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3.1 Percurso metodológico e análise do corpus

3.1.2 Discurso 2: O bicho, de Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade. O bicho não era um cão,

Não era um gato, Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. 20ª ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1993.

Período argumentativo 1 O bicho

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

Período argumentativo 2

O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. 20ª ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1993.

Escrito na década de 1940 − época em que o capitalismo ascendia no Brasil e a desigualdade deixava muitas pessoas às margens de uma sociedade elitista −, o poema "O bicho", de Manuel Bandeira, é sempre um convite à reflexão sobre injustiça e desigualdade social, sobretudo. Do ponto de vista semântico-argumentativo, esse poema é constituído por dois períodos argumentativos e uma única cena. Geralmente, duas leituras possíveis são feitas sobre bicho e homem. Por um lado, há quem compreenda que o "homem", do último verso, é verdadeiramente um "bicho". Nesse caso, por encontrar-se em estado extremo de precariedade existencial, o humano transforma-se, através de uma metáfora, num animal. Por outro lado, há quem entenda que a surpresa marcada pelo vocativo "meu Deus", no último verso, desfaz a possibilidade de compreensão da palavra "bicho" como metáfora de "homem". Essa segunda leitura revela, finalmente, um engano do locutor, em razão do qual − pelo fato de catar comida entre detritos − o "homem" vinha sendo enxergado como um "bicho" no pátio.

O primeiro período argumentativo, formado pelas duas primeiras estrofes do poema, constitui um único turno enunciativo no modo do concebido, em tom complexo de reportagem. O locutor está engajado em sua enunciação e diz o que se apresenta como concebido no momento da enunciação, embora o tempo verbal do poema seja o pretérito. Conforme se pôde verificar na seção sobre as "argumentações enunciativas", a construção semântico-enunciativa desse poema remete à construção do poema "Noite de Substituição", de Marc de Larréguy, o qual, segundo Carel (2018), também realiza o modo do concebido.

Um fenômeno percebido no poema de Bandeira − sobretudo se lido numa língua como o francês, por exemplo − diz respeito à capacidade desse discurso transportar o alocutário para o passado, deixando-o com a sensação de que o locutor conta os fatos no presente, dentro do tempo pretérito em que a cena ocorreu. No uso de "vi", no pretérito perfeito, encontra-se explicitamente evocada a argumentação enunciativa [eu vejo o bicho catando comida entre os detritos, portanto eu sei], que concretiza o aspecto VER DC SABER. Já nos empregos de "era", no pretérito imperfeito, no segundo período, encontra-se implicitamente evocada a argumentação enunciativa [eu vejo que o bicho não é um cão, não é um gato, não é um rato, portanto eu digo que o bicho é um homem], que concretiza o aspecto VER DC DIZER.

Notadamente, essa segunda argumentação enunciativa descreve o sentido depreendido por meio da "leitura metafórica" da palavra "bicho", visto que o encadeamento evocado apaga o vocativo "meu Deus", responsável pela mudança de orientação argumentativa. Verifica-se, com isso, que o tom da reportagem do poema parece conduzir, primeiramente, a uma "interpretação metafórica" do último verso. Em vista disso, para interpretar a palavra "bicho"

de uma maneira "não metafórica", torna-se necessário descrever o sentido do segundo período por meio de um encadeamento transgressivo que considera o sentido do vocativo "meu Deus". Nesse caso de "interpretação não metafórica" do último verso, a argumentação enunciativa evocada pode ser representada por [eu vejo um bicho na imundície do pátio catando comida entre detritos; no entanto, meu Deus, trata-se de um homem] e concretizada por um aspecto como EU VEJO QUE X TEM COMPORTAMENTO NEG-HUMANO PT X É HUMANO. Segundo essa leitura, o comportamento animal não é suficiente para definir um humano como "bicho", uma vez que a condição de extrema precariedade existencial não basta para retirar um ser de seu "estado de cultura" e transferi-lo a um "estado de natureza".

Independentemente da leitura que se escolha fazer do último verso do poema, um bloco semântico presente no discurso em foco é o que põe em relação ser humano e comportamento humano. Leia-se, na representação arbórea a seguir, o segmento ser humano a partir da abreviatura SER HU e comportamento humano, a partir da abreviatura COM HU:

Figura 16: Árvore do bloco da conversão no discurso 2.

Bloco do ser humano e do comportamento humano

SERHU(COMHU) complementares NEG-SERHU(NEG-COMHU)

SERHUDCCOMHU SERHUPTNEG-COM HU NEG-SERHUDCNEG-COM HU NEG-SERHUPTCOMHU

conversos conversos

Fonte: Figura elaborada pelo autor (2019).

Essa árvore da conversão permite verificar as relações discursivas decorrentes do entrelaçamento argumentativo entre "ser humano" e "comportamento humano". Embora os aspectos do bloco semântico em foco não cheguem a descrever a significação de "homem" e de "bicho", a explicitação do campo semântico da expressão pessoa com um comportamento inesperado − cuja significação pode ser representada pelo aspecto SER HUMANO PT NEG- COMPORTAMENTO HUMANO − mostra que "homem" e "bicho" derivam de quase-blocos complementares do mesmo bloco semântico. Por fim, convém salientar que os aspectos SER HUMANO DC COMPORTAMENTO HUMANO, NEG-SER HUMANO DC NEG-COMPORTAMENTO HUMANO e NEG-SER HUMANO PT COMPORTAMENTO HUMANO correspondem, respectivamente, à significação das expressões pessoa com um comportamento esperado, bicho com um comportamento esperado e bicho com um comportamento inesperado.

Na análise desse discurso, a enunciação é claramente descrita por meio de encadeamentos argumentativos − conforme propõe Carel (2018) −, e não por intermédio de termos técnicos exteriores à língua nem por fórmulas de verdadeiro e falso. Embora o locutor não comunique [eu tenho a propriedade de estar surpreso], admite-se, finalmente, que ele está surpreso ou, mais especificamente, que seu dizer é de surpresa. A explicitação do modo do concebido e do tom complexo de reportagem ajudam a mostrar, nessa análise, que das palavras até o enunciado há efetivamente a presença da enunciação.

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