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A argumentação e a elusão fiscal

No documento Normas de controle da elusão fiscal (páginas 71-76)

INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS E AS REGRAS GERAIS ANTIELUSIVAS

7. A argumentação e a elusão fiscal

O reconhecimento da elusão fiscal, quando há regra geral antielusiva, ou da evasão fiscal é resultante de um procedimento administrativo ou processo judicial, em que o Fisco tenta provar a conduta elusiva ou evasiva, enquanto o contribuinte tenta negar este fato.

Instala-se, portanto, um raciocínio retórico, cujo resultado (decisão administrativa ou sentença judicial) implicará na qualificação da conduta do contribuinte, com suas conseqüentes repercussões tributárias.

Tanto para o contribuinte quanto para o Fisco é importante conhecer quais os argumentos que usualmente têm prevalecido nas instâncias administrativas e nos tribunais. O primeiro se interessa em saber se determinada conduta pode ser qualificada como elisão, elusão ou evasão fiscal, para não correr riscos desnecessários na organização de seus negócios. O segundo porque, diante das decisões dos tribunais, pode concluir por adotar nova estratégia para aumentar a arrecadação, como propor alterações na legislação tributária.

Alguns autores têm influenciado fortemente esta maneira de compreender a interpretação e a aplicação do direito, dos quais não podemos deixar de destacar a contribuição do filósofo polonês CHAÏM PERELMAN.

7.1. A Nova Retórica de Perelman

A palavra retórica possui diversas acepções, é o que nos ensina GUSTAVO DE BRITTO FREIRE PACHECO:

A palavra Retórica (originária do grego rhetoriké, “arte da retórica”, subentendendo-se o substantivo téchne) tem sido entendida historicamente em acepções muito diversas. Em sentido lato, a retórica se mistura com a poética, consistindo na arte da eloquência em qualquer tipo de discurso. Não é esse, no entanto, o sentido que nos interessa no estudo que procederemos a seguir, mas a concepção mais restrita que identifica a retórica como “faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar

a persuasão, segundo a definição aristotélica. Nesse sentido, a retórica é uma modalidade discursiva geral, aplicável às mais variadas disciplinas – uma atividade em que predomina a forma, como a gramática e a dialética, e não o conteúdo.”109

ARISTÓTELES define a retórica como “a arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão disponíveis.”110 PERELMAN, prolongando e desenvolvendo a definição aristotélica de retórica afirma que o objeto da nova retórica “é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento.”111

Nos últimos três séculos, a filosofia ocidental desprezou a retórica devido à preponderância do raciocínio cartesiano. PERELMAN tem a importância de romper com o pensamento filosófico dominante, resgatando a retórica para mostrar que o raciocínio dialético é mais adequado ao estudo das ciências sociais.

Nesse contexto, a lógica formal de tradição cartesiana é substituída por uma lógica da argumentação que objetiva criar uma aceitabilidade social das decisões dentro de um critério de razoabilidade, e não mais daquele de certeza preconizado pela lógica formal demonstrativa.

7.1.1. A origem da retórica

A retórica teve sua origem na Grécia Antiga, estando relacionada às relações sociais advindas da Polis. A retórica como arte de persuadir através da argumentação só seria possível existir numa sociedade democrática e que propiciasse o debate livre, características presentes na organização política da Polis.

O nascimento histórico da Retórica é costumeiramente localizado no século V antes de Cristo, em Siracusa, na Magna Grécia, onde hoje é a Itália. (...) A Retórica só se desenvolveu plenamente, no entanto, após a consolidação da democracia ateniense. Todos os cidadãos atenienses participavam diretamente nas assembléias populares, que possuíam funções legislativas,

109 “Retórica e nova retórica: a tradição grega e a teoria da argumentação de Chaïm Perelman”. In: Direito e

Teoria da Argumentação. Cadernos PET-JUR. Departamento de Direito da PUC-Rio, Ano III, 2. ed., nº 1,

p.28, 1997.

110 Chaïm Perelman in Lógica jurídica cita Aristóteles. Trad. de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes,

1998. p.141.

111 Tratado da Argumentação: a nova retórica. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,

executivas e judiciárias. (...) O exercício da função política dependia portanto da habilidade em raciocinar, falar e argumentar corretamente, e era natural que houvesse uma demanda de professores que proporcionassem a necessária “educação política”. Esses professores eram os sofistas.”112

Os sofistas gozavam de elevada reputação em sua época. Platão tratou de desacreditá-los, mostrando que muitos oradores utilizavam sua eloqüência para objetivos nefastos. Posteriormente, um aluno de Platão, Aristóteles, foi quem legou à Retórica uma sólida base teórica, tendo importância até hoje algumas classificações efetuadas por ele. 7.1.2. A perda do prestígio da Retórica

No Império Romano a Retórica teve também muita importância, graças, em parte, a influência da cultura grega. Segundo GUSTAVO DE BRITTO FREIRE PACHECO:

Após a queda do império romano, a retórica foi progressivamente decaindo de importância e, mesmo sobrevivendo como prática, não era considerada enquanto objeto de estudo. Tal tendência foi agravada pelo predomínio do pensamento cartesiano-positivista na filosofia e na ciência ocidentais.113

FÁBIO ULHOA COELHO, no prefácio à edição brasileira da Tratado da

Argumentação, afirma:

O que se perdeu, na evolução do pensamento filosófico, pelas mãos do cristianismo e do racionalismo, foi exatamente a equiparação, na importância, dos raciocínios analítico e dialético. Isto é, relegada ao plano dos sofismas, identificada às técnicas de persuasão sem compromisso ético, aos discursos vazios de oradores hábeis em convencer auditórios, quaisquer que fossem as teses, a dialética não alcançou o estatuto de seriedade e consistência concedido à sua irmã, a analítica. A filosofia, com efeito, deu relevância aos métodos do conhecimento, o quanto possível rigoroso, da verdade, coisa que, decididamente, a dialética nunca foi.”114

112 PACHECO, Gustavo de Britto Freire. “Retórica e nova retórica: a tradição grega e a Teoria da

Argumentação de Chaïm Perelman”. In: Direito e Teoria da Argumentação. Cadernos PET-JUR. Departamento de Direito da PUC-Rio, Ano III, 2. ed., nº 1, p.30, 1997,

113 “Retórica e nova retórica: a tradição grega e a Teoria da Argumentação de Chaïm Perelman”. In: Direito e

Teoria da Argumentação. Cadernos PET-JUR. Departamento de Direito da PUC-Rio, Ano III, 2. ed., nº 1,

p.38, 1997,

114 Tratado da Argumentação: a nova retórica. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,

PERELMAN reconhece o declínio pelo qual passou o estudo da Retórica:

A retórica, que foi elaborada pelos Antigos e à qual foram consagradas as obras muito conhecidas de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, é uma disciplina que, após ter sido considerada o coroamento da educação greco-romana, degenerou no século XVI, quando foi reduzida ao estudo das figuras de estilo, e depois desapareceu inteiramente dos programas de ensino secundário.”115

PAULO ROBERTO SOARES MENDONÇA explica:

A tradição formalista, surgida na Era Moderna, associa o conhecimento científico à impossibilidade do questionamento de hipóteses materialmente comprovadas. Aquilo que não pode ser provado a partir de uma lógica formal não pode ser tido como conhecimento científico, existindo, portanto, uma rígida separação entre a esfera da ciência e a da opinião. O conhecimento científico é somente aquele que pode ser provado através da experiência, da indução e da intuição sensível. Disso resulta uma limitação da razão humana ao campo da lógica formal, negligenciando a sua dimensão retórica.”116

Num mundo onde dominava o pensamento cartesiano, não havia campo para o desenvolvimento da Retórica. Esta última trabalha com aquilo que é verossímil, provável, enquanto que o primeiro é estruturado em provas analíticas, obtidas por meio de premissas absolutamente verdadeiras e universalmente válidas.

7.1.3. A reabilitação da retórica e a contribuição da Teoria da Argumentação

GUSTAVO DE BRITTO FREIRE PACHECO explica a importância da obra de PERELMAN:

Durante longo tempo foi a retórica destituída de seu status racional, sendo relegada ao plano de mera prática mundana composta de prosaicos artifícios estilísticos. Desde a idade média até o século XX ocorreram ressurgimentos cíclicos da retórica (como aqueles ocorridos durante o renascimento e o iluminismo) que no entanto não implicaram na recuperação de sua dignidade intelectual. Somente no século XX é que começou a se esboçar uma corrente filosófica acadêmica de vulto que tinha por objetivo recuperar a dignidade dessa forma de conhecimento tão antiga e tão intimamente ligada à história

115 Lógica jurídica. Trad. de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.141.

da humanidade. A partir da importância dada à filosofia da linguagem e à filosofia dos valores, diversos filósofos e estudiosos começaram a considerar a retórica como um objeto digno de estudo, seja sob a sua vertente formal, seja sob a ótica que privilegia seu aspecto de instrumento de persuasão. Como o objeto do nosso estudo diz respeito a esse segundo aspecto, concentraremos nossa atenção exclusivamente sobre a obra do pensador que de maneira mais completa e brilhante ajudou a romper com a tradição cartesiano-positivista de desconsideração da retórica: Chaïm Perelman, filósofo de origem polonesa radicado na Bélgica.”117

MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO afirma:

Perelman posiciona-se expressamente contra a filosofia da evidência de Descartes. Seu esforço consistiu, justamente, na busca de uma outra dimensão da racionalidade compatível com a vida prática. Pretendia demonstrar a aptidão da razão para lidar também com valores, organizar preferências e fundamentar, com razoabilidade, nossas decisões.”118

Segundo PAULO ROBERTO SOARES MENDONÇA:

Perelman defende a tese de que a razão não se limita a uma dedução ou um cálculo, mas abrange também o campo argumentativo. O uso da retórica também exige uma forte dose de racionalidade. Tal alternativa é plenamente justificável, porque a retórica não dá origem a conhecimentos absolutos e inquestionáveis, mas isso não corresponde a dizer que a prática argumentativa traduz o reino do puramente arbitrário. Talvez até pela sua própria instabilidade originária, a argumentação exija a elaboração de um raciocínio bem mais estruturado, a fim de que sejam extraídas ou minoradas as incoerências eventualmente observadas no discurso, o que somente fortalece o seu conteúdo racional.119

A leitura das transcrições anteriores permite compreender a importância que Perelman tem até hoje no debate jurídico-filosófico. Ele rompe com o pensamento dominante à época, para mostrar que o uso da argumentação se mostra bem mais adequado ao estudo das ciências humanas e sociais.

117 “Retórica e nova retórica: a tradição grega e a Teoria da Argumentação de Chaïm Perelman. In: Direito e Teoria da Argumentação. Cadernos PET-JUR. Departamento de Direito da PUC-Rio, Ano III, 2. ed. nº 1, p.

39, 1997.

118 Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

p.187.

Como bem afirma MARGARIDA MARIA LACOMBE CAMARGO, “a grande contribuição de Perelman para a filosofia, neste século, tem origem no franco descontentamento que demonstrou em não conseguir resolver de forma totalmente satisfatória, com os instrumentos da lógica formal, a questão da justiça”.120

A questão da realização da justiça é também a razão de ser das regras gerais antielusivas. Assim, considerando a similitude dos objetivos, é possível vislumbrar a importância da Teoria da Argumentação na aceitação social da decisão que qualifica a conduta do contribuinte como elusão fiscal.

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