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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.3 Aquisição de expressões idiomáticas

Este capítulo, que consideramos central em nossa proposta de pesquisa de doutorado, versa sobre algumas importantes considerações sobre a maneira como crianças compreendem sentidos idiomáticos. Observemos que as informações que apresentaremos durante esta seção figuram tanto nos objetivos como no desenho metodológico desta tese.

Sobre o processo de aquisição de estruturas idiomáticas, Cacciari (1993, p. 43, tradução nossa) argumenta que “Por muitos anos, a visão predominante era de que crianças até a adolescência eram incapazes de entender expressões idiomáticas22”. Com isso, 22For many years, the predominant view was that children up to the teenage years were unable to understand

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consensualmente acreditava-se que tais itens do léxico eram compreendidos exclusivamente na fase adulta, tomando por base a crença de que indivíduos adultos já foram expostos, em contextos comunicativos bastante informativos, a diversos tipos de EI, por repetidas vezes, o que lhes permitia adquiri-las e acrescê-las aos seus arcabouços linguísticos.

Assim, uma das diferenças centrais entre o processamento de EI por crianças e adultos recai no fato de que as crianças lançam mão de menos ECI do que os adultos. Levorato (1993) diz que as crianças, especialmente as mais jovens, utilizam unicamente estratégias literais de compreensão, como em associações de decodificação de palavras, ao passo que adultos têm a seu dispor habilidades para (i) verificar o domínio semântico, envolvendo relações paradigmáticas e sintagmáticas; (ii) reconhecer sentidos polissêmicos e relações de sentido entre conceitos parecidos, (iii) perceber diferentes usos figurativos de uma palavra/expressão; (iv) processar grandes porções de texto para dirimir ambiguidades; e (v) usar novas expressões com base em modificações sintáticas e lexicais. Retornaremos a essa discussão na seção sobre as ECI a seguir.

Naturalmente, e amparados pelas pesquisas de Cacciari (1993), Levorato (1993) e Vulchanova, Vulchanov e Stankova (2011), o juízo que hoje temos sobre a compreensão idiomática prevê que

A compreensão idiomática, da mesma forma que a compreensão metafórica, e proverbial se desenvolvem gradualmente durante o tempo de vida, sendo que os adultos se sobressaem nestas tarefas [compreensão idiomática] quando comparados não apenas a crianças jovens, mas também a crianças mais velhas e adolescentes23.

(VULCHANOVA; VULCHANOV; STANKOVA, 2011, p. 208, tradução nossa).

O excerto acima afirma que a compreensão idiomática, de forma abrangente, é processual e aflora na infância, desenvolvendo-se até a fase adulta. Desta maneira, há alguns fatores que impulsionam este desenvolvimento, como o auxílio de um contexto altamente informativo e a frequência em que aparecem envoltas em contexto.

Levorato (1993), Cacciari e Levorato (1989) e Vulchanova, Vulchanov e Stankova (2011) dizem que, e de forma consistente com nosso entendimento das características da fraseologia, as EI são dependentes de um contexto discursivo, que é social e cultural, logo pragmáticas por natureza. Assim como trata das fórmulas de rotina, Gibbs (1993) ressalta que a maneira de se cumprimentar o outro é altamente convencionada

23Idiom comprehension, along with the comprehension of metaphors, and proverbs develop gradually during the

life-span with adults excelling on such tasks [idiom comprehension] compared not only to young children, but also to older children and adolescents.

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culturalmente, como quando se utiliza como você está? ou você já comeu? para atingir o mesmo propósito comunicativo, qual seja, perguntar ao outro sobre seu bem-estar.

Por isso, pelo fato de as EI serem convencionalizadas em sociedade, seria infundado afirmar que ambos os processos de aquisição e aprendizado idiomáticos são feitos de forma dissociada de um contexto discursivo.

Sobre o assunto, Levorato (1993, p. 105, tradução nossa) destaca que o contexto contém características fortemente relevantes para a compreensão idiomática, haja vista que

[...] fornece informações contextuais para construção de uma hipótese acerca do sentido idiomático, auxilia a procurar por informações que podem servir para definir o sentido figurado e fornece o material para realização do processo inferencial apropriado24.

De fato, se admitirmos o contexto como uma ferramenta fundamental para a compreensão de EI, que propicia a construção de hipóteses acerca dos sentidos idiomáticos e que possibilita a criação de inferências, estamos também afirmando que o referente desses itens idiomáticos é um construto sociocognitivo, na medida em que as relações semânticas são articuladas em processos de negociação de sentido.

Levorato (1993) revelou que crianças demonstram maior compreensão destes itens lexicais quando em face de EI imersas em um contexto. O estudo mostrou também que as crianças conseguem, dependendo da idade, identificar se dada estrutura é idiomática ou literal.

Cacciari e Levorato (1989) apontam quatro motivos centrais que justificam o fato de as crianças demorarem um pouco para adquirir competência linguística suficiente para compreender EI, os quais se apoiam no fato de que (i) os adultos tendem a evitar o uso de EI quando interagem com crianças; (ii) as crianças têm que desvincular o sentido da forma linguística; (iii) a compreensão idiomática requer das crianças uma reorganização de seu repertório linguístico que, muitas vezes, não é muito extenso; e (iv) EI geralmente expressam sentidos abstratos que as crianças, naturalmente, têm dificuldade de entender.

Pesquisas realizadas por Cacciari (1993) e Vulchanova, Vulchanov e Stankova (2011) apontam que o período crítico para compreensão idiomática inicia por volta dos 6-7 anos de idade. Aqui, as crianças começam a perceber que certas estruturas linguísticas são “especiais”, na medida em que precisam abstrair sentidos não necessariamente expressos por tais estruturas. Pensemos no exemplo da tirinha a seguir, na qual podemos encontrar a EI vai 24[…] provides background information for an hypothesis about the idiom's meaning, it aids the memory search

for information that could serve to define the figurative meaning, and it provides the material for the appropriate inferential processes.

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ser se eu estou lá na esquina. Inicialmente, amparados pelo contexto, percebemos que tal estrutura idiomática fora utilizada em uma situação discursiva na qual um dos personagens, chateado com o colega, profere essa EI como forma de encerrar o assunto. Contudo, por desconhecimento do seu sentido ou, segundo Fillmore (1979), por ser um falante ingênuo, o amigo interpreta a EI literalmente, ocasionando assim a comicidade da tirinha.

Figura 6 – EI vai ser se eu estou na esquina

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Além disso, a construção do entendimento idiomático é dada, também, por meio de levantamento de hipóteses e quebra de expectativas. Em outras palavras, em uma situação real, a criança que ouvisse essa EI e percebesse que não há nada na esquina, começaria a perceber a idiomaticidade de certas estruturas.

O período entre 10-11 anos é visto como o estágio em que a compreensão idiomática se aproxima da compreensão de um indivíduo adulto. Com isso em mente, em nossa pesquisa de doutorado, intencionamos trabalhar com crianças no intervalo entre 6-11 anos de idade por ser o período referendado pelos trabalhos dos autores supracitados.

Xatara (2016, p. 136), sobre o processo de aquisição de unidades fraseológicas, diz que

[...] quanto mais idade tem o interlocutor, mais tempo de exposição à língua ele terá e, portanto, conhecerá mais fraseologismos. (Por isso crianças, adolescentes e adultos têm mais dificuldades para entender muitos fraseologismos, mesmo em língua materna). [E] quanto mais estudo e leituras tem o interlocutor, mais é encurtado seu caminho para se expor à língua e, portanto, mais cedo conhecerá um bom número de fraseologismos.

A literatura apresentada até o momento é consistente com a classificação proposta por Levorato (1993) sobre o desenvolvimento da competência idiomática. Para a autora, o processo de aquisição obedece a cinco níveis cognitivos, sendo eles dados em forma de continuum.

O nível 1 “É caracterizado por uma prevalência em aplicar uma estratégia literal no processamento de um texto ou discurso.25” (LEVORATO, 1993, p. 120, tradução nossa). Indivíduos até seis anos de idade estão inclusos neste nível. Aqui, pelo fato de estas crianças efetivarem um processamento puramente literal a todas as sequências linguísticas, literais e idiomáticas, somos levados a afirmar que este nível é pautado nas seguintes tendências, (i) em construir qualquer sentido com base na soma do sentido de todos os elementos de uma sequência linguística; (ii) em realizar uma análise linguística superficial, e (iii) em considerar exclusivamente os sentidos concretos, em oposição aos abstratos, de uma expressão. Observemos que o nível 1 é o mais básico e comporta crianças com pouco ou nenhum conhecimento acerca de idiomaticidade.

O nível 2 “É caracterizado pelo importante fato de a criança poder agora transcender as estratégias puramente literais e um uso da língua puramente referencial26 e

25[…] is characterized by a prevailing tendency to apply a literal strategy in the processing of text or discourse. 26Referencial, nessa acepção, diz respeito à terminologia clássica cuja natureza era unicamente de etiquetação do

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literal.27” (LEVORATO, 1993, p. 120, tradução nossa). Acredita-se que crianças entre sete e oito anos se encaixam neste nível. A autora argumenta que é a partir deste nível que as crianças começam a realizar associações de sentido moderadas por um contexto. Ao chegarem ao nível 2, elas passam a formular hipóteses acerca do sentido de certas expressões tomando por base o contexto que as circunda.

Crianças pertencentes ao nível 2 também começam a ser capazes de empreender analogias, podendo ser de forma metafórica, e expandir certos sentidos a referentes distintos. Sobre esse assunto, se uma criança proferir “Um jumento é como um cavalo”, ela atribuirá valores semânticos de um espécime conhecido a outros, tomando por base certas características prototípicas de um cavalo.

O nível 3 “É caracterizado pela descoberta da natureza arbitrária da língua, que leva as crianças a perceberem que a linguagem nem sempre precisa ser literal.28” (LEVORATO, 1993, p. 121, tradução nossa). Conforme apresentado pela autora, crianças entre nove e dez anos estão englobadas neste nível. Aqui, os indivíduos possuem uma intuição de que nem sempre o sentido de certas estruturas linguísticas depende estritamente de sua forma29. Acredita-se que é a partir do nível 3 que as crianças tomam consciência da existência da linguagem idiomática.

No nível 4, as crianças já apresentam um nível cognitivo robusto que lhes permite “Relacionar expressões a informações e conceitos já adquiridos e tantas outras expressões convencionais adquiridas, como expressões idiomáticas.30” (LEVORATO, 1993, p. 122, tradução nossa). A autora argumenta que, diferentemente do que ocorre nos níveis 2 e 3, que são altamente dependentes de um contexto, o nível 4 é influenciado pelo grau de familiaridade de certas expressões. Em outras palavras, crianças pertencentes a este nível conseguem identificar sequências idiomáticas com base nos seus conhecimentos linguísticos. Entretanto, embora as identifiquem como estruturas com sentido diferenciado, não são capazes de realizar quaisquer modificações sintáticas ou lexicais.

Por fim, o nível 5 pode ser entendido como o nível em que os indivíduos possuem habilidades metalinguísticas que lhes permitem

27Is characterized by the important fact that the child now can go beyond purely literal strategies and a

purely referential and literal use of the language.

28Is characterized by the children's discovery of the arbitrary nature of language, which then leads them to realize

that language does not always need to be literal.

29Cacciari e Levorato (1989) dizem que esta intuição de que a linguagem nem sempre é literal caracteriza o

começo do estado de transição, no qual as crianças começam a desenvolver a noção de idiomaticidade.

30Link expressions to information and concepts already acquired and so may acquire conventionalized

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[...] decompor uma expressão idiomática conforme suas partes e realizar inferências semânticas sobre elas; compreender expressões idiomáticas mesmo quando elas sofrem substituições lexicais ou sintáticas e variações lexicais; gerar novas expressões idiomáticas com base em variações sintáticas e lexicais em expressões já existentes.31 (LEVORATO, 1993, p. 122, tradução nossa).

Isto é, indivíduos no nível 5 possuem uma competência linguística de um adulto, pelas razões já discutidas neste capítulo. Afirmamos que estes sujeitos articulam conhecimentos metalinguísticos, uma vez que são capazes de operar modificações lexicais, sintáticas e semânticas em EI de forma consciente, criando efeitos de sentido que atendam a objetivos enunciativos específicos.

Tendo exposto nosso entendimento acerca das EI, tanto no concernente à suas características definitórias, tais como composicionalidade, convencionalidade, lexicalização e polilexicalidade, e ao seu processo de aquisição e compreensão, passemos para a próxima seção que se debruçará sobre alguns entrecruzamentos com a referenciação, objeto de estudo contido na área da LT. A nossa justificativa em utilizar esse referencial teórico se apoia na maneira como as investigações no âmbito fraseológico, mais especificamente sobre as EI, vêm progredindo ao longo do tempo.

Se considerarmos as pesquisas pioneiras sobre aquisição e compreensão de EI, de cunho não-composicional, os estudos sobre esses fraseologismos estavam embasados em uma perspectiva estritamente descontextualizada e, de certa forma, dicionarizada. Se observarmos as publicações de Swinney e Cutler (1979) e Schweigert (1986), unicamente interessava aos pesquisadores investigar se os participantes de suas pesquisas “conheciam” o sentido das EI, em uma relação de um para um, isto é, X (bater as botas) significa Y (morrer), sendo Y uma resposta encontrada em qualquer dicionário. Além disso, haja vista que os sentidos das EI eram entendidos como blocos de sentido único, sem escopo para interpretações ou análises semânticas, as condições de uso nas quais essas unidades fraseológicas estariam envoltas nada interessavam para essa perspectiva.

Posteriormente, observamos uma tendência dos trabalhos em EI em adotarem a perspectiva de que muitas EI podem (e devem) ser submetidas a análises nas quais seus elementos constituintes desempenham um papel fundamental no entendimento do sentido global, conhecida como composicional. Aqui, começou-se a explorar a semântica interna das EI. Contudo, as pesquisas realizadas nessa primeira fase dos estudos composicionais traziam consigo o mesmo entendimento de que as EI poderiam ser estudadas in loco, fora de um 31[…] to break down an idiom into its component parts and to make semantic inferences about these; to

comprehend idiomatic expressions even when they have been subjected to lexical substitution or syntactic and lexical variations; to generate new idioms by means of syntactic and lexical variations on existing idioms.

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contexto. Esse movimento pode ser constatado em Vulchanova, Vulchanov e Stankova (2011), Cacciari e Tabossi (1988) e Gibbs, Nandini e Cutting (1989). Interessava, para os autores citados, entender como os participantes de suas pesquisas percebiam os graus de idiomaticidade de algumas EI, sem estarem imersas em um contexto. Dizemos que esses autores se voltaram para o estudo de uma análise semântica das EI, porém realizada em si, sem assistência de um contexto.

Em seguida, e admitindo que as EI são mais bem compreendidas em um ambiente rico em pistas linguísticas, uma nova era nas pesquisas sobre o assunto surgiu. Assim, passou- se a reconhecer a importância do contexto como elemento que “[...] fornece pistas para [acessar] o significado apropriado e para o entendimento de que, sob certas circunstâncias, a relação entre o significado e a forma superficial é diferente do que a interpretação literal sugere.32” (CACCIARI; LEVORATO, 1988, p. 390). Entretanto, nessa perspectiva, o termo contexto era sinônimo de narrative biased towards idiomatic interpretation Cacciari e Levorato (1988), supportive story context Nippold e Rudzinski (1993), story context, short story e informative context Levorato e Cacciari (1999), supportive story e story context Cain, Towse e Knight (2009), idiomatically biasing context e story context Nippold e Martin (1989) e idiomatic context, idiomatic and literal stories e rich informational environment Levorato e Cacciari (1992). Em outras palavras, embora esses autores reconhecessem sua vital importância para a compreensão idiomática, eles operacionalizavam pesquisas sobre contexto, só que fora de um contexto. Essas pesquisas investiam em textos pré-fabricados, muitas vezes curtos, desconexos de qualquer situação comunicacional, e tendenciosos para uma interpretação idiomática ou literal, a depender dos objetivos da pesquisa. Não podemos negar que esse período deu início às pesquisas embasadas no uso do contexto, porém ele era insipiente e restrito.

Em nossa tese de doutorado, negamos uma visão não-composicional e nos filiamos a perspectiva composicional para o estudo das EI. Contudo, entendemos o texto como manifestação da comunicação humana e que todos os elementos nele presentes formam uma rede interconectada de sentidos, nos quais se inserem também os idiomáticos. Com o fito de fundamentarmos esse avanço que nosso trabalho representa para o escopo teórico sobre EI, iremos relacioná-lo com os pressupostos da LT, mais especificamente com a referenciação, conforme seção a seguir.

32[…] the context, the relationship between the meaning and surface form is different from what the literal

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