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M ARGINALIDADES I MPERIAIS E C IDADANIAS P ÓS COLONIAIS : AS INDEPENDÊNCIAS NA Á FRICA O RIENTAL

A I LHA DE M OÇAMBIQUE E A EMERGÊNCIA DO PREDOMÍNIO B ANEANE

M ARGINALIDADES I MPERIAIS E C IDADANIAS P ÓS COLONIAIS : AS INDEPENDÊNCIAS NA Á FRICA O RIENTAL

O trabalho etnográfico em torno do qual organizámos a nossa pesquisa em Portugal e em Inglaterra foi essencialmente um trabalho de reconstrução de memórias. Embora a literatura disponível sobre as populações de origem indiana no leste africano seja relativamente elucidativa sobre os processos mais significativos nas suas biografias colectivas, a informação sobre como esses processos constrangem as histórias de vida individuais é um pouco mais difícil de convocar. Em particular se pensarmos o caso destas populações no território sob autoridade portuguesa, para o qual existe um número de trabalhos incomparavelmente menor ao da lista de trabalhos centrado na experiência das populações indianas na África Oriental britânica. Pensar a posição estrutural destas populações na África Oriental implica pensar um processo histórico e político de fabricação de uma categoria racial. Neste ponto importa perceber não apenas como o discurso sobre estas categorias é construído de modo performativo mas, em particular, como as estruturas coloniais são também ‘culturalmente produzidas’ (Hall, 2004, p. 109). O modo como os estereótipos se disseminam e o modo como o estatuto destas populações evolui, é debatido e definido representam um lastro indispensável para compreender as trajectórias individuais e colectivas nos terrenos pós-coloniais.

O modelo colonial britânico prevalecente na África Oriental durante o século XX foi responsável por um tipo de sistema social que foi amiúde descrito como ‘sociedades plurais’ (Benedict, 1962). Todas as sociedades se podem caracterizar por uma presença relativa de elementos pluralistas, num sentido diferenciador. Todavia, a epistemologia imperial britânica apoiava-se no pressuposto primordialista das filiações culturais e no seu encastramento nas dissemelhanças fenotípicas. Neste sentido, a distância cultural/fenotípica foi sendo institucionalmente salvaguardada à medida que o desenvolvimento do projecto colonial no leste africano foi avançando. Um projecto que facilitou e promoveu a segregação institucional dos diferentes grupos étnicos nas colónias britânicas do Leste Africano.

As sociedades coloniais plurais, tal como foram inicialmente teorizadas por J. Furnivall (1939), seriam constituídas em torno do mercado, não consentindo espaço à

CAPÍTULO IV

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ARGINALIDADES

I

MPERIAIS E

C

IDADANIAS

P

ÓS

-

COLONIAIS

:

AS INDEPENDÊNCIAS NA

Á

FRICA

O

RIENTAL

.

O trabalho etnográfico em torno do qual organizámos a nossa pesquisa em Portugal e em Inglaterra foi essencialmente um trabalho de reconstrução de memórias. Embora a literatura disponível sobre as populações de origem indiana no leste africano seja relativamente elucidativa sobre os processos mais significativos nas suas biografias colectivas, a informação sobre como esses processos constrangem as histórias de vida individuais é um pouco mais difícil de convocar. Em particular se pensarmos o caso destas populações no território sob autoridade portuguesa, para o qual existe um número de trabalhos incomparavelmente menor ao da lista de trabalhos centrado na experiência das populações indianas na África Oriental britânica. Pensar a posição estrutural destas populações na África Oriental implica pensar um processo histórico e político de fabricação de uma categoria racial. Neste ponto importa perceber não apenas como o discurso sobre estas categorias é construído de modo performativo mas, em particular, como as estruturas coloniais são também ‘culturalmente produzidas’ (Hall, 2004, p. 109). O modo como os estereótipos se disseminam e o modo como o estatuto destas populações evolui, é debatido e definido representam um lastro indispensável para compreender as trajectórias individuais e colectivas nos terrenos pós-coloniais.

O modelo colonial britânico prevalecente na África Oriental durante o século XX foi responsável por um tipo de sistema social que foi amiúde descrito como ‘sociedades plurais’ (Benedict, 1962). Todas as sociedades se podem caracterizar por uma presença relativa de elementos pluralistas, num sentido diferenciador. Todavia, a epistemologia imperial britânica apoiava-se no pressuposto primordialista das filiações culturais e no seu encastramento nas dissemelhanças fenotípicas. Neste sentido, a distância cultural/fenotípica foi sendo institucionalmente salvaguardada à medida que o desenvolvimento do projecto colonial no leste africano foi avançando. Um projecto que facilitou e promoveu a segregação institucional dos diferentes grupos étnicos nas colónias britânicas do Leste Africano.

As sociedades coloniais plurais, tal como foram inicialmente teorizadas por J. Furnivall (1939), seriam constituídas em torno do mercado, não consentindo espaço à

solidariedade orgânica durkheimiana. A esfera económica, o mercado de Furnivall, delimitaria o espaço possível de relacionamento entre os diferentes grupos étnicos e é nesta, em exclusivo, que as relações inter-étnicas se concretizam. Mais tarde, M. G. Smith (1969), por sua vez, reconhece o mercado como um espaço de competição e exploração onde coalescem categorias étnicas mas acrescenta um elemento crucial representado pela subordinação do campo económico, e por conseguinte da generalidade dos grupos étnicos que o constituem, ao poder político monopolizado pelo estado colonial. Uma leitura cruzada destes autores permite ‘ler’ a sociedade plural como um contexto alicerçado simultaneamente na economia de mercado e na hegemonia colonial. Uma hegemonia que estrutura níveis de pertença e mantém o monopólio da distribuição de recursos materiais e simbólicos dentro das fronteiras do império ao nomear grupos e estabelecer os critérios oficiais de identificação colectiva válidos a partir dos quais essa distribuição é permitida. É na definição das regras de pertença que se joga o acesso aos principais recursos. No limite, a discussão retórica sobre a efectiva lealdade das populações de origem indiana foi mantida em aberto ao longo da história, daí resultando um desafio periódico à continuidade das populações de origem indiana nestes territórios.

A retórica assimilacionista dominante na África Oriental portuguesa a partir do Estado Novo, embora com efeitos práticos nem sempre facilmente determináveis (Castro Henriques, 1998) e coeva de instrumentos jurídicos, como o indigenato, que sustentavam a desqualificação racial das populações nativas, deu, ainda assim, origem a um modelo social com características diferentes do modelo colonial britânico. Se, por um lado, é evidente uma segregação residencial e uma cristalização étnica semelhante à verificada na África Oriental britânica; por outro lado, o reforço dessa distinção por via da separação institucional não parece ter sido uma opção considerada. Não há dúvidas quanto à preponderância do factor racial na estruturação das relações económicas na sociedade moçambicana durante o período colonial. É fora dessa esfera que parecem sobressair evidências de uma intersticialidade onde a classe social parece sobrepor-se à diferenciação étnica. Uma porosidade simultaneamente confirmada e infirmada pela atitude do Estado português após a independência moçambicana para com as populações de origem indiana no território, como veremos adiante.

De finais do século XIX em diante, a questão fundamental que enquadra a presença das populações indianas em África pode resumir-se à sua posição estrutural

solidariedade orgânica durkheimiana. A esfera económica, o mercado de Furnivall, delimitaria o espaço possível de relacionamento entre os diferentes grupos étnicos e é nesta, em exclusivo, que as relações inter-étnicas se concretizam. Mais tarde, M. G. Smith (1969), por sua vez, reconhece o mercado como um espaço de competição e exploração onde coalescem categorias étnicas mas acrescenta um elemento crucial representado pela subordinação do campo económico, e por conseguinte da generalidade dos grupos étnicos que o constituem, ao poder político monopolizado pelo estado colonial. Uma leitura cruzada destes autores permite ‘ler’ a sociedade plural como um contexto alicerçado simultaneamente na economia de mercado e na hegemonia colonial. Uma hegemonia que estrutura níveis de pertença e mantém o monopólio da distribuição de recursos materiais e simbólicos dentro das fronteiras do império ao nomear grupos e estabelecer os critérios oficiais de identificação colectiva válidos a partir dos quais essa distribuição é permitida. É na definição das regras de pertença que se joga o acesso aos principais recursos. No limite, a discussão retórica sobre a efectiva lealdade das populações de origem indiana foi mantida em aberto ao longo da história, daí resultando um desafio periódico à continuidade das populações de origem indiana nestes territórios.

A retórica assimilacionista dominante na África Oriental portuguesa a partir do Estado Novo, embora com efeitos práticos nem sempre facilmente determináveis (Castro Henriques, 1998) e coeva de instrumentos jurídicos, como o indigenato, que sustentavam a desqualificação racial das populações nativas, deu, ainda assim, origem a um modelo social com características diferentes do modelo colonial britânico. Se, por um lado, é evidente uma segregação residencial e uma cristalização étnica semelhante à verificada na África Oriental britânica; por outro lado, o reforço dessa distinção por via da separação institucional não parece ter sido uma opção considerada. Não há dúvidas quanto à preponderância do factor racial na estruturação das relações económicas na sociedade moçambicana durante o período colonial. É fora dessa esfera que parecem sobressair evidências de uma intersticialidade onde a classe social parece sobrepor-se à diferenciação étnica. Uma porosidade simultaneamente confirmada e infirmada pela atitude do Estado português após a independência moçambicana para com as populações de origem indiana no território, como veremos adiante.

De finais do século XIX em diante, a questão fundamental que enquadra a presença das populações indianas em África pode resumir-se à sua posição estrutural

nas sociedades coloniais para onde migraram e aos limites impostos à sua participação nessas mesmas sociedades, em todas as suas esferas. Esta leitura remete para a interpretação das trajectórias destas populações em função de um duplo eixo explicativo: em primeiro lugar, para uma situação de marginalidade imperial, no sentido em que são categorizadas e juridicamente bloqueadas; em segundo lugar, para um encastramento fundamental na estrutura económica destas sociedades. Com efeito, como pretendemos demonstrar, ambas as circunstâncias tiveram consequências cruciais nas biografias coloniais e pós-coloniais destas populações matizadas nas diferenças e semelhanças dos dois contextos que nos propomos analisar.

No período em que a cidadania imperial britânica fazia ainda parte de um locus metropolitano e do seu incipiente programa de Imperialismo Social72 que visava doutrinar um segmento juvenil da população britânica que providencialmente povoaria os cantos do império, a imagem do seu domínio era produzida enquanto desígnio da nação que singularmente se tinha relacionado com as populações nativas através de uma autoridade benevolente, sinónimo do carácter imperial autêntico. Em paralelo com a retórica imperial magnânime e inclusiva, a hierarquização difundida nos manuais de geografia imperial não deixava de representar a perspectiva inglesa sobre a ordenação civilizacional: primeiro a Grã-Bretanha; consecutivamente os Domínios; depois a Índia; de seguida as Colónias; e por fim os Protectorados (Maddrell, 1996, pp. 374, 381).

O cidadão do império era definido pela sua relação de subordinação à Coroa. Já as prerrogativas associadas ao enfileiramento imperial estavam mais subordinadas à cor da pele do que ao preenchimento formal dos critérios legais necessários ao estatuto de súbdito do império. A cidadania, como vimos anteriormente, manteve-se, desde muito cedo, na dianteira das reivindicações das populações indianas nas colónias europeias da África Oriental que reclamavam a conformidade de direitos com os colonos europeus. Os impérios eram, não obstante a produção de uma ideologia unitária e, por vezes, igualitária, espaços vastos onde a ordem social e a política nem sempre correspondiam a uma emanação directa da autoridade metropolitana. A ideia de cidadão, e as fronteiras que esta impõe, numa matriz global de expansão dos Estados-nação marca a história dos movimentos migratórios de um modo geral, em particular das populações indianas no continente africano desde os

72 Na expressão de Cecil Rhodes (em Maddrell, 1996, p. 373).

nas sociedades coloniais para onde migraram e aos limites impostos à sua participação nessas mesmas sociedades, em todas as suas esferas. Esta leitura remete para a interpretação das trajectórias destas populações em função de um duplo eixo explicativo: em primeiro lugar, para uma situação de marginalidade imperial, no sentido em que são categorizadas e juridicamente bloqueadas; em segundo lugar, para um encastramento fundamental na estrutura económica destas sociedades. Com efeito, como pretendemos demonstrar, ambas as circunstâncias tiveram consequências cruciais nas biografias coloniais e pós-coloniais destas populações matizadas nas diferenças e semelhanças dos dois contextos que nos propomos analisar.

No período em que a cidadania imperial britânica fazia ainda parte de um locus metropolitano e do seu incipiente programa de Imperialismo Social72 que visava doutrinar um segmento juvenil da população britânica que providencialmente povoaria os cantos do império, a imagem do seu domínio era produzida enquanto desígnio da nação que singularmente se tinha relacionado com as populações nativas através de uma autoridade benevolente, sinónimo do carácter imperial autêntico. Em paralelo com a retórica imperial magnânime e inclusiva, a hierarquização difundida nos manuais de geografia imperial não deixava de representar a perspectiva inglesa sobre a ordenação civilizacional: primeiro a Grã-Bretanha; consecutivamente os Domínios; depois a Índia; de seguida as Colónias; e por fim os Protectorados (Maddrell, 1996, pp. 374, 381).

O cidadão do império era definido pela sua relação de subordinação à Coroa. Já as prerrogativas associadas ao enfileiramento imperial estavam mais subordinadas à cor da pele do que ao preenchimento formal dos critérios legais necessários ao estatuto de súbdito do império. A cidadania, como vimos anteriormente, manteve-se, desde muito cedo, na dianteira das reivindicações das populações indianas nas colónias europeias da África Oriental que reclamavam a conformidade de direitos com os colonos europeus. Os impérios eram, não obstante a produção de uma ideologia unitária e, por vezes, igualitária, espaços vastos onde a ordem social e a política nem sempre correspondiam a uma emanação directa da autoridade metropolitana. A ideia de cidadão, e as fronteiras que esta impõe, numa matriz global de expansão dos Estados-nação marca a história dos movimentos migratórios de um modo geral, em particular das populações indianas no continente africano desde os

finais do século XIX ao revelar um desfasamento crítico entre os fundamentos ideológicos da ideia clássica de império e da virtual igualdade de direitos dos indivíduos que o preenchem e as formas de organização do poder colonial.

O ideal de cidadania, como hoje o reconhecemos, desenvolve-se num contexto de expansão do modelo nacionalista. Um paralelismo contraditório na perspectiva de Turner (1994, p. 461), que vê no pressuposto de pertença a um Estado a principal limitação à ideia de cidadania. Marshall (1994, p. 17), por sua vez, afirma a centralidade do conceito e da natureza do conjunto de direitos e deveres que lhes são associados como uma das principais variáveis na avaliação do carácter dos estados modernos ocidentais, embora não deixe de definir cidadania como um “status bestowed on those who are full members of a community”. A concepção de pertença plena a uma ‘comunidade’, neste caso uma ‘comunidade’ com fronteiras geopolíticas, revela-se bastante mais complexa de organizar apenas com base em princípios formais quando no interior dessa mesma comunidade concorrem diferentes ordens de categorização social (étnico/racial, económica, religiosa, entre outras). A determinação das regras de pertença a essa mesma ‘comunidade’ através da instituição de categorias diferenciadas e o tipo de objectivos que os diferentes estatutos servem são questões centrais na história da evolução do conceito e revelam as tensões que lhe estão subjacentes. Se, por um lado, é possível reconhecer o alcance do conceito e do potencial que representa a sua defesa política como equalizador social numa sociedade de classes; por outro lado, a sua relevância em contextos onde a dimensão étnica se sobrepõe às divisões de classe é bastante mais discutível. Tudo se complexifica ainda mais quando pensamos a questão da cidadania num período de desagregação dos impérios coloniais europeus. Por um lado, as retóricas imperialistas assentavam a sua legitimação em função de ideais de assimilação ou de convivialidade plurirracial – eixos dominantes da praxis discursiva governativa e bandeiras de orgulho nacional. Por outro lado, a aplicação dessa mesma discursividade pluralista, etnicamente neutra e inclusiva, nas fases pós-coloniais, às ex-metrópoles desmascarou as tensões étnicas e o racismo transversal aos projectos coloniais europeus.

O percurso das populações hindus com que trabalhámos mostra objectivamente como não é possível olhar a cidadania apenas de um ponto de vista jurídico-teórico. O reconhecimento formal do estatuto de cidadão, que marca a linha de fronteira entre concidadãos e os que estão excluídos da esfera de direitos reservada

finais do século XIX ao revelar um desfasamento crítico entre os fundamentos ideológicos da ideia clássica de império e da virtual igualdade de direitos dos indivíduos que o preenchem e as formas de organização do poder colonial.

O ideal de cidadania, como hoje o reconhecemos, desenvolve-se num contexto de expansão do modelo nacionalista. Um paralelismo contraditório na perspectiva de Turner (1994, p. 461), que vê no pressuposto de pertença a um Estado a principal limitação à ideia de cidadania. Marshall (1994, p. 17), por sua vez, afirma a centralidade do conceito e da natureza do conjunto de direitos e deveres que lhes são associados como uma das principais variáveis na avaliação do carácter dos estados modernos ocidentais, embora não deixe de definir cidadania como um “status bestowed on those who are full members of a community”. A concepção de pertença plena a uma ‘comunidade’, neste caso uma ‘comunidade’ com fronteiras geopolíticas, revela-se bastante mais complexa de organizar apenas com base em princípios formais quando no interior dessa mesma comunidade concorrem diferentes ordens de categorização social (étnico/racial, económica, religiosa, entre outras). A determinação das regras de pertença a essa mesma ‘comunidade’ através da instituição de categorias diferenciadas e o tipo de objectivos que os diferentes estatutos servem são questões centrais na história da evolução do conceito e revelam as tensões que lhe estão subjacentes. Se, por um lado, é possível reconhecer o alcance do conceito e do potencial que representa a sua defesa política como equalizador social numa sociedade de classes; por outro lado, a sua relevância em contextos onde a dimensão étnica se sobrepõe às divisões de classe é bastante mais discutível. Tudo se complexifica ainda mais quando pensamos a questão da cidadania num período de desagregação dos impérios coloniais europeus. Por um lado, as retóricas imperialistas assentavam a sua legitimação em função de ideais de assimilação ou de convivialidade plurirracial – eixos dominantes da praxis discursiva governativa e bandeiras de orgulho nacional. Por outro lado, a aplicação dessa mesma discursividade pluralista, etnicamente neutra e inclusiva, nas fases pós-coloniais, às ex-metrópoles desmascarou as tensões étnicas e o racismo transversal aos projectos coloniais europeus.

O percurso das populações hindus com que trabalhámos mostra objectivamente como não é possível olhar a cidadania apenas de um ponto de vista jurídico-teórico. O reconhecimento formal do estatuto de cidadão, que marca a linha de fronteira entre concidadãos e os que estão excluídos da esfera de direitos reservada

aos primeiros, esteve longe de, no espaço colonial, representar uma plataforma comum de direitos partilhados igualitariamente. Principalmente devido a essa desigualdade, simultaneamente simbólica e material, a evolução colonial e pós- colonial da ideia de cidadania e a exiguidade imposta do seu raio de acção é central para compreendermos o percurso das populações hindus migradas para o leste africano. Os protestos das populações de origem indiana nas primeiras décadas do séc. XX nas colónias africanas reflectem uma aspiração igualitária na atribuição de direitos com base na execução plena das regras de pertença. O isolamento social, económico e político imposto às populações nativas africanas era justificado numa base civilizacional, ou de falta de aptidões formais, verbalizadas por Cecil Rhodes na famosa proposição ‘Equal rights for all civilized men’ (Mamdani, 1996, p. 17). Com os indianos os argumentos eram sobretudo culturais e de personalidade (exploradores dos africanos). Os indianos da África Oriental, britânica e portuguesa, eram na sua maioria naturais desses territórios ou de partes da Índia sobre administração desses mesmos países e teriam, por conseguinte, direito aos mesmos privilégios que os colonos europeus. O quadro legislativo foi, no entanto, bastante restritivo à sua