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O S HINDUS NA Á FRICA O RIENTAL P ORTUGUESA : M OÇAMBIQUE , RELAÇÕES INTER ÉTNICAS E O MITO DA SINGULARIDADE DO CARÁCTER

PORTUGUÊS

(1686-1974)

Tal como foi possível discutir as condições em que a partir da aurora colonial as estruturas sociais dos territórios do leste africano se recompuseram em torno de um conjunto de ideias racialmente divisoras, é também possível, através de um processo análogo de inquirição de fontes secundárias e primárias, encontrar os elementos explicativos para uma comparável cristalização social, com nuances próprias é certo, na África Oriental Portuguesa, mais concretamente em Moçambique. Ao contrário do que defendem as mitologias racialistas56, a segregação e as atitudes discriminatórias que um endogrupo mantém e manifesta relativamente a um exogrupo, em regra sustentadas por um conjunto de estereótipos e oposições binárias, não fazem parte de um esquema inato de disposições humanas. Tal como as conquistas, as expansões, os impérios, as cidades e as nações a segregação e as antinomias sociais têm uma história. Uma história que é, por defeito, multidimensional, complexa e ramificada o suficiente para tornar virtualmente impossível identificar um momento zero. A abordagem transdisciplinar que escolhemos permite contudo observar a emergência e a confluência das diferentes dimensões e processos envolvidos na história que nos propusemos contar. No que diz respeito à presença portuguesa no leste africano e ao domínio das relações inter-étnicas a história não é nem instantânea nem linear. No primeiro capítulo analisámos o início de um período de forte integração comercial internacional e as suas consequências no Índico. As mudanças ocorridas a partir do séc. XVI em diante transformaram significativamente as dinâmicas sociais em toda a região e as relações de poder, à medida que novos protagonistas e novos interesses se instalavam assistiram a sucessivas reorganizações, foram também modificando as geografias sociais nesses territórios. A importância do algodão e dos têxteis como moeda de troca primacial na intrincada rede de comércios transcontinentais foi igualmente apresentada como um vector fundamental na compreensão dos jogos de poder disputados nos diferentes territórios coloniais. Moçambique não foi obviamente imune como tivemos já oportunidade afirmar às tendências que se desenharam no

56 Ver e.g. Gobineau, Haeckel e Chamberlain em Cashmore, 1996.

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RIENTAL

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RELAÇÕES INTER

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ÉTNICAS E O MITO DA SINGULARIDADE DO CARÁCTER

PORTUGUÊS

(1686-1974)

Tal como foi possível discutir as condições em que a partir da aurora colonial as estruturas sociais dos territórios do leste africano se recompuseram em torno de um conjunto de ideias racialmente divisoras, é também possível, através de um processo análogo de inquirição de fontes secundárias e primárias, encontrar os elementos explicativos para uma comparável cristalização social, com nuances próprias é certo, na África Oriental Portuguesa, mais concretamente em Moçambique. Ao contrário do que defendem as mitologias racialistas56, a segregação e as atitudes discriminatórias que um endogrupo mantém e manifesta relativamente a um exogrupo, em regra sustentadas por um conjunto de estereótipos e oposições binárias, não fazem parte de um esquema inato de disposições humanas. Tal como as conquistas, as expansões, os impérios, as cidades e as nações a segregação e as antinomias sociais têm uma história. Uma história que é, por defeito, multidimensional, complexa e ramificada o suficiente para tornar virtualmente impossível identificar um momento zero. A abordagem transdisciplinar que escolhemos permite contudo observar a emergência e a confluência das diferentes dimensões e processos envolvidos na história que nos propusemos contar. No que diz respeito à presença portuguesa no leste africano e ao domínio das relações inter-étnicas a história não é nem instantânea nem linear. No primeiro capítulo analisámos o início de um período de forte integração comercial internacional e as suas consequências no Índico. As mudanças ocorridas a partir do séc. XVI em diante transformaram significativamente as dinâmicas sociais em toda a região e as relações de poder, à medida que novos protagonistas e novos interesses se instalavam assistiram a sucessivas reorganizações, foram também modificando as geografias sociais nesses territórios. A importância do algodão e dos têxteis como moeda de troca primacial na intrincada rede de comércios transcontinentais foi igualmente apresentada como um vector fundamental na compreensão dos jogos de poder disputados nos diferentes territórios coloniais. Moçambique não foi obviamente imune como tivemos já oportunidade afirmar às tendências que se desenharam no

Índico. O modo como a história colonial de Moçambique se cruza com a história mais vasta da expansão portuguesa e com os sucessivos e volúveis projectos e expectativas imperiais é crucial para compreendermos o percurso das populações indianas na colónia.

Mapa 3: Moçambique.

Fonte: http://www.lib.utexas.edu/maps/.

Os povos indígenas de Moçambique, de origem banto, foram quem estabeleceu os primeiros contactos com os navegadores e comerciantes da Arábia, Pérsia, Índia e outros pontos do oriente, atraídos pelo ouro da região. E terá sido por volta do século X que os primeiros árabes se estabeleceram na faixa litoral. Algumas das cidades ao longo da linha costeira do que é hoje Moçambique, como Sofala,

Índico. O modo como a história colonial de Moçambique se cruza com a história mais vasta da expansão portuguesa e com os sucessivos e volúveis projectos e expectativas imperiais é crucial para compreendermos o percurso das populações indianas na colónia.

Mapa 3: Moçambique.

Fonte: http://www.lib.utexas.edu/maps/.

Os povos indígenas de Moçambique, de origem banto, foram quem estabeleceu os primeiros contactos com os navegadores e comerciantes da Arábia, Pérsia, Índia e outros pontos do oriente, atraídos pelo ouro da região. E terá sido por volta do século X que os primeiros árabes se estabeleceram na faixa litoral. Algumas das cidades ao longo da linha costeira do que é hoje Moçambique, como Sofala,

conquistaram, bastante antes da chegada dos portugueses, o estatuto de pontos fundamentais das rotas comerciais do oriente. Esta em particular pelo comércio de ouro cuja rota começava no planalto que se estendia desde as terras altas de Manica. Embora importante, o facto de Sofala se localizar muito a sul dificultava o acesso directo por parte dos mercadores indianos e árabes que muitas vezes recorriam às cidades suaílis do norte que funcionavam como entrepostos devido ao factor que condicionou durante milénios a navegação no Índico – as monções. Tal como Sofala representava o núcleo de uma rede comercial local, outras cidades como Quíloa e Melinde possuíam a sua actividade mercantil e ‘colonatos satélites’ (Newitt, 1995, pp. 28-29). A sobrevivência destas cidades dependia da sua capacidade de atracção da produção continental interior ou de uma ‘indústria local’ que funcionava por sua vez como factor de captação da frequência e captação de mercadores externos. O séc. XVI, independentemente das dinâmicas de poder nos diferentes hinterlands, traz consigo importantes transformações nos domínios sobre o comércio marítimo que viriam a afectar profundamente os esquemas produtivos desta região.

A chegada dos portugueses ao Índico acontece também fruto de uma conjuntura particular e nas palavras de Newitt (1995, p. 32) mais como um ‘subproduto directo da pobreza de Portugal’ do que da sua riqueza, embora as motivações expansionistas continuem a ser matéria de alguma controvérsia (Boxer, 2002 [1953])57. Pêro da Covilhã é o primeiro navegador português a aportar na costa moçambicana ainda em 1490, mas proveniente da Índia onde tinha chegado via Suez e Adem, périplo no qual tentavam encontrar o mítico reino de Prestes João. Oito anos depois já Vasco da Gama descobre também nessa costa diversas cidades-estado ocupadas por árabes africanizados, suaílis, em virtude dos longos e estreitos contactos com as populações bantus. A origem do nome Moçambique está alegadamente ligada ao nome Mussa-bin-Mbiki, filho do Sultão Bin-Mbiki e senhor da ilha em que os Portugueses aportaram. Os suaílis trocavam com as populações negras do interior ouro, marfim, e em menor grau escravos por contas e peças de algodão de proveniência indiana (Boxer, 1967, p. 77). Mas será somente após a segunda viagem de Vasco da Gama ao Oriente, que tem início em 1502, que em Lisboa é tomada a decisão de ocupar e fortificar as cidades de Sofala e Quíloa e aí fundar feitorias com o objectivo de comprar ouro. Embora não estivesse nos planos dos navegadores

57 Para uma discussão sobre as condições em que acontece a expansão ultramarina quinhentista ver

Godinho, 1962.

conquistaram, bastante antes da chegada dos portugueses, o estatuto de pontos fundamentais das rotas comerciais do oriente. Esta em particular pelo comércio de ouro cuja rota começava no planalto que se estendia desde as terras altas de Manica. Embora importante, o facto de Sofala se localizar muito a sul dificultava o acesso directo por parte dos mercadores indianos e árabes que muitas vezes recorriam às cidades suaílis do norte que funcionavam como entrepostos devido ao factor que condicionou durante milénios a navegação no Índico – as monções. Tal como Sofala representava o núcleo de uma rede comercial local, outras cidades como Quíloa e Melinde possuíam a sua actividade mercantil e ‘colonatos satélites’ (Newitt, 1995, pp. 28-29). A sobrevivência destas cidades dependia da sua capacidade de atracção da produção continental interior ou de uma ‘indústria local’ que funcionava por sua vez como factor de captação da frequência e captação de mercadores externos. O séc. XVI, independentemente das dinâmicas de poder nos diferentes hinterlands, traz consigo importantes transformações nos domínios sobre o comércio marítimo que viriam a afectar profundamente os esquemas produtivos desta região.

A chegada dos portugueses ao Índico acontece também fruto de uma conjuntura particular e nas palavras de Newitt (1995, p. 32) mais como um ‘subproduto directo da pobreza de Portugal’ do que da sua riqueza, embora as motivações expansionistas continuem a ser matéria de alguma controvérsia (Boxer, 2002 [1953])57. Pêro da Covilhã é o primeiro navegador português a aportar na costa moçambicana ainda em 1490, mas proveniente da Índia onde tinha chegado via Suez e Adem, périplo no qual tentavam encontrar o mítico reino de Prestes João. Oito anos depois já Vasco da Gama descobre também nessa costa diversas cidades-estado ocupadas por árabes africanizados, suaílis, em virtude dos longos e estreitos contactos com as populações bantus. A origem do nome Moçambique está alegadamente ligada ao nome Mussa-bin-Mbiki, filho do Sultão Bin-Mbiki e senhor da ilha em que os Portugueses aportaram. Os suaílis trocavam com as populações negras do interior ouro, marfim, e em menor grau escravos por contas e peças de algodão de proveniência indiana (Boxer, 1967, p. 77). Mas será somente após a segunda viagem de Vasco da Gama ao Oriente, que tem início em 1502, que em Lisboa é tomada a decisão de ocupar e fortificar as cidades de Sofala e Quíloa e aí fundar feitorias com o objectivo de comprar ouro. Embora não estivesse nos planos dos navegadores

57 Para uma discussão sobre as condições em que acontece a expansão ultramarina quinhentista ver

portugueses a ocupação de outros pontos na costa depressa estes perceberam que necessitavam de um porto entre ambas as cidades que permitisse aos navios serem reabastecidos e reparados e em 1507 é tomada a decisão de montar um colonato permanente na Ilha de Moçambique (Newitt, 1995, p. 36). A expulsão da competição, estabelecida e bastante mais familiarizada com as dinâmicas negociais da região, suaíli transformou-se numa prioridade estratégica amplificada pela legitimação religiosa que opunha cristãos a infiéis. As evidências atestam as instruções de Dom Manuel que apontavam para a continuação do combate que decorria no norte de África nas margens do Índico58.

As populações suaílis encontravam-se, no entanto, melhor capacitadas para o conflito de interesses que as opunha aos interesses portugueses. Munidos de um conhecimento da geografia local e dos respectivos caminhos e em número significativamente superior aos escassos contingentes portugueses só muito dificilmente estes conseguiriam fazer valer a sua conveniência somente pela força. Contudo, um factor acabou por beneficiar fortuitamente as pretensões monopolizadoras portuguesas. A rivalidade entre as diferentes cidades-estado suaílis na costa leste africana permitiu aos portugueses através de alianças e da conquista estabelecer um incipiente domínio em toda a costa oriental africana abaixo da Somália e com o aumento do comércio de marfim novos entrepostos foram fundados contribuindo para o enriquecimento da actividade comercial na região (Newitt, 1995, p. 42). A tensão entre os recém-chegados navegadores portugueses e os residentes suaílis esteve longe de ter sido uma questão dirimida unicamente através de sociedades de conveniência ou astúcia diplomática. Duarte de Lemos, oficial da coroa, numa carta com remetente da Ilha de Moçambique, em 1508, sublinha a necessidade de matar ou expulsar todos os mouros respeitáveis da “costa abaixo deste lugar” pois constituíam uma concorrência difícil de suplantar e acrescenta simultaneamente que teria sido permitido aos suaílis com uma posição social mais desfavorecida a permanência nos territórios ocupados pelos portugueses em virtude deste se contentarem com pagamentos mais baixos e servirem em qualquer tipo de obras, inclusivamente como mão-de-obra escrava (Boxer, 1967, p. 79). As contradições e os desafios à autoridade portuguesa eram usualmente e quando

58 Estas instruções foram dadas a Dom Francisco de Almeida, primeiro Vice-rei da Índia. Estado da

Índia este que compreendia os domínios entre o Cabo da Boa Esperança e Japão, englobando naturalmente toda a costa do Índico, Africana e Indiana (Boxer, 1967, p. 78).

portugueses a ocupação de outros pontos na costa depressa estes perceberam que necessitavam de um porto entre ambas as cidades que permitisse aos navios serem reabastecidos e reparados e em 1507 é tomada a decisão de montar um colonato permanente na Ilha de Moçambique (Newitt, 1995, p. 36). A expulsão da competição, estabelecida e bastante mais familiarizada com as dinâmicas negociais da região, suaíli transformou-se numa prioridade estratégica amplificada pela legitimação religiosa que opunha cristãos a infiéis. As evidências atestam as instruções de Dom Manuel que apontavam para a continuação do combate que decorria no norte de África nas margens do Índico58.

As populações suaílis encontravam-se, no entanto, melhor capacitadas para o conflito de interesses que as opunha aos interesses portugueses. Munidos de um conhecimento da geografia local e dos respectivos caminhos e em número significativamente superior aos escassos contingentes portugueses só muito dificilmente estes conseguiriam fazer valer a sua conveniência somente pela força. Contudo, um factor acabou por beneficiar fortuitamente as pretensões monopolizadoras portuguesas. A rivalidade entre as diferentes cidades-estado suaílis na costa leste africana permitiu aos portugueses através de alianças e da conquista estabelecer um incipiente domínio em toda a costa oriental africana abaixo da Somália e com o aumento do comércio de marfim novos entrepostos foram fundados contribuindo para o enriquecimento da actividade comercial na região (Newitt, 1995, p. 42). A tensão entre os recém-chegados navegadores portugueses e os residentes suaílis esteve longe de ter sido uma questão dirimida unicamente através de sociedades de conveniência ou astúcia diplomática. Duarte de Lemos, oficial da coroa, numa carta com remetente da Ilha de Moçambique, em 1508, sublinha a necessidade de matar ou expulsar todos os mouros respeitáveis da “costa abaixo deste lugar” pois constituíam uma concorrência difícil de suplantar e acrescenta simultaneamente que teria sido permitido aos suaílis com uma posição social mais desfavorecida a permanência nos territórios ocupados pelos portugueses em virtude deste se contentarem com pagamentos mais baixos e servirem em qualquer tipo de obras, inclusivamente como mão-de-obra escrava (Boxer, 1967, p. 79). As contradições e os desafios à autoridade portuguesa eram usualmente e quando

58 Estas instruções foram dadas a Dom Francisco de Almeida, primeiro Vice-rei da Índia. Estado da

Índia este que compreendia os domínios entre o Cabo da Boa Esperança e Japão, englobando naturalmente toda a costa do Índico, Africana e Indiana (Boxer, 1967, p. 78).

possível repelidas com a brutalidade necessária a inspirar o terror desmobilizador de novas investidas antagónicas às pretensões portuguesas, havendo vários relatos da crueldade dos navegadores portugueses para com os mouros. Por outro lado os portugueses conseguiram ainda assim manter relações relativamente amistosas com os suaílis a sul do Cabo Delgado. Já a norte as posições portuguesas nunca foram muito seguras e acabaram por ser perdidas em finais do séc. XVII (Boxer, 1967, p. 80). Tal como Duarte Lemos tinha sugerido a presença suaíli foi tolerada pelos portugueses na Zambézia e nas ilhas costeiras de Moçambique. Xeques, chefes e mercadores eram mantidos em posições subalternas e impedidos de constituir fortunas avolumadas ao mesmo tempo que eram instrumentalizados como figuras intermediárias na relação com os povos bantus.

O primeiro quartel do séc. XVI assiste assim ao início do domínio português sobre um território que se manterá até meados do séc. XVIII sob a égide da administração da Índia portuguesa. Um domínio que todavia não se manteria exclusivo e incontestado durante muito tempo e que em pouco tempo estaria sujeito à concorrência de outras potências europeias, designadamente holandeses e ingleses. A extensão do dito império português, a reduzida demografia metropolitana e os interesses disputados em diferentes frentes viriam então a ser factores fundamentais no desenvolvimento da relação da migração de populações hindus com o território moçambicano e, por definição, com o colonialismo português.