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O S HINDUS NA Á FRICA O RIENTAL B RITÂNICA : C OMÉRCIO E DESIGUALDADE (1880-1963)

As populações hindus que habitaram uma parte significativa do espaço e do tempo do continente africano foram protagonistas de uma história complexa com um âmbito de vários séculos e compelida por uma multitude de factores. Uma história difícil de abarcar na sua totalidade. Não por que os factores conjunturais, nos contextos de origem e de recepção, sejam particularmente difíceis de identificar, mas porque são múltiplos, estão interligados e porque há também a acrescentar uma dimensão individual que ultrapassa a lógica processual inerente aos movimentos migratórios e às características genéricas das trajectórias das populações neles envolvidas.

Os indivíduos desenvolvem procedimentos oportunos e particulares na tomada de decisões que afectam as suas vidas, isto é, fazem escolhas que nem sempre um outro indivíduo numa situação mais ou menos semelhante e sujeito à mesma ordem e tipo de constrangimentos faria. O parentesco, a religião, o capital económico, o capital social, a idade, o número de pessoas dependentes de si, etc., em suma, as redes sociais, e os condicionamentos e as retribuições derivadas destas, de que fazem parte os nossos interlocutores, concorrem em partes desiguais na definição dos percursos individuais. Como exemplo: se para um dos nossos interlocutores a iminência de um casamento forçado aos 19 anos no Uganda o transporta na década de 50 para Manchester, onde ficou sob a alçada de um tio paterno que intencionalmente lhe tinha subtraído o seu passaporte, como alternativa imposta a um desejado regresso à Índia; para outro, a nacionalização do seu cargo no Tanzânia e a presença de um cunhado em Inglaterra são os factores que (in)voluntariamente o conduzem às fiações mancunianas na década de 60.

Perante um cenário tão plural quanto o número de histórias individuais que o compõem, o principal objectivo é, por conseguinte, encontrar o ponto de equilíbrio explicativo entre os constrangimentos sociais, económicos e políticos de uma época e a percepção e reacção de uma população constituída por indivíduos. Indivíduos que não são independentes da sua própria matriz colectiva nem estranhos à história que os precede. Se num primeiro capítulo a ‘voz’ dos nossos interlocutores se encontra

CAPÍTULO II

O

S HINDUS NA

Á

FRICA

O

RIENTAL

B

RITÂNICA

:C

OMÉRCIO E DESIGUALDADE

(1880-1963)

As populações hindus que habitaram uma parte significativa do espaço e do tempo do continente africano foram protagonistas de uma história complexa com um âmbito de vários séculos e compelida por uma multitude de factores. Uma história difícil de abarcar na sua totalidade. Não por que os factores conjunturais, nos contextos de origem e de recepção, sejam particularmente difíceis de identificar, mas porque são múltiplos, estão interligados e porque há também a acrescentar uma dimensão individual que ultrapassa a lógica processual inerente aos movimentos migratórios e às características genéricas das trajectórias das populações neles envolvidas.

Os indivíduos desenvolvem procedimentos oportunos e particulares na tomada de decisões que afectam as suas vidas, isto é, fazem escolhas que nem sempre um outro indivíduo numa situação mais ou menos semelhante e sujeito à mesma ordem e tipo de constrangimentos faria. O parentesco, a religião, o capital económico, o capital social, a idade, o número de pessoas dependentes de si, etc., em suma, as redes sociais, e os condicionamentos e as retribuições derivadas destas, de que fazem parte os nossos interlocutores, concorrem em partes desiguais na definição dos percursos individuais. Como exemplo: se para um dos nossos interlocutores a iminência de um casamento forçado aos 19 anos no Uganda o transporta na década de 50 para Manchester, onde ficou sob a alçada de um tio paterno que intencionalmente lhe tinha subtraído o seu passaporte, como alternativa imposta a um desejado regresso à Índia; para outro, a nacionalização do seu cargo no Tanzânia e a presença de um cunhado em Inglaterra são os factores que (in)voluntariamente o conduzem às fiações mancunianas na década de 60.

Perante um cenário tão plural quanto o número de histórias individuais que o compõem, o principal objectivo é, por conseguinte, encontrar o ponto de equilíbrio explicativo entre os constrangimentos sociais, económicos e políticos de uma época e a percepção e reacção de uma população constituída por indivíduos. Indivíduos que não são independentes da sua própria matriz colectiva nem estranhos à história que os precede. Se num primeiro capítulo a ‘voz’ dos nossos interlocutores se encontra

aparentemente ausente por força da necessidade do detalhe histórico imprescindível à compreensão das circunstancialidades de um processo multifacetado e multilocalizado; quando entramos no século XX é justamente essa ‘voz’ que melhor permite acompanhar a evolução dos números e as actas de uma história particular: a das populações hindus no leste africano.

As populações de origem indiana que se estabeleceram ao longo da costa índica do continente africano foram-se diferenciando de acordo com zonas de proveniência, religião, casta, etc. resistindo à tendência colonial para a categorização simplista e homogeneizadora das populações que habitavam o império. O esquema de relações sociais dominante assentava numa lógica dicotómica branco/não branco e numa profunda resistência a ímpetos contrários a essa mesma lógica. E embora com recursos económicos e organizacionais mais sofisticados do que os disponíveis à maioria nativa, as populações indianas enfrentaram um conjunto de obstáculos sérios e constantes no que concerne ao reconhecimento de direitos sociais, de propriedade e mesmo de entrada e permanência nas colónias africanas. Estes embargos tornaram-se constitutivos da identidade destas populações e foram determinantes nas escolhas individuais e percursos colectivos antes, durante e após as independências africanas. As sucessivas declarações e demonstrações políticas coloniais que descreviam a presença indiana no leste africano como uma população economicamente bem sucedida mas à custa da exploração da população nativa e pouco disposta a criar laços permanentes com o território fez impender sobre todos os indianos estigmas vários e duradoiros e uma incerteza constante relativamente ao futuro e à sua posição nas sociedades de acolhimento. Essa dúvida é resultado de uma experiência histórica e colectiva de discriminação baseada numa racialização e/ou culturalização (nem sempre é fácil distingui-las) negativamente estereotipada, onde encontramos quase sempre factores explicativos coadjuvantes de natureza concorrencial. Voltamos a encontrar esta dúvida, aliás, entre os nossos interlocutores remigrados. Apenas no espaço de discussão entre a história económica e política destas populações e a sua própria voz podemos melhor compreendê-la.

Por um lado, podemos encontrar apoio em alguns trabalhos de natureza historiográfica25 para a elaboração de um quadro descritivo e explicativo sobre os processos sociais, económicos e políticos mais vastos que condicionaram a vida das

25 Morris, 1956; Mangat, 1969; Ghai e Ghai, 1970; Gregory, 1971, 1993; Markovits, 1999 inter alia.

aparentemente ausente por força da necessidade do detalhe histórico imprescindível à compreensão das circunstancialidades de um processo multifacetado e multilocalizado; quando entramos no século XX é justamente essa ‘voz’ que melhor permite acompanhar a evolução dos números e as actas de uma história particular: a das populações hindus no leste africano.

As populações de origem indiana que se estabeleceram ao longo da costa índica do continente africano foram-se diferenciando de acordo com zonas de proveniência, religião, casta, etc. resistindo à tendência colonial para a categorização simplista e homogeneizadora das populações que habitavam o império. O esquema de relações sociais dominante assentava numa lógica dicotómica branco/não branco e numa profunda resistência a ímpetos contrários a essa mesma lógica. E embora com recursos económicos e organizacionais mais sofisticados do que os disponíveis à maioria nativa, as populações indianas enfrentaram um conjunto de obstáculos sérios e constantes no que concerne ao reconhecimento de direitos sociais, de propriedade e mesmo de entrada e permanência nas colónias africanas. Estes embargos tornaram-se constitutivos da identidade destas populações e foram determinantes nas escolhas individuais e percursos colectivos antes, durante e após as independências africanas. As sucessivas declarações e demonstrações políticas coloniais que descreviam a presença indiana no leste africano como uma população economicamente bem sucedida mas à custa da exploração da população nativa e pouco disposta a criar laços permanentes com o território fez impender sobre todos os indianos estigmas vários e duradoiros e uma incerteza constante relativamente ao futuro e à sua posição nas sociedades de acolhimento. Essa dúvida é resultado de uma experiência histórica e colectiva de discriminação baseada numa racialização e/ou culturalização (nem sempre é fácil distingui-las) negativamente estereotipada, onde encontramos quase sempre factores explicativos coadjuvantes de natureza concorrencial. Voltamos a encontrar esta dúvida, aliás, entre os nossos interlocutores remigrados. Apenas no espaço de discussão entre a história económica e política destas populações e a sua própria voz podemos melhor compreendê-la.

Por um lado, podemos encontrar apoio em alguns trabalhos de natureza historiográfica25 para a elaboração de um quadro descritivo e explicativo sobre os processos sociais, económicos e políticos mais vastos que condicionaram a vida das

populações indianas no leste africano bem como os seus movimentos e a sua demografia. Por outro lado, porém, torna-se problemático tentar compreender o impacto efectivo e diferenciado que esses fenómenos tiveram sobre os indivíduos. Essa decomposição, que está por vezes ausente dos trabalhos com um pendor mais historiográfico, é a vocação desta obra e é responsável pela obrigatória complexificação que empreendemos da leitura da realidade vivida por indivíduos ou grupos familiares.

O registo antropológico e etnográfico, embora bastante mais preciso ao nível das matrizes culturais que guiam as práticas e atitudes de grupos sociais de dimensão mais reduzida, pode por vezes tornar-se incapaz de salientar a valência dos processos de decisão individuais. As leituras sobre o encastramento cultural dos indivíduos via prática religiosa e eventuais normas de casta e de parentesco ligadas a um contexto ancestral com raízes nos locais de origem correm o risco de abordar a matriz religiosa e cultural como uma componente monolítica e imutável. Se há algo que sobressai de uma observação histórica alargada sobre as biografias destas populações migrantes é a sua capacidade de adaptação a contextos e realidades diferenciadas e, na maioria dos casos, hostis. Uma maleabilidade cultural que não passa exclusivamente por um fechamento e reforço das tradições religiosas. Se é verdade que é evidente a manutenção, e nalguns casos reforço, de um conjunto de tradições religiosas associadas à ‘grande tradição’26; também não é menos verdade que a validade de alguns preceitos religiosos expirou durante o período migratório27.

26 Ainda no século XIX surgem diferentes movimentos (Brahmo Samaj, Arya Sama, Ramakrishna,

entre outros) que se tornarão responsáveis pela multiplicação de propostas de consubstanciação das práticas religiosas hindus e, em particular, do papel que nestas estava guardado aos textos religiosos, bem como sobre temas fracturantes como a hierarquização social com base na pertença de casta. Com a resultante proliferação de estudos sobre a prática religiosa nasce um dualismo que ficou conhecido como a “Pequena Tradição” vs. a “Grande Tradição” ou, por outras palavras, “hinduísmo popular” e “hinduísmo oficial”: o primeiro engloba as práticas religiosas quotidianas locais revelando uma diversidade regional das rotinas religiosas; o segundo, fonte primeva, consiste nas fontes religiosas sobre as quais trabalhavam hindulogistas, estudiosos do sânscrito e historiadores da religião (estavam presentes, não obstante a divisão formal, denominadores comuns às várias interpretações, tais como: a trindade divina composta por Brahma, Vishnu e Shiva; a santidade da vaca, um dos elementos unificadores do hinduísmo aquando dos discursos independentistas por oposição a ingleses e a muçulmanos; alguns locais de peregrinação; e a centralidade dos épicos religiosos Mahabarata e

Ramayana (Vertovec, 2000; Fuller, 1992).

27 Caducidade essa que foi em alguns contextos invertida por acção de alguns grupos e seitas hindus,

algumas de carácter nacionalista, que encontraram nos locais de destino migratório um importante espaço de conquista de legitimidade bem como de captação de fundos para projectos políticos e sociais em curso na Índia. Veja-se o exemplo das seitas Arya Samaj e Swaminarayan e do efeito que tiverem na prática religiosa de algumas populações hindus (vd. Knott, 1994 e Shukla, 2003).

populações indianas no leste africano bem como os seus movimentos e a sua demografia. Por outro lado, porém, torna-se problemático tentar compreender o impacto efectivo e diferenciado que esses fenómenos tiveram sobre os indivíduos. Essa decomposição, que está por vezes ausente dos trabalhos com um pendor mais historiográfico, é a vocação desta obra e é responsável pela obrigatória complexificação que empreendemos da leitura da realidade vivida por indivíduos ou grupos familiares.

O registo antropológico e etnográfico, embora bastante mais preciso ao nível das matrizes culturais que guiam as práticas e atitudes de grupos sociais de dimensão mais reduzida, pode por vezes tornar-se incapaz de salientar a valência dos processos de decisão individuais. As leituras sobre o encastramento cultural dos indivíduos via prática religiosa e eventuais normas de casta e de parentesco ligadas a um contexto ancestral com raízes nos locais de origem correm o risco de abordar a matriz religiosa e cultural como uma componente monolítica e imutável. Se há algo que sobressai de uma observação histórica alargada sobre as biografias destas populações migrantes é a sua capacidade de adaptação a contextos e realidades diferenciadas e, na maioria dos casos, hostis. Uma maleabilidade cultural que não passa exclusivamente por um fechamento e reforço das tradições religiosas. Se é verdade que é evidente a manutenção, e nalguns casos reforço, de um conjunto de tradições religiosas associadas à ‘grande tradição’26; também não é menos verdade que a validade de alguns preceitos religiosos expirou durante o período migratório27.

26 Ainda no século XIX surgem diferentes movimentos (Brahmo Samaj, Arya Sama, Ramakrishna,

entre outros) que se tornarão responsáveis pela multiplicação de propostas de consubstanciação das práticas religiosas hindus e, em particular, do papel que nestas estava guardado aos textos religiosos, bem como sobre temas fracturantes como a hierarquização social com base na pertença de casta. Com a resultante proliferação de estudos sobre a prática religiosa nasce um dualismo que ficou conhecido como a “Pequena Tradição” vs. a “Grande Tradição” ou, por outras palavras, “hinduísmo popular” e “hinduísmo oficial”: o primeiro engloba as práticas religiosas quotidianas locais revelando uma diversidade regional das rotinas religiosas; o segundo, fonte primeva, consiste nas fontes religiosas sobre as quais trabalhavam hindulogistas, estudiosos do sânscrito e historiadores da religião (estavam presentes, não obstante a divisão formal, denominadores comuns às várias interpretações, tais como: a trindade divina composta por Brahma, Vishnu e Shiva; a santidade da vaca, um dos elementos unificadores do hinduísmo aquando dos discursos independentistas por oposição a ingleses e a muçulmanos; alguns locais de peregrinação; e a centralidade dos épicos religiosos Mahabarata e

Ramayana (Vertovec, 2000; Fuller, 1992).

27 Caducidade essa que foi em alguns contextos invertida por acção de alguns grupos e seitas hindus,

algumas de carácter nacionalista, que encontraram nos locais de destino migratório um importante espaço de conquista de legitimidade bem como de captação de fundos para projectos políticos e sociais em curso na Índia. Veja-se o exemplo das seitas Arya Samaj e Swaminarayan e do efeito que tiverem na prática religiosa de algumas populações hindus (vd. Knott, 1994 e Shukla, 2003).

Quanto à oscilação entre as hipóteses da flexibilidade ou do fechamento religioso-cultural para caracterizar as populações hindus-gujaratis no leste africano, sentimo-nos inclinados a concordar em parte com Adams (1974, p. 190) quando este afirma que algumas das particularidades do complexo casta-parentesco-religião- corporativismo económico que caracterizam na Índia os sistemas sociais hindus não eram matéria exportável; valendo a pena acrescentar, na perspectiva do autor, que os hindus que migraram “tended to be among the less culturally committed to begin with.” Aquilo que provavelmente o autor nos diz, mas de uma forma talvez um pouco desamparada, é que aqueles que decidem encetar um projecto migratório serão provavelmente aqueles que tenderão a ter uma perspectiva mais pragmática sobre alguns dos bloqueios contidos na interpretação mais ortodoxa das mitologias bramânicas hindus, a começar precisamente, como vimos no capítulo anterior, travessia das negras águas do Índico. Dessa forma, o espírito empreendedor, ou as oportunidades acessíveis neste novo contexto, sobrepor-se-iam à ligação irredutível de um hindu à sua terra e à mundividência religiosa.

Aqui somos obrigados a introduzir uma outra ressalva, dada a influência desta no modo como construímos este capítulo. Apesar de uma percepção generalizada de que as migrações protagonizadas pelas populações indianas após as independências africanas corresponderam a um processo relativamente pacífico e ordenado de transferência das redes sociais (falamos obviamente das redes agregadas a partir do critério de casta e de parentesco) operantes nas cidades e nas vilas da África Oriental para os ex-centros imperiais, o modo como essas redes pós-coloniais se constituíram, ou reconstituíram, parecem-nos mais um resultado de escolhas e constrangimentos individuais do que de uma consciência colectiva instintivamente responsável por um abandono metódico e faseado do continente africano28. A dispersão das populações hindus pelos territórios que são conhecidos hoje como Uganda, Quénia e Tanganyika e a existência de redes sociais importantes que se constituíram já em África, via colaborações comerciais, casamentos, etc. que atravessavam fronteiras, bem como solidariedades regionais na origem, deram origem em Inglaterra a grupos com um mapa de proveniências geográficas (africanas) bastante heterogéneo, apesar da

28 A excepção a esta suspeição são os Khojas Ismailis que desde bastante cedo se mantiveram fieis à

orientação do seu líder Aga Khan e de quem foram recebendo directivas em momentos-chave. Questões como a ocidentalização dos costumes, o apoio explícito às reclamações nacionalistas africanas e o abandono do território antecipando períodos mais convulsivos fizeram parte das recomendações de Aga Khan às populações ismailis na África Oriental (Thompson, 1975).

Quanto à oscilação entre as hipóteses da flexibilidade ou do fechamento religioso-cultural para caracterizar as populações hindus-gujaratis no leste africano, sentimo-nos inclinados a concordar em parte com Adams (1974, p. 190) quando este afirma que algumas das particularidades do complexo casta-parentesco-religião- corporativismo económico que caracterizam na Índia os sistemas sociais hindus não eram matéria exportável; valendo a pena acrescentar, na perspectiva do autor, que os hindus que migraram “tended to be among the less culturally committed to begin with.” Aquilo que provavelmente o autor nos diz, mas de uma forma talvez um pouco desamparada, é que aqueles que decidem encetar um projecto migratório serão provavelmente aqueles que tenderão a ter uma perspectiva mais pragmática sobre alguns dos bloqueios contidos na interpretação mais ortodoxa das mitologias bramânicas hindus, a começar precisamente, como vimos no capítulo anterior, travessia das negras águas do Índico. Dessa forma, o espírito empreendedor, ou as oportunidades acessíveis neste novo contexto, sobrepor-se-iam à ligação irredutível de um hindu à sua terra e à mundividência religiosa.

Aqui somos obrigados a introduzir uma outra ressalva, dada a influência desta no modo como construímos este capítulo. Apesar de uma percepção generalizada de que as migrações protagonizadas pelas populações indianas após as independências africanas corresponderam a um processo relativamente pacífico e ordenado de transferência das redes sociais (falamos obviamente das redes agregadas a partir do critério de casta e de parentesco) operantes nas cidades e nas vilas da África Oriental para os ex-centros imperiais, o modo como essas redes pós-coloniais se constituíram, ou reconstituíram, parecem-nos mais um resultado de escolhas e constrangimentos individuais do que de uma consciência colectiva instintivamente responsável por um abandono metódico e faseado do continente africano28. A dispersão das populações hindus pelos territórios que são conhecidos hoje como Uganda, Quénia e Tanganyika e a existência de redes sociais importantes que se constituíram já em África, via colaborações comerciais, casamentos, etc. que atravessavam fronteiras, bem como