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2.1 Princípios e conceitos da Teoria da Argumentação na Língua

2.1.3 Argumentação e enunciação: duas faces de um mesmo fenômeno

Como se pôde verificar no capítulo 1 desta tese e nas subseções precedentes, a língua não é uma nomenclatura, não há correspondência entre um signo (palavra) e uma coisa. Viu- se que a língua, numa perspectiva autorreferencial ou estruturalista, não é um sistema que descreve o mundo: ela o recria. É o locutor, então, o responsável por recriar o mundo, pela linguagem, na sua relação com o alocutário. Ao interagir com o outro − exprimindo seu ponto de vista e sua visão de mundo −, entende-se que o locutor argumenta. Repousam nesses princípios de pura alteridade as hipóteses da Semântica Argumentativa.

No capítulo 1 de Les mots du discours, intitulado Analyse de textes et linguistique de l'énonciation, Ducrot (DUCROT, et al., 1980) explicita seu olhar semântico sobre a linguagem, bem como as hipóteses subjacentes à sua teoria. A fase empírica de observação e de análise dos textos − primeira etapa da descrição dos fatos linguísticos − é o momento em que o linguista escolhe suas "hipóteses externas". Trata-se da fase dos primeiros questionamentos em torno do corpus doador da significação, isto é, do objeto do semanticista. Já a fase que a sucede é aquela de construção da "máquina", isto é, a etapa de elaboração das "hipóteses internas" capazes de descrever e de explicar as frases. As hipóteses internas visam, assim, a reproduzir (por meio de conceitos, que são ferramentas teóricas) as regras aplicáveis pelos dados coletados na fase de elaboração das hipóteses externas.

A atribuição de um sentido a um enunciado é, por isso, um procedimento explicativo que encontra suas raízes na hipótese interna do valor argumentativo. A noção de orientação argumentativa é, segundo afirma Ducrot (1998, p. 23), um dos conceitos gerais que deve intervir na descrição semântica de todas as línguas. Dessa forma, pertence ao sentido de um enunciado A (argumento), segundo a ANL, a orientação para extrair um outro enunciado C apresentado como uma conclusão possível de A, de modo que − dizendo A− o locutor preveja um encadeamento discursivo do tipo de A portanto C. Diz-se, por esse motivo, que A é orientado em direção a C ou que C exprime uma das orientações argumentativas de A.

Esse olhar sobre como o sentido argumentativo se constrói na linguagem constitui uma perspectiva semântica que se opõe às concepções tradicionais de sentido (conforme se pôde verificar na subseção 2.1.2) e de argumentação. Numa concepção tradicional de argumentação (cf. DUCROT, 1990), um argumento A serve para justificar uma conclusão C em sequências do tipo de A logo C. O enunciado-argumento A indica um fato F (verdadeiro ou falso),

entendido como uma representação da realidade extralinguística. Cabe ao locutor admitir − nos casos em que F é tido como verdadeiro − a veracidade do enunciado-conclusão C. Por exemplo, no enunciado-argumento (A) Todas as maçãs verdes são ácidas, deve-se buscar, junto à comunidade linguística, a veracidade de F (nesse caso, que a maçã X é verde, de fato), para explicitar, por fim, o enunciado-conclusão (C) logo a maçã X é ácida.

Na segunda conferência do livro Polifonía y argumentación, Ducrot (1990, p. 65-80) sustenta a posição de que − de acordo com essa concepção tradicional de argumentação − a língua não tem papel essencial, visto que o movimento argumentativo propriamente dito, que conduz à conclusão C, é explicado por princípios lógicos, psicológicos, sociológicos, tais como processos de inferência, razões sociais, culturais etc. Por conseguinte, tal movimento argumentativo é explicado de modo extralinguístico, isto é, independente da língua.

A principal razão para a ANL rejeitar essa perspectiva de argumentação está na existência − em muitas línguas ocidentais − de pares de frases que, embora indiquem o mesmo fato, autorizam argumentações completamente diferentes. É o caso, por exemplo, de:

(1) Pedro estudou pouco. (2) Pedro estudou um pouco.

Essas duas frases apresentam o mesmo fato (a pouca dedicação de Pedro ao estudo), mas suas orientações argumentativas são diferentes, uma vez que não servem para justificar a mesma conclusão. A partir de (1) Pedro estudou pouco, pode-se concluir (1') então vai ser reprovado; já a partir de (2) Pedro estudou um pouco, pode-se concluir (2') provavelmente, portanto, vai ser aprovado.

Outra prova de que a argumentação está na língua − não nos fatos − é apresentada por Ducrot (1990, p. 78), por meio do seguinte exemplo:

(3) Pedro quase terminou seu trabalho.

(4) Pedro não terminou totalmente seu trabalho.

O fato indicado pelas duas frases é o mesmo: o de que o trabalho não está pronto. As conclusões possíveis a partir dessas duas frases, no entanto, são opostas. De (3), pode-se concluir, por exemplo, (3') pode descansar um pouco ou (3") tem mérito. Não se pode, entretanto, tirar essas mesmas conclusões de (4), visto que essa frase autoriza concluir, por exemplo, (4') não avançou muito em seu trabalho. Daí a tese fundamental da ANL

(DUCROT, 1990, p. 79), segundo a qual "[...] o poder argumentativo de um enunciado não é determinado só pelo fato que expressa, mas também por sua forma linguística"71.

Com esses exemplos, fica demonstrada a hipótese de base da ANL: a de que a argumentação está na língua, não nos fatos. As frases do próprio sistema linguístico são, por natureza, argumentativas. Desse modo, é importante que se esclareça que a escolha da relação argumentativa como foco de estudos dessa teoria justifica-se basicamente por dois motivos, de acordo com Ducrot (2009b): o primeiro diz respeito ao fato de que essa relação, por ser intrinsecamente ligada à língua e ao discurso, não é deduzida de informações trazidas pelo discurso; segundo, por sua vez, refere-se à possibilidade de, a partir da argumentação, obter-se descrições sistemáticas pelo entrelaçamento de palavras. Por isso, depreendem-se dessa proposta descrições linguísticas autônomas, por meio das quais fica cientificamente provado que o sentido é construído no enunciado, pelo linguístico, não pelo contexto fora da realidade linguística. Quando a busca do sentido no contexto externo torna-se necessária, ela é direcionada pelas instruções contidas no interior da própria frase.

Em vista disso, é indubitável a afirmação de que, segundo essa perspectiva teórica, a função mais importante da linguagem é a de argumentar. No entanto, não se pode esquecer da enunciação, que Ducrot também busca inscrever no interior do sentido do enunciado. Para alguns autores, a enunciação designa a atividade psicofisiológica da produção do enunciado ou o produto da atividade do sujeito falante. Para a ANL, contudo, a enunciação é o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado (DUCROT, 1984, p. 179) − o que implica assumir a tese de que alguma coisa não existia antes da fala e não existirá mais depois. A enunciação, em síntese, é esse aparecimento momentâneo, por isso histórico (que fica marcado no tempo e no espaço), entendido como o surgimento de um enunciado.

A cada enunciação, uma frase da língua transforma-se em enunciado no nível do discurso. Entretanto, todo o psicologismo que se viu estar nas bases da teoria enunciativa de Bally, por exemplo, é subtraído por Ducrot. Nada de psicológico se mantém no conceito ducrotiano de enunciação (e, nesse ponto, Ducrot está mais próximo de Benveniste72), nem mesmo a hipótese de que o enunciado foi produzido por um sujeito falante, já que, no interior da ANL, esse conceito tem uma função puramente semântica. Logo, a enunciação

71

"[...] el poder argumentativo de un enunciado no se determina solamente por el hecho que expresa ese enunciado sino también por su forma lingüística" (DUCROT, 1990, p. 79, tradução nossa).

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A propósito de Émile Benveniste, afirma Ducrot (DUCROT; BIGLARI, 2018, p. 74): "Eu o vi várias vezes, como todo mundo, mas eu nunca frequentei seus seminários. Eu lhe devo muito. Foi ele que me deu a ideia, não somente a mim, mas a toda minha geração, de classificar a enunciação no sentido e eu creio, de fato, que não se pode descrever as palavras sem fazer aparecer as enunciações que são feitas graças a essas palavras".

desempenha um papel primordial na própria definição de sentido. Conforme explica Ducrot (DUCROT, et al., 1980), uma Linguística da Enunciação, em decorrência, tem por objeto desvendar as operações ocultas implicadas na atividade de fala73.

O sentido de um enunciado, nos termos de Ducrot (DUCROT, et al., 1980, p. 34), é uma descrição, uma representação que ele traz da sua enunciação, isto é, uma imagem do evento histórico constituído pelo aparecimento do enunciado. Assumir essa definição de sentido significa, ao mesmo tempo, conceber que o enunciado se apresenta como produzido por um locutor. A ideia fundamental dessa concepção enunciativa de sentido é a de que todo enunciado − até mesmo o que tem uma aparência mais objetiva, como (5) A terra é redonda − faz alusão à sua enunciação. Dessa forma, segundo explica Ducrot,

[...] se se representa a significação como um conjunto de diretrizes sobre o modo a partir do qual a situação deve ser levada em conta, então é todo o sentido do enunciado que se encontra influenciado pela estrutura semântica da frase – em todo caso, há um grande número de aspectos semânticos ligados à situação e cuja integração no sentido é imposta pela significação atribuída à frase (o que, aliás, não implica, já o disse, que a significação determina, para um enunciado, em uma certa situação dada, um único sentido: pois a linguística não pode determinar quais elementos, entre a multiplicidade dos componentes situacionais, o interpretante guardará como pertinentes, e quais ele negligenciará: existem mil maneiras possíveis de obedecer às instruções veiculadas pela frase). (DUCROT, et al, 1980, p. 33)74.

A partir da leitura desse excerto, fica claro que tanto a enunciação quanto a situação estão inscritas na própria significação da frase. Ambas também fazem parte do sentido do enunciado. Não cabe extrair daí, entretanto, a conclusão de que a significação determina um único sentido a um enunciado. Aliás, o interpretante é livre para obedecer às instruções fornecidas pela frase. Ele tanto pode buscar respeitar, por exemplo, o caráter assertivo transmitido pela enunciação do enunciado (5) A terra é redonda quanto pode ignorá-lo, não completando, por conseguinte, o seu sentido. Quando os exemplos de enunciados são extraídos de discursos artísticos − conforme se poderá verificar ao longo das análises do corpus desta tese −, nota-se que a multiplicidade de elementos situacionais necessários à atribuição do(s) sentido(s) aos enunciados é muito mais expressiva.

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É o caso, por exemplo, dos pressupostos e dos subentendidos. 74

"[...] si l'on se représente la signification comme un ensemble de directives sur la façon dont la situation doit être prise en compte, alors c'est tout le sens de l'énoncé qui se trouve influencé par la structure sémantique de la phrase (ce qui n'implique d'ailleurs pas, je l'ai dit, que la signification détermine pour un énoncé, dans une situation donnée, un seul sens : car la linguistique ne peut pas déterminer quels éléments, parmi la multitude des composants situationnels, l'interprétant retiendra comme pertinents, et lesquels il négligera : il y a mille façons possibles d'obéir aux instructions véhiculées par la phrase)". (DUCROT, et al., 1980, p. 33, tradução nossa).

Apesar disso, deve-se entender por sentido do enunciado apenas o que aparece nele de modo aberto, público, isto é, o que é nele apresentado pelo locutor. A partir dessa delimitação de Ducrot et al. (1980), estão dadas as respostas às questões levantadas, hipoteticamente, pelo próprio autor, a saber: (a) Onde parar na descrição do sentido de um enunciado? (b) Quais elementos fazer intervir no sentido, dentre todas as associações de ideias que um enunciado provoca, e quais elementos daí excluir? (c) O linguista deve levar em conta, por exemplo, as interpretações que um psicanalista dá dos enunciados de seu paciente? (d) O linguista deve introduzir, no sentido, todas as intenções que se pode imaginar segundo o locutor?

Antes de encerrar esta subseção, convém salientar que, por fazer parte do próprio sentido do enunciado, a enunciação é responsável por destruir a separação de Semântica e Pragmática. Nas palavras de Ducrot (2005, p. 15), "[...] o estudo do contexto (primeira forma de pragmática) é integrado ao sentido do enunciado, tão integrado como a representação de sua enunciação (segunda forma de pragmática)". Distingue-se, aí, a função do analista do discurso da função do linguista. Enquanto aquele descreve as enunciações reais, este último, por sua vez, procurando descrever as palavras, descobre nelas as indicações relativas à sua possível enunciação em língua natural. Em outros termos, de acordo com Ducrot (1987, p. 64), "nossa tese é que a língua (como objeto teórico) deve conter uma referência àquilo que para Saussure constitui a fala". Trata-se, pois, da indissociabilidade língua-fala.

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