uníssonas, anunciam

a “morte” das narrativas ancestrais, além de Vilém Flusser (2010), em seus ensaios provocativos, quanto à ida da

escrita para o túmulo.

9 Utilizarei a palavra, a partir dos estudos de Bakhtin (1999). Fricção como a trajetória da palavra em direção ao

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canoeiro”, bem como publicações em periódicos e antologias de poetas “marginais”, em sua maioria, cordéis:

A literatura de cordel, na sua expressão genuinamente ibérica e hoje tipicamente brasileira e nordestina, é a herdeira destes poetas vigorosos e suaves que esculpiam versos em chamas de fogo. A expansão portuguesa pelo mundo e as grandes vagas migratórias fizeram com que a arte do verso popular encontrasse em novos climas do novo mundo um ambiente propício para a sua sublimação. A língua portuguesa viajou e montou arraiais em quatro continentes, levando com ela muitos valores ocidentais, ideias novas sobre a religião, a vida social, a organização política, as técnicas e as artes, enfim ela contribuiu generosamente para a expansão da cultura ocidental pelo mundo; mas a mais poderosa de todas as formas culturais que se perpetua e marca a diferença pela sua originalidade é a arte única e inconfundível do verso popular. (FREIRE, 2014, p. 13)

A delimitação temporal, entendida também como um problema, não pretende escravizar, ainda mais, a produção artística de Juraci aos tempos institucionais. Desse modo, resolvi circunscrever um campo de observação para sua Arte Mestiça, a partir de linhas temporais estabelecidas por denominações atribuídas às personalidades proliferantes de Juraci; Totó do Cajary; Juraci Siqueira e Juraboto.

Não há centro e o tempo perdeu sua antiga coerência: leste e oeste, amanhã e ontem se confundem em cada um de nós. Os distintos tempos e os distintos espaços se combinam em um agora e um aqui que está em todas as partes e sucede a qualquer hora (PAZ, 2009, p. 137).

As experimentações de Juraci e seus consortes representam um número imensurável de experiências sociais ignoradas pela arrogância e pela indolência de boa parte dos pensamentos ocidentais impondo uma cultura como arquétipo normativo. Juraci e os artistas das bordas10, quando mencionados nas universidades e nos eventos em circuitos culturais

mais restritos, ganham de modo significativo abordagens depreciativas associando-os ao exótico, ao primário e ao popular.

Esses obstáculos epistemológicos impedem o reconhecimento das Amazônias recontadas por fingidores11 como Juraci, espaço movediço talhado à moda das “velhas”

práticas do mundo árabe:

Homens do deserto, grandes viajantes e homens práticos que prezavam as ideias e as técnicas que descobriam ao longo das infinitas caminhadas e dos destinos das caravanas. O intercâmbio com outras culturas era intenso e os califas não hesitavam em adquirir a peso de ouro os manuscritos antigos das civilizações grega, hebraica,

10 Pensar pelas bordas, categoria analítica tramada por Jerusa Pires Ferreira (2010), exclui a ideia de centro ou de

periferia. Seriam culturas transitando por uma faixa delineada pelos chamados folclore e culturas institucionais.

11 Fernando Pessoa, ao buscar uma metáfora do mundo da construção civil, dá contornos aos poetas que trolha,

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copta, bem como textos orientais logo traduzidos e divulgados em árabe e latim. A aquisição do conhecimento tornou-se a primeira de todas as virtudes e o Al-Andaluz foi o foco e a matriz do conhecimento e da ciência europeia. (FREIRE, 2014, p. 05)

Fazer Arte pelas ruas, pelas praças e pelos mercados é tentativa hercúlea de representação da múltipla convivência de temporalidades-espaços e subjetividades nas Amazônias. Ignorar tais processos criatórios, tradutórios e relacionais de representações, em favor de um discurso facistóide de “raça” ou de “identidade”, é tentativa frustrada de engessar, reduzir e solidificar um “território de interligação oscilante” (PINHEIRO, 2013, p. 49) repleto de paisagens cromáticas, banhadas continuamente de sol “[...] de onde escorre o suor da experiência de uma comunidade que vive a poesia rústica do cotidiano [...] frêmito da vida e o dinamismo do barroco.” (TOCANTINS 1987, p. 328).

O devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de

cosmologia, os outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores

europeus – um problema. A murta tem razões que o mármore desconhece.

(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 221)

Para continuar transitando pelas memórias de seus leitores, Juraci Siqueira recarrega suas obras de suplementos advindos de um realismo icônico indo e vindo do local para o global, espaço de permanentes diálogos, significados “prenhes de saliências ondulantes” (PINHEIRO, 2013, p.22) e estrutura semiótica em busca de ideogramas.

Ao atrair tantos leitores, esse entrelace de energias sígnicas imana um universo teórico familiarizado com a efemeridade dessas paisagens simbólicas, encruzilhada de metapontos de vistas dando luz ou não a esses movimentos “recreativos” pelos imaginários amazônicos.

Para Santos (2010), as signagens, em espaços cambiantes de experimentações provisórias e facilmente descartáveis, são extremamente consistentes, mesmo as mais efêmeras. Em “soleiras” latino-americanas12, como Belém do Pará, os “palavrões” de Juraci

parecem roçar com os de Bento Teixeira Pinto e os de Gregório de Matos Guerra incomodando os monoteísmos acadêmicos, os epistêmicos e os culturais.

Este livro contém palavrão explícito, desaconselhável, portanto, a puritanos babacas, moralistas fajutos e beatas juramentadas. Também não nos responsabilizamos por eventuais faniquitos e despentelhamentos de madamas-peido-cheiroso. Somente as almas puras, despidas de frescuras e preconceitos vãos, poderão captar seu verdadeiro espírito. Saberão que a imoralidade não está nas coisas nem nas palavras senão nas mentes mesquinhas e nas ações nefastas dos homens contra seus semelhantes e o meio em que vivem, compreenderão que a verdade pode ser dita de

12 Talvez a expressão não dê conta do extenso e do complexo lugar da diversidade, mas já aparando as muitas

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mil maneiras, que a flor-de-lis pode brotar do lodo e que, finalmente, “rindo é que se castiga os costumes”. 13

Juraci é cria daqueles, desde sempre, profanando as partes “vergonhosas” da Virgem14

e torcendo o rabo15 das autoridades públicas. Sua Santinha Nazaré, por exemplo, àquela

“adorada” pela fé católica paraense, peregrina por outros rearranjos de sentidos. Sua Nazaré tem lábios de açaí seduzindo, com “um amor doido e abrasador” o sírio Abdala, o “sírio de Nazaré”.

Quando o Amor, vaqueiro ardente, prende almas gêmeas no laço, dois corações diferentes palpitam num só compasso e a Paixão, rosa com espinho, qual erva de passarinho, da Razão ocupa o espaço. A história que vou contar aconteceu em Belém entre um sírio e uma cabocla marajoara. Porém,

outra história parecida pede estar ganhando vida neste momento, também. Sírio, de nome Abdala, próspero negociante, vivia triste e sozinho de sua terra distante. Vários anos em Belém não conhecia ninguém que lhe fosse interessante. Nazaré, uma cabocla dos lábios cor de açaí, bateu na porta do sírio para vender tucupi e lhe propor um negócio e ele quando a viu ali

num impulso abriu-lhe a porta e a esperança, quase morta, nesse instante lhe sorri. Amor à primeira vista! Amor doido, abrasador, que deixou seu coração qual bobina de motor. Nesse momento o Abdala e emoção perdeu a fala, seu rosto perdeu a cor. Nazaré que só queria fugir das garras do ócio, disse ao sírio que queria abrir seu próprio negócio.

13Nota de inutilidade pública escrita por Juraci no prefácio dos “Novos versos sacânicos”.

14A expressão, assim como uma lista de outras “heresias”, custou ao cristão-novo Bento Teixeira Pinto um

longo processo inquisitorial torturando-o, arrancando sua “confissão” e, logo após, acelerando sua morte. (ALVES, 1983).

15Expressão comumente usada por uma “Boca do Inferno” ou para os adoradores de certidões de nascimento,

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Abdala, de tabela, gostou do negócio dela e se fez marido e sócio. Do negócio do Abdala Nazaré também gostou. Da união dos dois negócios nova empresa se formou. Mais tarde vieram os filhos e o trem do amor em seus trilhos nunca desencarrilhou.

Essa história só comprova que o amor quando dá pé, viceja em pleno deserto, navega contra a maré. E, assim, os dois algemados pelo amor e pela fé, vivem sonho colorido e ele, agora, é conhecido

por “Sírio da Nazaré”. (SIQUEIRA, 2012a, p. 59)

Essas ramificações multiplicantes de “Bento” e de “Gregório” alcançando muitos Juracis evocam as pesquisas de Glissant (2005) quando percebemos conglomerados de falas indomáveis e inclassificáveis aos olhares “mofados” de “processos tardo-inquisicionais”, insistência viciosa pelas identificações fixas e unitárias e pelo monolinguísmo. Juraboto é cria parida de uma mescla de simbioses e transmutações, sem precisar ser resolvida.

Eu venho de um mundo que tu não conheces; do onde, do quando, do nunca, talvez... Eu venho de um rio perdido em teus sonhos, um rio insondável que corre em silêncio entre o ser e o não ser. Eu venho de um tempo que os homens não medem, nenhum calendário

registra os meus dias. sou filho das ondas que gemem na praia, sou feito de sombras de luz, de luar e trago em meu rosto mandinga e mistério e guardo em meus olhos funduras de um rio.

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118) ou gesto xamânico-poético16 fertilizando produções artísticas da mistura de enredos que

atravessam as histórias das Amazônias.

Essa “arribada de confluências” 17 culturais no Juraboto alimenta o debate sobre

tentativas fracassadas de reconhecimento, inclusive àquelas, em nome de um multiculturalismo “malicioso”, alertadas por Pinar (2009) e por Santos (2010). Certas pesquisas reproduzem “astuciosamente” um reconhecimento parcial e intencional do outro, mas acabam prestando serviço a projetos de regulação ou de recolonização.

Dado o horror da história humana, acostumar-se com os outros é, suponho, uma aspiração nobre o suficiente. Como professor, no entanto, queremos ainda mais: o estudo do conhecimento que transfigura a si e ao outro. (PINAR, 2009, p. 08)

Ao afirmar que o cosmopolitismo e as inteligibilidades mútuas são um projeto filosófico, não de reduções ou de totalizações, mas de mediações, Martín-Barbero (2000) traz como contribuição para as experimentações de Juraci o reconhecimento de espaços intermediários, permitindo a releitura de crenças, costumes, sonhos e medos abertos à decifração política, estética e semiótica.

Sendo criatura urdindo e urdida por jogos intersemióticos, em especial os libertinos18,

Juraboto sabe ajustar “sua linguagem" a essa situação “caótica”, construindo um fazer poético, às vezes rizomático.

No princípio era a ideia [...] Então disse o poeta: - Que haja luz na poesia! E a luz se fez aurora para vencer os tigres que habitam o não-ser das coisas [...] que a emoção caminhe descalça sobre as rimas e que o poema, acima de tudo, seja a medida de todos os sonhos [...] que no futuro todos possam, impunemente, se perder no sudário luminoso do poema [...] 19

Para essas copulações artísticas, primeiramente polinizadas nos jornais e “sintaticamente desdobradas pela luz” (PINHEIRO, 2013, p. 130), Lótman (1996) é participante de um inventário teórico as compreendendo como palimpsestos, processos permanentes de contaminações entre séries vizinhas, exigindo um público energizado e disposto a empreender esforços para a leitura dessas mesclas carregadas de complexidade.

Essas sintaxes móveis ganham contornos de maior complexidade quando a questão da memória é atrelada. Para Lótman (1996), Colombo (1991) e Zumthor (1993), sucessivas

16 Estudos sobre os simbolismos religiosos amazônicos destacam as finalidades terapêuticas do boto. Seria o

cetáceo de água doce um eficiente “afrodisíaco” aos homens, utilizando como amuleto, o olho e o órgão sexual

do “animal”. Juraci, dando novas traduções à narrativa, costuma dizer que, boa parte de sua fertilidade artística e

física, já que atende diariamente a convites de escolas e de entidades culturais para apresentação de suas

performances, deve-se ao fato de ser herdeiro dessa “magia”. (SIQUEIRA, 2012b).

17 Expressão cunhada por Lezama Lima.

18O libertino, para Duvignaud (1997), questiona o mundo; joga com as simetrias “impostas”; joga com os

costumes e joga com “Deus”.

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lembranças-esquecimentos indicam a impossibilidade de representação de um núcleo estável para agregados culturais provisórios, boa parte suturados nas Amazônias, com elementos fitomormorfos, zoomorfos e, aquamorfos.

Espetáculo! É como classifico as lembranças guardadas na memória das antigas

manhãs a bordo da ‘flor do Cajary: canoas freteiras alevantando âncoras para

reiniciar viagem. Velas de todas as cores, tamanhos e formatos. Veros poemas concretos! Borboletas coloridas voando sobre as águas revoltas do meu sempre amado Marajó. Hoje, quando navego por essas águas seculares, tais lembranças vêm à tona em meio ao burburinho dos barcos, canoas, montarias e cascos motorizados [...] Cadê as canoas freteiras com suas velas coloridas? Cadê caboclo ribeirinho remando? Navegam nas águas turvas da memória deste velho ribeirinho que ainda teima em trazer à luz tais lembranças engolidas por essa boiúna faminta chamada Tempo [...] (SIQUEIRA, 2010a, s/n)

Pensadores de complexidades, apaticamente chamadas de “Contemporaneidade” por alguns saberes ocidentais, Lótman (1996) e Zumthor (1993) entendem o retorno às matrizes ou às camadas mais profundas da memória como um gesto que não cessa de se repetir. Força tectônica de base em “metástase”, quando evocada.

Faustos mestiçados; risos e tempos-espaços barroquizados deixam de ser, parcialmente, o problema centro-europeu da separação do real com o imaginário nas Amazônias de Juraci Siqueira: “Os ‘descobertos’ assim respondem ao ‘descobridor’ cerzindo -o na urdidura nativa. Nã-o há, neste âmbit-o das permutas desidentitárias e d-o mútu-o pertencimento signo/paisagem.” (PINHEIRO, 2013, p. 31-32)

Entre as trevas e as luzes ou entre as lembranças e os esquecimentos, transcriadores, como o Juraboto “transam” discursos, aparentemente díspares, como as falas dos caboclos ribeirinhos transcodificadas para os seus cordéis. Meschonnic (2010) e Haroldo de Campos (1989) entendem essa prática como ato de resignar, resignificar e deslocar discursos criativamente.

Devorador-devorado por um universo simbólico de humanidades: artistas, crianças, burocratas, “ribeirinhos” e políticos, esse turbilhão de vozes entranhadas em Juraci suscita um manancial de problemáticas. Dentre tantas, em que medida as copulações sígnicas de Juraci podem resignificar representações assépticas e geometrizáveis para corpúsculos de feições barrocas?

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O influxo oralizante e corpóreo adquire já, pelo contato com a modernidade informacional e com o cruzamento de outras culturas, um sistema de contração e expansão, onde o que seria meramente folclórico ou popularesco passa a ser, nos melhores casos, uma nova construção possível, em amálgama, da cultura. (PINHEIRO, 2013, p.45)

Objetivo, a partir dessas suposições, examinar fricções culturais em algumas experimentações do manancial artístico de Antonio Juraci Siqueira, como também analisar as hiperinflações de contágios de séries culturais e semióticas nas Amazônias e seus desdobramentos para o labor artístico-jornalístico de Antonio Juraci Siqueira, fortalecendo, talvez, as tímidas redes de discussões sobre a questão das traduções interculturais nos cenários amazônicos, além de compartilhar o sinal dessas reflexões com grupos de pesquisa.

Pelas Amazônias, as cisões espaço-temporais são “naturais” e inevitáveis. Esse homem-boto “enrosca-se nos corpos e nas palavras, e os torna variação significante, arrastando os signos para baixo, para dentro das coisas” (PINHEIRO, 2013, p. 28). Ele é uma miragem fruto de um conjunto de estigmas oferecidos por seus narradores e ouvintes. Peça arqueológica garimpada da oralidade nossa de cada dia. Sensibilidade de quem primeiro ouve para depois se expressar.

Pela necessidade de se testar, questionar e investigar o(s) objeto(s) proposto(s), foram ponderados, sem a pretensão de “encaixotar” a complexidade das temáticas abordadas, os encaminhamentos metodológicos: releituras das obras supracitadas do poeta amazônico e levantamento, no arquivo público municipal de Belém, de tabloides, revistas e antologias poéticas acolhendo suas práticas artísticas “marginais”; “garimpagem” de referenciais bibliográficos sob a luz da semiótica cultural russa e latino-americana, do barroquismo lezâmico, de Carpentier, das pesquisas de Amálio Pinheiro, de Jerusa Pires Ferreira, de Viveiros de Castro, de Gilles Deleuze, Glissant e de pensadores decoloniais da América Latina.

Como romper as amarras dos pensamentos ocidentais é um processo lento, difícil e entranhado em nossas (de)formações, alguns desses autores serão revisitados com cuidado, receios e olhar crítico: Huizinga (2000), Bachelard (1978), Eliade (1972), Foucault (2000), Jung (2000), dentre outros.

Além disso, haverá a realização e a transcrição de entrevistas20 com Juraci e com

“seu” “público”, cuidadosamente tentando evitar separações mais nítidas entre um eu interpretante e um outro textualizado

20 Para Alessandro Portelli (1997), uma entrevista dificilmente pode criar uma situação de igualdade, mas ela- a

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[...] baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem

conversamos enriquecem nossa experiência. Cada um de meus entrevistados –

talvez quinhentos -, e na afirmação que se seque não há nenhum clichê, representou uma surpresa e uma experiência de aprendizado. Cada entrevista é importante, por ser diferente de todas as outras. (PORTELLI, 1997, p. 17, grifo do autor)

Barroquizando essas metodologias, poderia dizer que há uma pretensão de se realizar um fazer cartográfico, redesenhando os mapas costumeiramente traçados para os artistas da “marginália”, comunidade discursiva, aqui, tentando ser representada, sempre de forma provisória, aberta a uma constante revisão da multiplicidade de posições e argumentos, sem estabelecer qual é a perspectiva mais adequada. Fazer que nem mesmo seria arte e muito menos uma ciência aos moldes ocidentais. Poderia ser, de certo modo, também um fazer etnográfico, tentando traduzir experiências em um “dar-e-receber intersubjetivo do trabalho de campo [...] um contraponto de vozes autorais” (CLIFFORD, 2011, p. 44). Uma ficção de participação ao lado de quem criativamente recria a vida nas tipografias caseiras e nos espaços públicos.

[...] o enfoque será naquilo que foi ou não falado, pois é isso que é feito numa transcrição: transcreve-se o que foi falado, mas pode-se perceber o que foi ou não perguntado, o que foi ou não respondido e no que está inaudível ou incompreensível (MANZINI, 2010, p. 5)

Bachelard (1978) não parece ser o pensador mais adequado para esse exercício de desprendimento do conhecimento ocidental, aparentemente, mas se de um sonho se faz um devaneio, entendido como suspensão desse pensamento desbotado positivista, seria a pesquisa uma cartografia de devaneios de um sonhador tecendo Amazônias reais-maravilhosas por crenças, sentimentos e culturas, em constante reconstrução de sentidos:

As palavras, em nossas culturas eruditas, foram tão amiúde definidas e redefinidas, ordenadas com tamanha precisão em nossos dicionários, que acabaram se tornando verdadeiros instrumentos do pensamento. Perderam o seu poder de onirismo interno. Para voltar a esse onirismo implícito nas palavras, seria mister empreender uma pesquisa sobre os nomes que ainda sonham, os nomes que são "filhos da noite". (BACHELARD, 1996, p.37)

Não atribuo somente a Juraci o privilégio e o perigo de abrigar em suas produções os mais diferentes devaneios. Junto-me ao sonhador-fingidor-paraoara, “em cumplicidade”, para repensar a precariedade de minha atuação e posição de pesquisador. Desejo, apesar de ser difícil, fiar-imaginar uma pesquisa indócil e travestida21 de empirias-teorias; “desafiar os

discursos hegemônicos e nossas próprias crenças como leitores e produtores de

21 Recorro a ideia de travestimento, tão bem vivida e descrita por Sarduy (1999). Tento demonstrar algumas

interseções sexuais são análogas às intertextualidades atravessando as artes de Juraci e a escrita dessa cartografia

de devaneios:“Planos que dialogan en un mismo exterior, que se responden y completan, que exaltan y definen

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conhecimento” (SPIVAK, 2010, p. 08); não apenas falar de/pelos “marginais”, mas falar com eles, sonhando algum dia: “trabalhar “contra” a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se articular e, em consequência possa também ser ouvido.” (SPIVAK, 2010, p. 14)

Na exploração desse emaranhado diversificante de leituras e de vozes atravessando a pesquisa, decidi pô-las em jogo, sem ideias justas e binárias. Preferi os rizomas22: “De Totó

do Cajary a Antonio Juracil” revirei algumas “gavetas memoriais” do Arquivo Público Municipal de Belém e do arquivo pessoal - “a pasta preta de Juraci”, bem como os arquivos imperfeito-acadêmicos 23 , retratando as práticas recriadoras-cambiantes de Juraci. Em

“Bricolagens ao Devir”, movido pelo léxico-metáfora-devorador-deleuziano, analiso: o bicho-homem Juraboto, personagem transportado do Cordel “Chapéu do Boto” para o vestuário e

22 Em Zourabichvili (2004, p. 52-53) encontro uma definição de rizoma cunhada por Deleuze, podendo dar

contornos à proposta da pesquisa: “O rizoma diz ao mesmo tempo: nada de ponto de origem ou de princípio

primordial comandando todo o pensamento; portanto, nada de avanço significativo que não se faça por bifurcação, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito (o que distingue o rizoma de lima simples comunicação em rede - "comunicar" não tem mais o mesmo sentido [...] tampouco princípio de ordem ou de entrada privilegiada no percurso de uma multiplicidade (para estes dois últimos pontos [...] Ele não é feito de unidades, mas de dimensões. O rizoma é portanto um antimétodo que parece tudo autorizar - e de fato o autoriza, pois este é o seu rigor, do qual seus autores, sob o termo "sobriedade", enfatizam de bom grado, pensando nos alunos apressados, o caráter ascético. Não julgar previamente qual caminho é bom para o pensamento, recorrer à experimentação, erigir a benevolência como princípio, considerar enfim o método uma muralha insuficiente contra o preconceito, uma vez que ele conserva pelo menos sua forma (verdades primeiras): uma nova definição do sério em filosofia, contra o burocratismo puritano do espírito acadêmico e seu "profissionalismo" frívolo. Essa nova vigilância filosófica é aliás um dos sentidos da fórmula: "condições não maiores que o condicionado" (o outro sentido é que a condição se diferencia com a experiência). O mínimo que se pode dizer é que não é fácil manter-se nesse ponto: sob essa relação, o rizoma é o método do antimétodo, e seus "princípios" constitutivos são regras de prudência a respeito de todo vestígio ou de toda reintrodução da árvore e do Uno no pensamento. O pensamento remete portanto à experimentação. Essa decisão comporta pelo menos três corolários: 1) pensar não é representar (não se busca uma adequação a uma suposta realidade objetiva, mas um efeito real que relance a vida e o pensamento, desloque o que está em jogo para eles, os relance mais longe e alhures); 2) não há começo real senão no meio, ali onde a palavra "gênese" readquire plenamente seu valor etimológico de "devir", sem relação com uma origem; 3) se todo encontro é "possível" no sentido em que não há razão para desqualificar a priori certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é selecionado pela experiência (certas montagens, certos acoplamentos não produzem nem mudam nada). Aprofundemos este último ponto. Não nos iludiremos com o jogo aparentemente gratuito ao qual convida o método do rizoma, como se se tratasse de praticar cegamente qualquer colagem para obter arte ou filosofia, ou como se toda diferença fosse a priori fecunda, segundo uma doxa difundida. Decerto quem espera pensar deve consentir em uma parte de tateamento cego e sem apoio, em uma "aventura do involuntário"; e, apesar da aparência ou do discurso de nossos mestres, esse tato é a aptidão menos partilhada, pois sofremos de excesso de consciência e excesso de domínio - não consentimos de forma nenhuma no rizoma. A vigilância do pensamento nem por isso permanece menos requisitada, mas no próprio cerne da experimentação: além das regras mencionadas acima, ela consiste no discernimento do estéril (buracos negros, impasses) e do fecundo (linhas de fuga). É aí que pensar conquista ao mesmo tempo sua necessidade e sua efetividade, reconhecendo os signos que nos obrigam a pensar porque englobam o que ainda não pensamos. E eis por que Deleuze e Guattari podem dizer que o rizoma é questão de cartografia, isto é, de clínica ou de avaliação imanente. Acontece, sem dúvida, de o rizoma ser imitado, representado e não produzido, e servir de álibi a amálgamas sem efeito ou a logorréias fastidiosas: pois se acredita que basta que coisas não tenham relação entre si para que haja interesse em vinculá-las. Mas o rizoma é tão benevolente quanto seletivo: ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos determinados têm lugar.

23 Recorro a Colombo (1991), para representar nossas infindáveis práticas arquivistas, inclusive àquelas

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De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim.

Guimarães Rosa

RIZOMA 1: DE “TOTÓ DO CAJARY” A ANTONIO JURACI

1.1.O JOGRAL NOS JORNAIS

Revirando os baús mnemônicos desse Juraci plural, alguns “hostis” outros nem tanto, encontrei, no ano de 1980, uma das primeiras referências às suas artes. Tratava-se do jornal, não mais em circulação, A província do Pará, relatando, “em primeira mão”, Totó do Cajary24, estudante de filosofia, açougueiro e leitor “metido a escrevedor” vindo dos

Marajós25 atrás de estudo, de “auditórios”, e de oportunidades na coluna dedicada à cultura

“Jornaleco”. (SIQUEIRA, 2012b). Totó, nessas primeiras “penas”, transcria o Chupa-chupa26.

O “seu” personifica governantes e seus estratagemas “vampirescos” “chupando” nossos bens e a nossa paciência.

24Distrito do município de Afuá/PA situado na extremidade norte-ocidental da Ilha de Marajó.

25 É o maior arquipélago flúvio-marítimo da Terra. Ilha de Marajó, com cerca de 42 mil quilômetros quadrados,

é a maior ilha, ainda existindo cerca de 2.500 ilhas e ilhotas “periféricas” espalhadas por todos os meandros da região.

26 O chupa-chupa tratava-se de fenômenos relacionados com a suposta presença de objetos voadores não

identificados (OVNI) nas regiões ribeirinhas da Amazônia, aos arredores de Belém, na Ilha do Marajó e no delta do Rio Amazonas. Tais fenômenos ocorreram na década de 1970 até os primeiros meses de 1981. De acordo

com as narrativas de testemunhas e de suas “vítimas”, o fenômeno ocorria pela noite com criaturas semelhantes

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Figura 1: O leitor poeta

“Quadrinhas Mimosas” 27 comprimidas em um exíguo espaço e imprecisas, como o

corte do açougueiro28, tematizavam a capital paraense como um “mundongo-de-meu-deus”.

Poderia ser essa expressão uma chave de leitura para perceber em Totó um transeunte-etnógrafo dando moradia, em suas métricas iniciais, às paisagens sonoro-imagéticas de Belém.

27 Primeira publicação que se tem notícia de Totó do Cajary.

28 Segundo Antonio Juraci: “À época eu trabalhava no açougue do João Roque, matadouro localizado às

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Outras gavetas memoriais, como a das imagens, registraram pela Folha de Belém29, as

primeiras aparições visuais do então comerciário Juraci, participando e sendo premiado com o poema “Poema para Belém”, no II Encontro de Poesias de Belém, em 28 de agosto de 1980. Era descrita metonimicamente uma Belém morena, faceira e quente, diferente da capital europeizada traduzida por seus “concorrentes”, trovas, já, carregadas de vozes.

Poema para Belém

Belém moreninha das lindas mangueiras, das tardes chuvosas, das moças faceiras!

Belém das manhãs de sol radiante, das praças floridas, bosques verdejantes!

Portal da Amazônia, recanto de amor! Estrela ofuscante sobre o Equador!

Teu rico passado alia-se ao presente e de braços dados caminham pra frente!

Teu brado de fé ecoa pelos ares, nas ruas, nas igrejas, nas praças, nos lares!

Berço de poetas, de grandes artistas, de heróis valorosos

e iguais estadistas! (SIQUEIRA, 2015b)

Buscando outras espacialidades, Totó do Cajary, pelas charges nutridas das oralidades nossas do dia a dia, demonstrava suas indignações diante de questões sociais não cessando de se repetirem. Timidamente, representava as relações, às vezes “patológicas” – para não falarmos de relação alguma – das políticas públicas com povos, costumeiramente chamados da floresta, padecendo historicamente dos planos lisos e astuciosos do chamado “grande capital.”

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Figura 2: Totó, as imagens e as questões sociais.

Em 1981, publicando seu primeiro livro artesanal, “Verde Canto”, há uma sutura de lembranças de Cajary às experiências da “urbanidade”. Nessa dicotomia, em alguns momentos, de contornos redutores, Totó lembrava dos “causos” de sua infância, inclusive do Muiraquitã30, seu amuleto inseparável e indispensável para fertilizar suas produções artísticas

(SIQUEIRA, 2012b), magma subterrânea multivocal reverberando de seu “emaranhado chavascal”.

Verde Canto

Verde é o meu canto

vivo muiraquitã de amor talhado na pedra da existência e pendurado

30 Juraci reconta em diálogo a narrativa sobre esse amuleto tão perseguido por Macunaíma de Mario de Andrade

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no invisível pescoço do amanhã. Verde é o meu pranto

musgo a crescer nas fendas seculares abertas pelas mãos da malquerença na história carcomida deste chão. Verde é o veneno

que escondo na palavra – jararaca furtivamente oculta entre a folhagem

no emaranhado chavascal de mim. (SIQUIERA, 2015b)

Se as lembranças podem ser consideradas signo de si mesmas, Juraci, sobre a entrevista à folha do Povo31 diz: “Eu falava da conclusão de meu curso de filosofia, em 1986,

e do meu desejo de um dia viver da poesia!” (SIQUEIRA, 2012b). Era já um Totó fazendo dialogar as vozes das ruas com a filosofia clássica.

Figura 3: O bacharel em filosofia

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Em 1987, pela “Resenha Municipal” 32, encontrei uma das primeiras críticas ao

trabalho de Juraci. Seria ele, para o historiador José Valente33, um “simbolista de mão cheia.

Modernista autêntico [...] dominando as rimas ricas e dando novas feições ao amor”. Ser “outro” era a medida para Juraci ser poeta de verdade.

Pensando com Coutinho (1988, p. 11), as críticas ao então jovem poeta “Totó do Cajary” seriam elas o reflexo de “toda sorte de medidas [...] inventadas - violentas ou sub-reptícias – para coibir os impulsos de autonomia”.

Figura 4: Totó, o simbolista-modernista.

32 Periódico paraense não mais em circulação.

33Nasceu em 1927, no município de Barcarena, próximo à Região Metropolitana de Belém. Ao longo de sua

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Essa “crítica construtiva”, aos olhos de Totó, aos meus, rendição aos processos recolonizadores34, coincidiu com o lançamento da obra “Piracema de Sonhos”, um “marco”

(SIQUEIRA, 2012b) nas suas relações com os circuitos culturais mais restritos. Tratava-se de uma publicação financiada por recursos públicos divulgada nas “colunas sociais.” (SIQUEIRA, 2012b). Totó do Cajary, como piracema, começava a “desovar” seus devaneios provocando sujeitos de outras territorialidades:

Antonio Juraci Siqueira é um dos mais importantes trovadores do Brasil. É pela trova que seu talento se expressa de modo peculiar e original. Todavia, o poeta encontra, em outras formas poéticas, meio e finalidade de sua expressão, sem nunca no entanto, perder a simplicidade de expressão e clareza na forma. (João de Jesus Paes Loureiro35).

Recebi o Piracema de Sonhos, apanhados numa rede belamente tecida, malha de fios de Ariadne, ou melhor, cabelos de Iara... que você canta o que é nosso, nosso chão e nossas coisas, nossas ânsias e abundâncias. Quisera pegar uma cambada em cada mão, empunhar pro alto e mostrar pra essa malta de arrivistas semicultos, que maltratam essa terra, que a peixeira do caboclo é tão firme e tão poderosa como a lança guerreira de Dom Quixote. E enfrentar numerosíssimos e poderosíssimos exércitos com uma cambada em cada [...] (Vicente Salles36)

Totó, sob o ritmo de algumas malhas discursivas institucionais, ia aderindo “estrategicamente” à causa dos discursos mono-identificadores - sempre “defendendo” e “resgatando” a “cultura popular” - o que o fez ser “promovido” de “açougueiro escrevedor” a príncipe dos trovadores.

Mignolo (2008, p. 12) desenha essa matriz colonial do poder como “uma estrutura complexa de níveis entrelaçados”, inclusive nas representações culturais, terrenos de extrema fertilidade explicativa atualizando e contemporizando processos supostamente superados, apagados e assimilados pelos “devaneios” de quem costuma chamar o momento de modernidade.

Apesar das tentativas desse aprisionamento canônico pelas críticas geometrizantes, Juraci lembra o artigo “Entre a Filosofia e o Açougue”, no jornal O Diário do Pará em 1989, uma referência a seu açougue como um espaço de convivência alimentando suas produções artísticas: “lá, eu fazia versos e malabarismos sempre provocado pelos meus fregueses”

34 A colonialidade, pelo olhar de quem sente o peso de sua mão (QUIJANO, 2000), pode ser entendida um dos

elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social. Origina-se e mundializa-se a partir da América.

35 Escritor, poeta e professor universitário paraense. Professor de Estética, História da Arte e Cultura Amazônica,

na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica, PUC/São Paulo e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, França.

36 Historiador, antropólogo e folclorista paraense considerado um dos mais importantes intelectuais do século

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(SIQUEIRA, 2012b), preocupação de não perder os laços de sua Arte com a vida “de verdade”.

Figura 5: Entre a filosofia, a poesia e o açougue.

Leio esse malabarismo verbal do açougueiro-poeta demandado por seus fregueses-leitores, como: “um grande texto verbi-voco-visual, que vai avançando, sem fronteiras [...] busca de múltiplos instrumentos linguísticos, de vários sistemas de representação [...] uma procura de integração de vozes”. (PIRES FERREIRA, 2003, p. 186-188)

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bulir com e no desconhecido, no perigoso e no inusitado. Era uma “pena” compartilhada com os “escritos de Gregório de Matos, rebelde maldito, “subversivo, anticlerical e pornográfico”, de um Brasil fudido e mal pago, como ainda hoje.”37

Sacânicas elucidações

Em 1989 publiquei “Os Versos Sacânicos” paródia ao título de “Os Versos

Satânicos”, livro do escritor britânico Salman Rushdie, pelo qual teve a cabeça posta a prêmio pelo Aiatolá Khomeini, líder espiritual do Irã, na época. Na ocasião publiquei parte do que havia saído até então no PQP - um jornal pra quem pode, editado pelo jornalista e incentivador Raymundo Mário Sobral. Aqui reúno parte do que foi publicado depois no citado jornal e que não se encontra nas edições anteriores de “Os Versos Sacânicos”, deixando de fora os versos de cunho temporal

reunidos em “Colmeia de Tataíras – versos de circunstância, além de outras

composições já publicadas em outros títulos e outras que não achei relevante”. Inclui, ainda, “As Aventuras do Anão Labioso” e o “Manifesto Cultural do Xiri

Relampiando”, ambos não publicados no PQP. Diferente das edições anteriores que,

por pura sacanagem, nem sumário tinham, aqui o leitor encontrará um pouco mais de organização, estando este volume dividido em duas partes: a primeira, “No Reino da Enrabação”, contendo versos satíricos e a segunda, “No Reino da Sacanagem” versos sacânicos. E chega de papo-furado, que sacanagem, também, tem hora.

(SIQUEIRA, 2012a, p.01)

Esses versos subversivos foram acolhidos em espaços editoriais mais “despudorados”. Eram o lugar do empoderamento de práticas marginais, lugares intervalares, zonas com limites difusos entre o “centro” e a “periferia”, colocando em constante deriva os pensamentos pautados na unidade e na pureza das representações para as Amazônias.

Nesses espaços de deslizamentos simbólicos, com a ajuda de Sarduy (1988), as copulações barrocas significariam ameaçar, julgar e parodiar quaisquer normatizações. Trabalho de marchetaria.

A marchetaria: justaposição de texturas diversas, de veios diferenciados, jogo sobre contornos precisos, sem relevos: mimésis barroca. O que aparece na marchetaria, pela adição de segmentos de grão diferente, mais do que a profundidade da paisagem, ou o volume dos frutos, é o artifício do trompe-l’oeil; fingindo denotar uma outra figura, a marchetaria expõe a sua própria organização convencional de representação. Assim a linguagem barroca: regresso a si mesmo, pôr em evidência do seu próprio reflexo, encenação da sua maquinaria. (SARDUY, 1988, p. 54).

A ampliação de escrituras mefistofélicas38, como as de Juraci, em tempos de

“arrefecimento” da ditadura militar39, incentivou o surgimento no estado do Pará dos

chamados “filhotes do Pasquim”40, editoriais dedicados a colocar em crise41, pelo riso e pela

37 Comentário de Vicente Salles confidenciado, por carta, a Juraci.

38 No próximo capítulo, essa escritura receberá uma abordagem mais detalhada.

39 Segundo Antonio Juraci Siqueira, o seu primeiro verso sacânico foi aceito para publicação em meados de

dezembro/1979 (governo militar de João Baptista Figueiredo).

40 Para o jornalista Raimundo Mario Sobral, em entrevista concedida em 2012, o semanário O Pasquim, fundado

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comicidade, as estabilidades e determinismos culturais. Seriam olhares para além dos “buracos das fechaduras”: “dimensão mórbida e ditadorial de tais organismos, os prazeres da carne, os atos venéreos e os ditos de poeta de boteco, causadores do humor e do escândalo” (PIRES FERREIRA, 1985, p. 33).

Um desses espaços de tradução das “bordas” foi o periódico semanal PQP, “Um

Jornal Para Quem Pode”, criado em 1979 com tiragem média semanal de 10.000 exemplares até o final dos anos 1980, quando perdeu fôlego. Na década de 1990, “mudando de sexo”, passou ao formato de revista, mas sem o sucesso das vendas anteriores, experimentando, em 2002, sua “morte”. (SOBRAL, 2012)

Figura 6: 1ª Edição do PQP

O PQP, esse espaço acelerando contágios múltiplos, em versão microscópica, desenhou um painel mestiço e às vezes redutor às culturas amazônicas, envolvendo artistas advindos do cordel, dos cartuns e das crônicas.

Segundo seu idealizador o “comendador”42 Raymundo Mario Sobral, sua situação

financeira delicada somada ao “desperdício de experimentações artísticas ligadas ao riso” (SOBRAL, 2012) foram o mote para empreender “essa aventura editorial”. Esse tabloide cunhava joalheria de linguagens, acolhendo vasto material em ebulição de microunidades sociais, uma delas, as ruas. Esse locus paródico imanou experiências sociais “estranhas” e

“marginais”, sempre sob um tom corrosivo, rebelde e devorador, retorcendo imagens domesticamente veiculadas à cidade de Belém, a maioria europeizantes.

41 O professor Amálio Pinheiro, nas reuniões do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: barroco e

mestiçagem, pensa a crise não sendo reduzida a um simples momento de revolução criativa nas cenas da América Latina.

42 Do imaginário paraense, surgiu a explicação de que para falar de maneira despudorada sobre tudo e sobre

todos “Ridendo Castigat Mores”, fazendo severas observações sobre o grotesco das coisas supostamente solenes

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Alguns monstros do jornalismo, na época, encontraram no PQP espaço para dar viés às suas produções humorísticas, já que nos seus espaços editoriais oficiais não encontravam aceitação para essas produções. Dentre muitos perdidos em minha memória, lembro-me de Pedro Veriano (médico, jornalista e crítico de cinema), Edyr Proença (advogado, jornalista e narrador esportivo) e Acyr Castro (crítico de cinema) (SOBRAL, 2012, p.s/n).

Abrigando artes adulterinas ou representações transgressivas, o PQP foi, por cerca de três décadas, o espaço de “deboche” de transcriadores. Juraci “penetrava” e era “penetrado” pelo mundo “pornográfico”, o pornoscópio, a experiência da transgressão.

Minha terra tem mangueiras, maniçoba e tacacá, os patos que aqui patetam, não patetam como lá! E nessa arena de corda todo pato passará, porque, neste mundo ingrato, quem ainda não foi pato, na certa, um dia será! (SIQUEIRA, 2012a, p. 07)

Tais processos de devorações culturais, como os registrados no PQP, seriam um Aleph borgiano a meu ver, procurando redobrar um repertório temporário e variável de culturas sempre em busca da outridade: “um punhado de signos que se desenham, se desfazem e voltam a se desenhar” (PAZ, 2009, p. 334).

Nessa publicação pícara, percebi, por parte de seus leitores e cronistas, traduções para a cidade de Belém-PA, como lugar da bastardia fundadora (LIMA, 1988), representações recebendo fervorosas críticas, sobretudo dos “intelectuais de gabinete.” (PINHEIRO, 2013: 98).

“Desenhar” representações bastardas para a capital paraense é um esforço vanguardista ou quem sabe subversão estética tentando dar conta das assimetrias-tensões de “culturas compósitas” (GLISSANT, 2005). Essa marginália paraoara estaria tecendo um Manifesto Antropófago, ressignificando o bom selvagem rousseauniano para um devorador de outros corpos culturais. Há, por essa perspectiva, um rompimento com “las conexiones preexistentes para poder manejarnos desde un estrato amorfo a la búsqueda de nuevas articulaciones que nos repongan una visión más coherente y a la vez más identificada con la creación lite”. (RAMA, 1982, p. 43)

Embora as arquiteturas fabulosas Escondam seu tino traiçoeiro

Nem os negros vedas, o evangelho e o corão Escondem as manchas difusas

Voláteis como fumaça de fumo Na construção do grande sanatório

(MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2126)

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carnavalesco de Florismunda Tamuatá43, àquela que “todo mundo” deseja “tirar seu couro”,

talvez ilustre metonimicamente “complexidades” substituindo definições para a capital paraense.

Tirando o couro

Florismunda Tamuatá, cabocla do cu pela de trepar na capoeira, no barranco, no cerrado, veio cá para a cidade e voltou no mês passado com a xana calejada e o juízo atarantado.

Florismunda que já traz no nome rima “abundante”, tem um balaio aloprado, uma coisa alucinante!

E tanto é assim que em dois meses ela arranjou mais “fregueses” que caixeiro viajante.

Porém, da tal “camisinha” ela não sacava nada, por isso ficava pasma ao fim de cada trepada ao ver os homens jogarem a tal coisa na privada.

Ao voltar pro interior, Florismunda, numa roda de amigas afiançava

que aqui em Belém era moda os homens tirarem o couro

da pica, depois da foda. (SIQUEIRA, 2012 a, p. 28)

Há outras cidades entranhadas em Belém, pelos devaneios de Juraci e pela ajuda providencial de Ítalo Calvino (1990, p. 44): “As cidades são como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas”. Cada canto, cada beco, cada baixada, avenida, teatro, sem hierarquizações, compõem os retalhos coloridos de uma colcha indoafroportuguesa.

Belém é “ilha” flutuante repleta de labirintos líquidos alimentando um Mar Dulce44,

regulando e refletindo a vida de seus protagonistas. Esse sistema arterial e venoso, repleto de

43“Brincando” com o tupi, o tamuatá, peixe caliquitídeo, era também considerado “peixe do mato, meio anfíbio”

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intermináveis teias e de ramificações simbólicas, desemboca nas obras dos artistas amazônicos. Esse “marzão” hipnotiza; solapa; restaura; faz desaparecerem e reapareceram ilhas; esconde embarcações; devora cidades e artistas; alimenta populações e transcriadores; guarda em suas profundezas ricas encantarias como o boto, iaras, anhangás, boiúnas, cobras grandes.(LOUREIRO, 1995).

Belém é a cidade também dos prédios e das palafitas, dos “puteiros” e das festas de aparelhagens, cidades invisíveis45 aos olhos padecendo das “miopias culturais.46:

A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata [...] escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1990, p.7)

Forçar-me ou “forçar” a crítica monolíngue a pensar com os pés essa cidade nomádica, líquida e instável exige um labor hercúleo. Somos, ainda, as mentes e os corpos sedentários tão bem descritos por Baitello (2005, p. 23): “inflamos os signos, símbolos e as próprias imagens, para que nos protejam como escudos. E passamos a viver dentro da armadura dos signos e símbolos, as imagens de corpos”.

O PQP, essa tela de outras Belém, desviou por três décadas os olhares treinados nos “suntuosos teatros da Belle Époque” para as ruas e para as casas noturnas, paisagens nas quais os códigos mais sólidos vão perdendo sua rigidez, experimentando a vulnerabilidade e a reversibilidade.

44 O explorador-etnógrafo espanhol Vicente Yáñez Pinzón chamou o rio Amazonas de Río Santa María del Mar

Dulce, o que posteriormente foi reduzido para Mar Dulce (literalmente "Mar Doce"), devido à quantidade de água doce impulsionada pela correnteza do rio para dentro do oceano Atlântico.

45 Pequeno empréstimo da obra homônima de Ítalo Calvino.

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Figura 7: Charge “pornográfica”

Referências

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