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Vejo a alquimia acontecendo no céu. A lua fina,

céu laranja, azul, verde-planta, em tons de pastel.

Vejo a minha

insônia refletida no céu. Céu claro, calmo e o sono batendo na porta da testa, os olhos quase serrando na madeireira da cabeça. Estou tonta, ritornelo, sou animal, bicho estranho com meus olhos pequenos com tons de castanho. Ultimamente só sei escrever sobre saudade; e isso me aborrece. Ultimamente só tenho andado latente, trincando os dentes de dor e de frio. Ultimamente sinto falta de calor-esquentes. A solidão tem me visitado, então… Lânguida,

nem bateu na porta.

Entrou pelas frestas e hoje faz festa no meu corpo arredio.

Vejo mais tons de azul no céu.

Vejo tons de castanho também na minha pele. Vejo pelos, arestas, buracos, defeitos, vejo escamas, “sou peixe?” – Sou brecha? Sou feixe? Alvo na testa? Quero não. Vejo e não me sinto bem. Alto, lá no automático a estima anda acinzentada. Ausente, esqueço de mim. Ando fazendo crueza, ai de mim,

cruel comigo mesma! Ando fazendo aborrecimentos. Daí que aquelas cores todas me colocaram em outro estado, o de agradecimento. Ai de mim… Aborrecida às vezes grata. Cercada por coqueiros guardiões. Ossain balançou afirmativa, falou pra eu não me preocupar. Alquimia bateu na porta e miando pede uma resposta. Não abro,

estou introspectiva, não quero visitas. “Alquimia não gosta de negativas”. Alquimia bateu

mais uma vez na porta. Abri então e ela me olhou bem no fundo dos feixes - Saíam luzes,

lágrimas e faíscas.

Eu via a Alquimia. Era uma bola laranja queimando n’água. Alquimia me beija, o tempo para e sinto a fumaça no quarto. Não se demora! Sorri, me queimei… Algo que mia foi embora!

Não há nada mais correto para os povos africanos ou pessoas africanas no mundo, do que a nossa própria experiência histórica. Se nós estamos engajados no processo de maturidade, então precisamos estudar a nossa própria cultura, a nossa filosofia, precisamos honrar nossos ancestrais, precisamos respeitar as tradições filosóficas que durante milhares de anos produzimos. Não podemos simplesmente jogar isso fora, mas a experiência da escravidão, escravatura do colonialismo, o idealismo nos colocaram longe de nós mesmos, ficamos desorientados e, consequentemente,

nos tornamos imitações da Europa. (Molefi Kete Asante)

Neste projétil acredito que seja interessante trazer a perspectiva de Leda Maria Martins (2002, p. 89), que se refere ao corpo como “um portal que, simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória”. O corpo como criador e potencializador de poéticas em cena.

Leda Maria Martins possui estudos mais focados no universo de enunciação relacionados às identidades e culturas Pretas e a sua relação com as artes performáticas, bem como constrói a noção de “encruzilhada” como operador conceitual. Ela tem como objeto de pesquisa a performance e as cenas rituais, onde pensa “o corpo e a voz como portais de inscrição de saberes de várias ordens” (2003, p. 66). Para a autora (id.),

[...] o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc.

A encruzilhada como reversão metodológica

É partindo da ideia de “encruzilhada” proposta pela autora que podemos entender essas Poéticas Pretas como centradas e descentradas ao mesmo tempo, cheias de desvios e interseções, múltiplas e convergentes, singulares e plurais, gêneses disseminadoras, cheias de fusões e lugar também de rupturas. A encruzilhada produz sentidos plurais e as Poéticas Pretas com as quais trabalhamos são carregadas de encruzilhadas.

Esse trabalho é feito de encruzilhadas de textos, sons que saem do meu corpo, de ebós16 e de dedos que saem da minha escrita. Me leia em encruzilhada então:

A “encruzilhada” pode ser vista também como um modo de organização menos metódico para se pensar as Poéticas Pretas em cena/texto/performance. Assim, movida pela noção de encruzilhada, a pesquisa que ora apresento tem como um de seus procedimentos a criação de um “experimento performático”, que ora é “escrito”, ora é “falado”, “balbuciado”, “gritado”, “sussurrado”, pois esse trabalho carrega em sua genética uma escrita ou oralidade ou, caso se prefira, um cerne ou corpo performativo.

A partir de estudos teórico-práticos e de atravessamentos e encontros com outras/os artistas e pesquisadoras/es é que vamos compondo, construída também através da emergência de uma rede de afetos. Uma coisa reverbera na outra: escrita e experimento performático coexistem em vontade de potência, sem uma ordem pré- estabelecida ou hierarquia, é tudo tecido no caminho, no aqui e agora, visando também o entendimento da cognição inventiva e da articulação entre arte e produção de subjetividades.

Nesse sentido, as Poéticas Pretas não precisam ser escritas e inscritas em certos redutos ou formas para se validarem, essas poéticas são para além do campo ótico e estão em lugares para além dos acadêmicos e elitizados. Mais especificamente sobre o domínio da escrita, Leda Maria Martins (2003, p.64) afirma que ele:

[...] torna-se metáfora de uma ideia quase da natureza do conhecimento, centrada no alçamento da visão, impressa no campo ótico pela percepção da letra. A memória, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visão mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento. Tudo que escapa, pois, à apreensão do olhar, princípio privilegiado de cognição, ou que nele não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja, fora de nosso campo de percepção, distante de nossa ótica de compreensão, exilado e alijado de nossa contemplação, de nossos saberes.

Fazendo uma relação com esse campo “ex-ótico”, que acaba limitando a existência, permanência ou dilatação de algumas poéticas, Conceição Evaristo (2007, p. 21) lança a seguinte questão:

O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semi-alfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? Tento

16 Falarei sobre os ebós – ou até mesmo sobre o “ato de doar-se” (ou “sacrificar-se”) – no Projétil III - ¿Y

responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.

Essa produção de subjetividades se dá para além do campo da escrita, ou seja, essa produção não é restrita, ela vaza, está presente em nossos corpos, em nossas falas, nas palavras insubordinadas, presente também nas palavras que são silenciadas. Diante disso deparamo-nos com algumas “questões de fome”: Como podemos identificar, trabalhar e/ou nos desviar (de forma poética) dos estereótipos de raça17 / racismo em cena? Como podemos usar a raiva em nossa escrita? Como podemos mediante isso ampliar e construir redes de afetos entre nós nessa escrita? Como podemos nos desviar de uma escrita/corpo que não nos contempla? Como nos reconstruir nessa escrita corporal? Como escrever-desviar? Escrever-é-desviar?

E finalmente, parafraseando e ampliando a questão de Conceição Evaristo: o que levaria determinadas mulheres Pretas e homens Pretos, nascidas/os e criadas/os em ambientes não letrados e também com escassez de referenciais artísticos que os contemplem em suas existências, e quando muito, semi-alfabetizadas/os, a romperem com a passividade da leitura e da cena e buscarem o movimento das Artes Cênicas?

Assim, a escrita reflexiva dessas questões também será o experimento performático e o experimento performático também é a escrita, ambas permeadas pelas Poéticas Pretas. A encruzilhada será, portanto, a “metodologia em artes” dessa Dissertação, todavia a prefiro entender através do suor –

17 Entendendo raça não “[...] enquanto expressão biológica, e sim enquanto expressão social e histórica, que modela o funcionamento e os modos de pensar das sociedades humanas. De maneira que está presente no mundo da cotidianidade relacional, no universo do imaginário humano e no âmbito determinante das estruturas que regem o acesso aos recursos da sociedade. A raça existe de forma concreta e prática como marcador social/estrutural. É uma realidade social definidora que regula as relações políticas, sociais, econômicas e culturais entre os grupos humanos, que ostentam entre si características fenotípicas diferentes. Não se fundamenta nos marcadores biológicos, mas nos fenotípicos. Ou seja, nos marcadores visíveis e tangíveis por meio dos quais os seres humanos hierarquizam-se, valorizam-se ou estigmatizam-se racialmente. De forma que argumentar que o racismo não existe porque a “raça” não existe biologicamente é contribuir para a continuidade de toda uma série de mistificações criadas pelos próprios racistas” (MOORE, Carlos, 2018, p. 166).

Cartografia do suor

Suor de peito

Gosto do cheiro de gente e cada uma com o seu tão único cheiro! - “Cheiro de pele”.

Gosto de falar isso em voz alta, porque assim a pele ouve e ressalta. Os pelos saltam e ouriçados tremem vagarosamente, arrepiados que nem guizos ronronados nos pés das mulheres-gato.

Gosto do cheiro do suor fresco, maturado, suor ácido, doce – do azedo ao salgado. Falo de suor – água de corpo, não me venha com nojinho estranho e cara de desgosto. Pele é pra se sentir.

Pele: rebanho de pelo.

Pele: rebanho de crateras e plantações de cabelos. Lugar de morada de algas, pois algo na pele me lembra uma colônia de algas, submersas e dançando com o balanço do suor.

Genealogia do suor

A minha mãe saía cedo pra trabalhar e voltava depois de demorar. Saía, chegava tarde. Voltava em câmera lenta no entardecer daqueles de cor magenta. Eu era carente, criança, sentia saudade e roía as unhas porque sentia raiva de sentir falta.

Quando a minha mãe chegava tirava o sutiã. O seu suor enevoava por toda a casa. Peito de mãe, mais animal impossível: aconchego de filhote, aconchego de umbigo. Eu, bichinho da falta, roendo as unhas de tanto sentir. Roía até tudo sangrar. Roía até o sangue estancar em mim, os meus dedos chegavam a pingar.

Um tempo depois esse sangue começou a escoar por outro lugar, porque me disseram que eu tinha virado uma moça-não-mais-criança. Mas dessa vez me aterei apenas à infância...

E voltando, porque gosto de ir devagar...

Aquele cheiro de suor de peito me dizia que estava tudo bem. Suor mareado de saudade. “Suor do demorar”.

- Filha, me perdoe, eu não fiz por maldade.

Era como se ouvisse sua voz a falar: audição e olfato de mãos dadas, só faltou o tato do abraço e o paladar. Ronronava então:

- Eu sei, mãe. Se choro não é porque sinto falta, sinto muita – muita, muita – felicidade! Felicidade de paladar, doce e repunando na boca.

- Filha, olha essa rima fraca. ...

- Filha... ... - Filha?

Então ruminei:

- E se eu falar em suor de palavra?

Palavra sua ou palavra soa? Sempre me confundi com essa conjugação de suar. Eu suo, você soa? Ela sua? Não, ela ressoa.

Suor tem: genealogia, conjugação, cartografia, sujeito, oração, preces, pressas em pingar. Então quem é o sujeito na frase: “O suor de umbigo é materno e o suor do rosto, aquele que sai de dentro do olho é paterno”?

O suor afetivo-fraternal

Pula de parente em parente até se tornar o seu próprio suor. Tão só que no início é só uma gotinha, daquela de ombro, pouco acanhada. Mas quando se esconde pra não esporar é suor de sovaco, quando desabrocha é suor de xoxota. E quando faz córrego, bem...

Escorrega, pinga, que nem as palavras pingam quando entram em estado de ebulição. Suor é vapor – às vezes. Suor evapora – às vezes. Calefa na ação. Suor de noções, sim. Um mar cheio de suor, ele chega faz ondas quando sai e suam de mim.

Uma gota de suor quando encontra outra se encruzilha, seus trajetos fazem um “xis” ou uma “cruz”, uma trilha; nisso essas duas gotas formam uma gota encorpada que pode escorrer pro lado que quiser acontecer, tão espontânea. Porque o suor é um acontecimento que criamos com nossos corpos, tão espontâneos. O suor e suas encruzilhadas de suor fazem uma cartografia na pele.

Na minha ou na sua, às vezes as cartografias se misturam e fazem uma lama mapeada. Essa gota pode correr por alguns segundos até evaporar. Suor caminha aconchegado de pele, não em calçadas. O suor se despede do pelo e pula no precipício. Às vezes cai gota. Às vezes some no ar. Às vezes antes de pular encharca camisas, calcinhas, pernas. Às vezes pula da cabeça, porque apenas sentiu de pular. Mas sempre tem aqueles que fazem caminho, encruzilhadas. Não se deixam absorver tão facilmente.

Suor gota de fazer morada na: - pele;

- nos pelos; - no ar.

Suor quando pula do pelo faz a gente transpirar. Suor quando sai do novelo dos cabelos faz a gente escoar. Suor – de pingo em pingo, depura e pinga, depura algo, de parada, atravessado numa encruzilhada, depois disso, somou-se, jogou-se, sumiu-se no precipício, deixou o corpo-morada. Porque suor, assim como “metodologia” quer pular de pelo e não de pele-calçada.

* * *

Portanto, nesta reversão metodológica, onde traço no percurso as minhas metas, não possuo certezas, não sei o que encontrarei, não sei o que me atravessará nesse cruzamento, por isso a utilização dessa metodologia aberta, que permite a inventividade fora de uma meta certa e seca e que me possibilita ao encontro inusitado. Traço um plano de caminho no meu próprio caminhar, na minha própria pele pingada de suor.

Essas encruzilhadas também são permeadas por uma cosmovisão africana, que dentro da concepção ancestral africana, podemos incluir no mesmo circuito fenomenológico “as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementaridade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir” (MARTINS, 2003, p. 75). Segundo Ngugi wa Thiong’o, numa cosmovisão africana

[...] nós que estamos no presente somos todos, em potencial, mães e pais daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa, realmente, reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos os filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós, mas não somos seus gêmeos idênticos, assim como não engendraremos seres idênticos a nós mesmos. [...] Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva (apud MARTINS, 2003, p. 75).

Tempo, ancestralidade e morte, é o que essa percepção cósmica e filosófica suscita, segundo Martins (id.), além de desvestir-se de uma cronologia linear:

[...] a primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. Nascimento, maturação e morte, tornam-se, pois,

contingências naturais necessárias na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta.

Estar em encruzilhada é estar em conflito não linear – não me refiro apenas à “briga” ou “arenga”, como chamamos aqui no Nordeste, pois no conflito nos defrontamos com o choque, cruzamos ideias e desses cruzamentos algo muda, sou atravessada/o e volto diferente, não sou mais a/o mesma/o depois de um conflito, costumo inflar durante e depois dele. Encruzilhada pode gerar, portanto, encontro espiralado.

A partir dessa noção de encruzilhada como operador conceitual, Leda Maria Martins (id., p. 69), constrói “a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos [...]”. Ela fala sobre essa noção em relação à genealogia performática dos Congados, onde:

[...] a palavra vocaliza ressoa como efeito de uma linguagem pulsional do corpo, inscrevendo o sujeito emissor num determinado circuito de expressão, potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento, a palavra proferida grafa-se na performance do corpo, lugar da sabedoria. Por isso, a palavra, índice do saber, não se petrifica num depósito ou arquivo imóvel, mas é concebida cineticamente. Como tal, a palavra ecoa na reminiscência performática do corpo, ressoando como voz cantante e dançante, numa sintaxe expressiva contígua que fertiliza o parentesco entre os vivos, os ancestres e os que ainda vão nascer. Força e princípio dinâmicos, a palavra faz-se linguagem “porque expressa e exterioriza um processo de síntese no qual intervêm todos os elementos que constituem o sujeito” (SANTOS, 1988, p. 49). Por isso necessita da música, da dança, do ritmo, das cores, do gestus performático e da adequação para a sua realização. (id.).

Martins (ela) fala sobre um “corpo-encruzilhada”, Martins (eu) conversa aqui através desse “texto-encruzilhada”, que emerge do meu “corpo-encruzilhada”, pois não é minha intenção distanciar essas duas encruzilhadas por palavras, porque para mim é coisa misturada, corpo-texto, texto-corpo: encruzilhados.

E caso colocássemos uma lupa nessa escrita, poderíamos chamá-la de “múltipla”, por tentar transcender o campo ótico, pois não se trata necessariamente de uma escrita dramatúrgica e/ou acadêmica, mas também de uma “escrita corporal”, ou seja, uma escrita ao mesmo tempo do pensamento, háptica, olfativa, degustativa, sensorial: “múltipla”. Trata-se de um organismo vivo em que “encelulam-se” criações.

Zona em que as Poéticas Pretas são a própria criação, portanto, trata-se de um trabalho simultaneamente artístico e de pesquisa, e que emerge, sobretudo, dos encontros.

Cartografia do corpo-encruzilhada

A sua casa estava abarrotada, mas não era de móveis, objetos, roupas ou condimentos. Não era de panelas, xícaras ou eletrodomésticos. Estava abarrotada de insetos. Sim, de vários tipos: eram cupins, formigas, traças e baratas. Ela colecionava colônias, tinha um certo querer de minorias. “Não piso, não quero ser pisada”, dizia.

Não pisava em uma formiga ou matava uma aranha sequer. Mantinha todas vivas em seu banheiro, cozinha e quartos. Ela queria ver a praga que tinha dentro de si. Praguejava o nome, o seu endereço, praguejava naquele quartinho cinza. Praguejava o que era ser ela mesma. Praguejava o infinito que tinha dentro de si. Praguejava o pequeno suspiro e grande pisada que dava. A imensidão em seus pulmões – leves suspiros e fortes baforadas de búfala, ventania. Ela era borboleta e sentia o gosto das coisas com os pés.

Era colônia sua, ela. Abarrotada, imensa. Gigantescamente cheia de pulsão de sentir. Sem ti ia como ninguém. Tinha certa mania de profundidade. E com as suas várias patas, com os seus vários olhos e com as suas várias línguas, ela zumbia e gritava pra se ouvir, pra ser ouvida. Sim, ela sempre foi uma praga...

Preta. Mulher.

Por um erotismo Preto

Esta escrita na pesquisa em Artes Cênicas pode ser voltada para “si”, trabalhando o “si” não numa perspectiva de objeto, mas sim como uma zona potente de criação de encruzilhadas. Não se trata de uma dicotomização do “si”, até mesmo porque o “si” é múltiplo. Mas torna-se relevante para esta pesquisa problematizar nessas leituras esse “si”, enquanto objeto e enquanto encruzilhada: o “si encruzilhada” é um “si” com topografias cruzadas, onde a sua subjetividade não é construída por uma única linha de modo excessivamente sistemático, como se pretende que aconteça com o “si objeto”, que planeja a partir de métodos bem definidos as suas criações, com intuito de atingir um determinado fim. Elaboro e entendo esse “si encruzilhada”, em linhas gerais, como um “si” que vai se construindo no processo, não é fixo e está em constante

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