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RIZOMA 3: POR BAIXO DO “CHAPÉU” DO “FINGIDOR”

3.3 DO CHAPÉU, UM TRICKSTER?

Identificar quem são e como são os fingidores é uma tarefa espinhosa para não dizer impossível, mas revendo algumas literaturas, de maneira especial as antropológicas debruçadas sobre personagens polêmicos, ambíguos, contraditórios e heróis trapaceiros espalhados por uma variedade de culturais, surgiu o chamado trickster ou quem sabe uma leitura para o quem está debaixo do chapéu do Juraboto.

Sarduy (1999, p. 1298) encontra na figura dos seres que se travestem artifícios, dissimulações, excessos e mascaramentos, inter ou quem sabe transpessoalidade pulsando pelos intertextos do poeta nascido em Cajary. Esses excessos de tanta gente dentro de um só podem ser traduzidos, como:

trabajo corporal de los travestis a la simple manía cosmética, al afeminamiento o a la homosexualidad es simplemente ingenuo: ésas no son más que las fronteras aparentes de una metamorfosis sin límites, su pantalla “natural.”

Essa camuflagem ou superfície de tantos mimetismos139 poderia ser comprendida

como: “El animal-travesti no busca una apariencia amable para atraer (ni una apariencia

desagradable para disuadir), sino una incorporación de la fijeza para desaparecer.”

(SARDUY, 1999, p. 1269), um desejo de:

de lujo peligroso, de fastuosidad cromática, una necesidad de desplegar, aun si no sirven para nada [...] colores, arabescos, filigranas, transparencias y texturas, tendremos que aceptar al proyectar este deseo de barroco en la conducta humana, que el travesti confirma solo. (SARDUY, 1999, p.1269)

O poeta-pensador cubano descrevendo escritas travestidas segue os rastros do ser ardiloso, personagem-gente complexo:

[e]l travesti remite a la arqueología, a otro mito complementario y reconfortante, el del andrógino, que se sitúa en un tiempo adánico, en un tiempo antes del tiempo y de la separación física de los sexos”, porque não pertence a um lado nem ao outro, é indiferenciável. O transexual por sua vez, “se sitúa al final de la parábola de los sexos: en su oscilación, en ese punto en que su contradicción es a la vez mantenida, acentuada y borrada. (SARDUY, 1999, p.1300).

Uma escritura híbrida costuma brotar desses seres ambíguos, mesclando o corpo com idiomas, culturas, personagens, experiências extra-somáticas invadindo também as palavras:

Planos que dialogan en un mismo exterior, que se responden y completan, que exaltan y definen uno al otro: esa interacción de texturas lingüísticas, de discursos, esa danza, esa parodia es la escritura.” (SARDUY, 1999, p. 1151)

139 Busco a problematização do termo com Derrida (2005) em diálogo com Platão, na República: E, de fato, a

técnica da imitação, tanto como a produção do simulacro, sempre foi, aos olhos de Platão, manifestação mágica, taumatúrgica.

Incompreensível é o número insignificante de pesquisas sobre esses pregadores de tantas peças. Latour (1994, p. 110), ao relatar a existência dos híbridos, parece justificar essa irrisória coragem de descrever uma categoria empírico-teórica das mais, insisto, complexas:

Os híbridos representam para eles o horror que deve ser evitado a qualquer custo através de uma purificação incessante e maníaca [...] Estes novos não-humanos possuem propriedades miraculosas, uma vez que são ao mesmo tempo sociais e nãos sociais, produtores de natureza e construtores de sujeitos. São os tricksters.

O termo trickster é geralmente utilizado para designar uma pluralidade de sujeitos fingidores em diversas culturas, alguns ardilosos, antisociais e egoístas, outros confundidos como heróis, mesmo em situações involuntárias e impensadas. Seria ele, buscando a palavra francesa, triche, a criatura ligada ao furto, à trapaça, ao engano, à falcatrua e à velhacaria.

Renato da Silva Queiroz (1991, p. 03), mediando a fala de vários pensadores140,

desenha o trickster como “criatura concebida como impura ou anormal”, aventureiro da vida, geralmente malicioso e desafiando autoridades “por uma série de infrações às normas e aos costumes [...] ladrão [...] profanador de locais sagrados”.

Amante do viver errante, o trickster Juraboto parece transitar também pelos espaços entnográficos de Queiroz (1991, p. 04): “o trickster raramente tem morada fixa, perambulando pelos espaços sociais, naturais e sobrenaturais com notável desenvoltura [...] é espírito sem lar, errante, frequentador dos mercados, das encruzilhadas, das fronteiras.”

Balandier (1982) “apimenta” as feições barrocas desse ser embusteiro, mostrando que não existem limites para as “brincadeiras” dos tricksters. As regras e obrigações perdem sua força, nem há formas modelando seus discursos satíricos e irônicos. Há um desrespeito às regras sociais e sobrenaturais. O cotidiano e suas supostas ordens sociais não poderiam deixar de contar com o protagonismo de “bufões, mascarados, bobos da corte.”

Se essas transgressões são concedidas ou não pelas sociedades, os autores debruçados sobre as “proezas” do velhaco trickster não apresentam consenso. Com Juraboto não poderia ser diferente, mas é interessante perceber que, ao ser considerado por alguns públicos um poeta tolo, ingênuo e escritor para crianças, há uma certa permissividade abrindo espaços, inclusive institucionais, para as barroquices e peraltices-literárias-performáticas de Juraci.

Aproveitando-se desses estereótipos, em causa própria, quem sabe resida um estratagema do performer em abrir frentes para seus companheiros das bordas: “Seria ele, portanto, um ator solitário que, em última análise, atua sempre em benefício do grupo como um todo.” (QUEIROZ, 1991, p. 7-8)

Reside sob a pele dessa paisagem enfeitada, pesarosa, fustigada, lacunar, ocelada, matizada, dilacerada, feita de nós e laços, com gorros e franjas já puídos, por toda parte, (SERRES, 1993) um ser atrevido enfrentando as limitações impostas pela idade e pelas geografias amazônicas, cruzando a cidade de Belém e o estado do Pará em forma de espiral. Juraci tentando ser onipresente nos bairros mais inacessíveis, nas regiões insulares de Belém e em outros municípios paraenses.

Figura 20: Um trickster?

Ser filho de boto poderia ser “herdar do pai a lisura e a disposição” (SIQUEIRA, 2015). Esse trickster amazônico tenta suspender as limitações impostas pela vida, inclusive a

gagueira141, declamando com veemência trovas cravadas em suas memórias. Gesto de

ventriloquia, até certa medida:

arte de projetar a voz e, assim, dar vida a um boneco [...] fala pelo ventre, sacerdote em comunhão com a abundância e a degradação da carne [...] profeta da barriga, que, ao se comunicar desse modo, topograficamente, comunica-se também com o mundo dos mortos. A voz do ventríloquo surge do subterrâneo. É a voz do morto. (MACHADO, 2014, p.01)

141 Juraci, nas entrevistas realizadas, não gosta de falar sobre o assunto, mas nas entrelinhas admite conviver,

Sua voz, sem hesitações, performatiza semelhantemente à cena descrita por Pires Ferreira (2009, p. 05)

O poeta popular (Komoróv) aparece tocando uma espécie de pandeirola, e por sua voz que desafia os ritmos naturais, acelerado como no caso da embolada brasileira, temerariamente conquista ouvintes e adeptos que são mostrados sob hierarquização. A troça ancora no corpo, o artista joga-se, conforme o topos da cara e do culo, o jogral baixa as calças mostra as nádegas, nas quais está pintada uma fisionomia. Entre acrobacias e gracejos, pondo-se de ponta à cabeça, o riso é colocado, em cena, mas a paródia, acompanhada pela censura nos faz ver que o texto oral, a emissão de um poeta ou jogral pode causar a punição até a morte. No entanto escapará sempre pela eficácia de sua transmissão a qualquer forma de controle que não se inscreva nos limites da profunda relação do artista com seu público. Incontrolável e presente, a voz viva pode receber castigos, mas se pereniza na força destas e de outras palavras aladas.

A suspensão, a desordem e as inversões tecidas pelos tricksters fazem do mundo, um circo, espetáculo da vida repleta de possibilidades, sobretudo as apresentadas por bufões como o “Carlitos” Juraboto, fantasia de um homem que, nessa territorialidade de linhas tênues entre a o real e a ficção, parece:

Como aqueles bonecos de plástico chamados de ‘João-bobo’, o bufão nunca cai: ninguém jamais conseguirá culpá-lo ou fazer dele bode expiatório, pois ele é o princípio vital e corporal por excelência, um animal que se recusa a pagar pela coletividade, e que nunca tenta se fazer passar por outro (sempre mascarado, é o revelador dos outros e nunca fala em seu próprio nome, e nunca assume o papel sério dos outros, sem incorrer em sua perda).” (PAVIS, 1999, p. 34-5)

Ator de si que invertendo os signos e substituindo o elevado pelo vulgar, o respeito pelo desrespeito e a seriedade pela caçoada (Pavis, 1999), esse Juraci meio bufão faz das Amazônias cenas valorizando a marginalidade e trazendo à tona, pela verba hiperbólica, o “proibido” e as “verdades ocultas”. O bufão exprime “em tom grave as coisas anódinas e, em tom de brincadeira, as coisas mais graves”. (Chevalier & Gheerbrant, 2009, p. 148)

Não valho um tição queimado mas sou melhor do que tu! Eu sou boto tucuxi, malandro e namorador que engravida, sem pudor, as caboclinhas daqui. Esperto feito o Saci, sou garanhão pra chuchu e arrebento o babaçu de qualquer cabra-da-peste. Não passo de um cafajeste mas sou melhor do que tu! Sou mosquito da malária, cafetão de cabaré, mordida de jacaré, sucuriju sanguinária, o nó da reforma agrária,

excremento de urubu; sou tacacá sem jambu, prego velho enferrujado, não valho um tição queimado mas sou melhor do que tu! Sou incêndio na floresta, sou praga na plantação, dentada de tubarão

e tudo o mais que não presta: sobejo de fim de festa, espinho de cuandu, veneno de baiacu, ferrugem de prego torto; não valho um cachorro-morto mas sou melhor do que tu! Tenho a inveja de Caim e a gana de Barrabás, sou pior que Caifás, não tenho dó nem de mim. Sou voraz feito cupim e feroz qual caitetu. engano até Belzebu com meu gênio traiçoeiro capo e esfolo por dinheiro mas sou melhor do que tu! Pense num cabra nojento pior que Antonio Silvino mais bruto que Virgulino, teimoso feito um jumento: pois eu sou esse elemento escrito um touro zebu, não dispenso um sururu bato em mulher e criança, infernizo a vizinhança mas sou melhor do que tu! Eu sou a gripe suína, ferroada de lacráia, caco de vidro na praia, bala perdida na esquina. Sou filho de cafetina, bebo quente e como cru. Sou um perfeito boboca, cocô de galinha choca

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