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isso, segundo a autora, nós necessitamos do amor como forma potente de cura – “Aprender a amar é uma forma de encontrar a cura”.

Trata-se de uma ação de transmutação desse “cuidado” voltado ao outro, em forma de serviço e subserviência, para o “amor interior”.

Uso a expressão “amor interior” e não “amor próprio” porque a palavra “próprio” é geralmente usada para definir nossa posição em relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida interior é importante. A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que outros entendam a importância de sua vida interior. (id.).

Essa ideia de “amor interior” pode ser abrangida pela população Preta. Porém antes de nos amar precisamos nos perceber também como pessoas disponíveis e dignas desse amor. O que percebemos são subjetivações machucadas, feridas, rígidas, petrificadas.

O enunciado que coloco agora é que é possível nos desconstruirmos de muitas subjetivações brancas, nos construirmos, nos desbancarmos de um “cuidado” que nunca nos pertenceu, nos destruirmos então, para assim nos reconstruirmos através de nossas próprias escrevivências, elas entram aqui de forma prática como um ato de “amor interior” que nos abraça, inclusive, epistemologicamente. É a partir dessa escrevivência que entendo as Poéticas Pretas neste trabalho, como um dos possíveis caminhos na contemporaneidade para uma escrita Preta também na direção de uma estética Preta. A estética Preta imbricada em nosso fenótipo nos parece uma forma de desvio, um desvio que envolve, inclusive, um intenso processo de relação com nossa própria sexualidade, gênero.

Considerando que a raça e em algumas medidas o gênero marcam várias relações com o corpo, fala, comportamento, hábitos, produção de conhecimento, libido existencial etc., e enviesando nisso o conceito de erótico referido pela artivista Audre Lorde (1978), também perguntamos: é possível que o erótico seja uma das práticas possíveis de trabalhar esse “amor interno”? Esse mesmo erótico que nos foi afastado enquanto parte de nossa cultura e força de nossa arte por bater de frente com as construções morais do cristianismo.

Em um discurso intitulado Usos de lo erótico: lo erótico como poder, lido na Quarta Conferência Berkshire sobre História da Mulher, Audre Lorde (1978) fala sobre a supressão do erótico na vida de mulheres Pretas como fonte de poder e informação.

Referindo-se à antítese entre o erótico e o pornográfico, a autora afirma que este último põe em ênfase a sensação sem sentimento, uma negação direta do poder do erotismo, representando a supressão dos sentimentos verdadeiros, enquanto o primeiro é um espaço entre a incipiente consciência do próprio ser e o caos dos sentimentos mais fortes. Ao desfrutarmos do erótico em todos os nossos atos, nosso trabalho se converte em uma decisão consciente de “amor interno” e consequentemente coletivo. Lorde (1978, p. 27) diz que “lo erótico es una afirmación de la fuerza vital de las mujeres; de esa energía creativa y fortalecida, cuyo conocimiento y uso estamos reclamando ahora en nuestro lenguaje, nuestra historia, nuestra danza, nuestro amor, nuestro trabajo y nuestras vidas”.

Quando damos conta do erotismo enquanto dimensão estética Preta, abrimos a possibilidade de nos relacionarmos com o mundo que nos rodeia, passamos a ser responsáveis por nós mesmas/os em seu sentido mais profundo. Segundo Lorde (1978, p. 32), ao conhecer nossos sentimentos mais profundos, não aceitamos mais o sofrimento e a autonegação: “Al estar, en contacto con lo erótico, me rebelo contra la aceptáción de la impotencia y de todos los estados de mi ser que no son naturales en mi, que se ha impuesto, tales como la resignación, la desesperación, la humillación, la depresión, la autonegación”.

Cartografia da siririca

A aranha observa o banheiro no canto da porta. A aranha se vê encolhida, esguia e torta, de escanteio... Ela é dona daquele espaço. Sempre no canto, nunca no meio. Ela não pode ser pisada... Esquizoaranha, bebe água amarela da privada. Esquizo dança feliz de barriga alimentada, pelos ouriçados.

Ela se lambuza, enfia as patas na boca, tira a blusa: corpo esguio de aranha engolidora de moscas... desfila na pia, no chuveiro, ela é a miss_latrina.

A aranha outra: intrusa, que chega sem bater na porta... Arruma o território, deita no chão, parece morta... Bicha silenciosa. Estende suas pernas, afia a navalha de seus dedos e abre... Abre caminho entre os pelos... E de repente, num rompante, ela se meche, dança, compõe gemidos na batida esquizo dub funk e siririca o seu desconserto.

Ela gozza, gozza sem cerimônias. Boneca de voodoo, pandemônia, que no gozzo, se vê de canto, observada. Percebe a perspectiva, de baixo para cima.

Decanto: o momento, o silêncio e em seguida o espanto... Da outra aranha, que nunca ouviu ninguém gemer tanto!

* * *

Por envolver questões tão potentes, o erótico é frequentemente silenciado e, quando somado ao silenciamento gerado pela raça – e também pelo gênero e pela sexualidade, da forma como se constituiu em nossa sociedade, ganha outras dimensões: nossos corpos — e os discursos, as falas e as linguagens que os permeiam — são frequentemente captados e controlados, das formas mais disfarçadas às mais rasgadas.

O silêncio a que me refiro nesse caso é impositivo, diferente do silêncio por escolha. Refiro-me mais especificamente ao silêncio como opressão. Audre Lorde tinha experiência com o silêncio, pois era Preta, lésbica, mãe, com descendência caribenha num país como os Estados Unidos. Porém ela metamorfoseava diariamente esse silêncio, era poetisa e fala justamente sobre a transformação do silêncio em linguagem e ação, referindo-se a essa transformação como uma ferramenta de autorevelação ou autoconstrução. Segundo a autora, fomos socializadas para respeitarmos mais o medo do que as nossas próprias necessidades de linguagem e definição. O silêncio não nos protege, nunca protegeu, Lorde nos diz então para percebê-lo não como uma opção, mas como algo a ser modificado e transformado. E por mexer na ordem das relações de

poder, nas estruturas de autoridade e disciplina, que é racista, androcêntrica e heteropatriarcal, estar mergulhada nesse clima de silenciamento e ir contra o fluxo é um ato carregado de perigo.

Temos, portanto, uma responsabilidade com nós mesmas/os, a de compartilharmos e difundirmos essa linguagens e ações. Nós temos um compromisso com a quebra desse silêncio, com a sua transformação numa linguagem criativa, artística e erótica. Assim, o que interessa nesta pesquisa-encruzilhada é sobretudo a reverberação dos abalos provocados pelas Poéticas Pretas. Essas que pretendem ir além dos padrões tradicionalmente entendidos como “raça”, fazendo cintilar a ideia de que há muitas formas de enunciar essas subjetividades Pretas a partir da arte e, portanto, também na vida.

Somos instruídas/os, formatadas/os a ler de uma determinada forma, a reproduzirmos muitas subjetividades (perpassadas pela supremacia branca) sem uma leitura dinâmica e sem a consciência que somos atravessadas/os por elas, porque somos constantemente atravessadas/os e constituídas/os por elas, porém é algo tão naturalizado que não nos damos conta, não problematizamos criações que oprimem a nossa própria existência. Isso se constitui numa urgência, pois é no atravessamento que criamos, que relemos com outros sentidos, que falamos, escrevemos, movimentamos. Não é apenas sobre sermos travessadas/os, é sobre sermos mais conscientes desses atravessamentos.

Mas se podemos aproveitar o que nos acontece para criar realidades, uma das mudanças possíveis é transformar o silêncio em linguagem e ação, transformando a própria linguagem, porque até mesmo o nosso silêncio é permeado por ela. Diante desse reconhecimento, podemos fazer uma escolha por nós mesmas/os, abraçar nossa singularidade perante o mundo, nossa razão de potência, criação de existência, que é a criação da própria vida. Somos seres de “devir” e não de “servir”.

Somos cúmplices quando queremos quebrar o silêncio de uma voz que opera na manutenção desse sistema e que não fala outra língua se não a sua mesma. A quebra pode surgir das diferentes vozes, das dissonâncias que tentam desconstruí-lo. Antes de entendermos essa linguagem, portanto, nós temos que entender um pouco desse silêncio, sob o risco de ele ser apenas trincado e não quebrado. Mas precisamos correr esse risco, até porque a quebra começa pela trincada!

Nessa ressignificação estética das nossas existências, a dor, o silêncio e a opressão podem ser usadas para a criação de outra linguagem, não como reificação e mais propagação de violência, mas de forma que sejam problematizadas, repensadas e

entendidas como reféns do que construímos e mantemos enquanto relações de poder. Uma das formas de construir essa contracorrente é através de uma língua que esses sistemas não falam como, por exemplo, a do afeto ativo por nós mesmas/os.

De modo geral, querer-se controlar a vida, as diferenças, os conflitos, principalmente os da natureza — conflitos que estão inseridos na / que são a natureza, mas que esquecemos, porque nos esquecemos como sendo parte dela. Negamos outras realidades em detrimento de uma realidade branca e ocidental, ou melhor, acreditamos mais nesse protótipo de realidade, negando também a imanência do próprio mundo. Nossas criações artísticas estão bem comprometidas com essa lógica; diante disso, uma possibilidade de que vivamos e não apenas sobrevivamos é nos produzirmos outras/os: produzir a nós mesmas em direções mais interessantes — nossa estética Preta da existência.

Somos máquinas produtoras de desejo, porém esse desejo está circunscrito em várias normas, leis, gabaritos e protocolos, que supostamente nos dão segurança e proteção, mas são essas mesmas normas, leis, gabaritos e protocolos que estruturam e mantêm a ordem das relações de poder e produzem a violência. Tais relações se mantêm também através dos nossos corpos, ilegitimando-os, violentando-os e fazendo com que pensemos que somos incapazes de vivermos longe dessa rede, assim a mantemos. Mantemos esse tipo de relação de poder mesmo quando a negamos: é possível suspendê-la se construímos novas experiências com nossos corpos?

Diante dessa questão, o silêncio retorna, e assim podemos transformá-lo, posto que é abertamente uma ferramenta e que é desse tipo de relação de poder que devemos mais nos afastar, caso queiramos transformá-la em algo novo: uma nova linguagem, que tenha outra percepção e ação, produzindo assim novos modos de afeto. A aposta nesta pesquisa é trabalhar a construção dessa nova linguagem através das Artes Cênicas e da construção de novas poéticas.

Acredito que um trabalho nas Artes Cênicas nessa direção pode abrir, ao menos para as/os envolvidas/os com ele, novas possibilidades de afecções, afetos e afetações por meio da ação, possibilidades que trabalhem com corpos diferentes do que já temos e do que já conhecemos. Longe de estereótipos que já chamam a nossa atenção programada, é possível desprogramar essa atenção para produzirmos novos corpos e, portanto, novas estéticas. Será com a ação que modificaremos então a linguagem, transformando-a, ilegitimando assim também relações de poder já postas e o próprio silêncio que elas produzem.

É nesse sentido que estou entendendo o que chamo de Poéticas Pretas, trata-se de uma escrita da experiência “encruzilhada”, de escrevivências repletas de singularidades atravessadas pelas racializações que nos foram impostas, que também podem potencializar de certa forma os desvios necessários para um (des)encontro constante com subjetivações carregadas de estereotipias racistas.

A “cena” pode nos colocar num estado metafórico através da sua dramaturgia escrito-corporal, ela pode nos tirar do ordinário ou o potencializar, transformando o silêncio em ação e jogo na própria “cena”, contrapondo-se ao silêncio, colocando-o como objeto desafiador para criação.

A poética pode ser um modo para a expansão independente do lugar, bem como um modo de desvio do que já temos e conhecemos como seguro, desconstruindo a técnica e o próprio tipo de atenção que aprendemos a ter. Considerando que essa Poética Preta não está inscrita no paradigma europeu e branco das Artes Cênicas, retornamos com outra “questão de fome”: Como transformar o silêncio em linguagem e ação na perspectiva das Poéticas Pretas?

Não existem respostas prontas, mas façamos como sugere Conceição Evaristo, sejamos insubordinadas. As Poéticas Pretas são possíveis caminhos para autoafirmação e esse afirmar-se no mundo coloca em jogo outras formas de viver, outras experiências nada fixas como os estereótipos. Acreditamos que o desvio e o afeto ativo entre nós podem ser caminhos potentes para a quebra desses padrões em cena e fora dela. Baby Suggs, uma das personagens de Amada, obra da escritora Toni Morrison (2011, p. 134), nos diz:

Aqui [...], aqui neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne que dança descalça na relva. Amem isso. Amem forte. Lá fora não amam a sua carne. Desprezam a sua carne. Não amam seus olhos; são capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a pele de suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo, eles não amam as suas mãos. Essas que eles só usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Amem. Levantem e beijem suas mãos. Toquem outros com elas, toquem uma na outra, esfreguem no rosto, porque eles não amam isso também. Vocês têm de amar, vocês! E não, eles não amam a sua boca. Lá, lá fora, eles vão cuidar de quebrar sua boca e quebrar de novo. O que sai de sua boca eles não vão ouvir. O que vocês gritam com ela eles não ouvem. O que vocês põem nela para nutrir seu corpo eles vão arrancar de vocês e dar no lugar os restos deles. Não, eles não amam sua boca. Vocês têm de amar. É da carne que estou falando aqui. Carne que precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que precisam de apoio; ombros que precisam de braços, braços fortes, estou dizendo. E, ah, meu povo, lá fora, escutem bem, não amam o seu pescoço sem laço, e ereto. Então amem seu pescoço; ponham a

mão nele, agradem, alisem e endireitem bem. E todas as suas partes de dentro que eles são capazes de jogar para os porcos, vocês têm de amar. O fígado escuro, escuro - amem, amem e o bater do batente coração, amem também. Mais que olhos e pés. Mais que os pulmões que ainda vão ter de respirar ar livre. Mais que seu útero guardador da vida e suas partes doadoras de vida, me escutem bem, amem seu coração. Porque esse é o prêmio.

A escrita no momento tem sido um de meus prêmios e pode ser uma de nossas armas de autoafirmação, mas outras questões e objetos costumam ser confundidos com armas, como um guarda-chuva, por exemplo. As palavras aqui não portam guarda- chuvas, elas escoam muitas águas. Às vezes nem precisa se ter uma arma na mão, basta apenas dirigir um carro com a sua família dentro, ser parado por militares e tomar oitenta tiros26. Escrever tem sido uma de nossas armas contra o epistemicídio, outra morte que nos impuseram. Ser artista tem sido uma de minhas armas.

Arma de ilha: ser artista. Alice Walker (2018) em seu artigo Em Busca dos Jardins de Nossas Mães (1972) fala sobre as mulheres “Santas”, prostitutas, algumas delas foram as nossas mães, avós:

Pois estas [...] não eram Santas, mas Artistas; conduzidas ao entorpecimento e à loucura sangrenta pelas fontes de criatividade dentro delas, das quais não havia libertação. Elas eram Criadoras, que viviam vidas de desperdício espiritual, porque eram tão ricas em espiritualidade — que é a base da Arte — que a tensão de suportar seu talento inutilizados e indesejados as enlouquecia. Jogar fora sua espiritualidade era sua tentativa patética de reduzir o fardo de suas almas para que seus corpos desgastados pelo trabalho, sexualmente abusados, pudessem suportar. (id., p. 77).

Walker continua esse pensamento com uma questão que atravessa muitas mulheres Pretas: “O que significava uma mulher preta ser uma artista no tempo de nossas avós?”. Essa questão vibrou até nos (meus) cistos herdados pela herança colonial. Sou artista e o que significa então ser uma mulher Preta/negra nos tempos de hoje? A questão de Walker (id., p. 78)

[...] é uma questão com uma resposta cruel o suficiente para estancar o sangue. Você teve uma tataravó genial que morreu sob o chicote de um capataz ignorante e depravado? Ou ela era obrigada a assar biscoitos para um vagabundo preguiçoso, enquanto sua alma urgia por pintar aquarelas do pôr-do-sol, ou da chuva caindo nos pastos verdes e

26 Caso em que doze militares dispararam 257 tiros contra o carro de uma família que se locomovia para um chá de bebê, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 7 de abril de 2019. Eles assassinaram o músico Evaldo dos Santos Rosa (que dirigia o carro que foi atingido por mais de 80 tiros) e o catador de material reciclado Luciano Macedo, ferido enquanto tentava ajudar a família.

serenos? Ou seu corpo foi quebrado, forçado a parir crianças (que eram frequentemente vendidos e levados para longe dela) – oito, dez, quinze, vinte crianças – quando sua única alegria era o pensamento de esculpir modelos heroicos da rebelião em pedra ou argila? Como foi mantida viva a criatividade da mulher preta, ano após ano e século após século, quando na maior parte do tempo em que os pretos estiveram na América, era um crime passível de punição um preto ler ou escrever? E a liberdade para pintar, esculpir, para expandir suas mentes com ações não existia. Considere, se é que você consegue imaginar, o que podia ter sido o resultado se cantar também fosse proibido por lei. Escute as vozes de Bessie Smith, Billie Holliday, Nina Simone, Roberta Flack e Aretha Franklin, entre outras, e imagine essas vozes amordaçadas por todas suas vidas. Talvez então você comece a compreender as vidas de nossas “loucas”, “Santas” mães e avós. A agonia da vida de mulheres que poderiam ter sido Poetas, Novelistas, Ensaístas, Escritoras de Contos (por um período de séculos), que morreram com seus dons verdadeiros abafados dentro de si.

A elas foi abafado, a nós existe a possibilidade – controlada e censurada ainda – de desabafo. É uma migalha a mais e está muito longe de chegar perto de uma suficiência. Afeto minado, existência minada, perfil criminal – vários, traçados, trançados cabelos, traçados. Em encruzilhadas escrevo. Aqui traçada nessa pesquisa: sobre mim, minha mãe, minhas avós, meus avós, seus pais, os pais dos seus pais e os pais dos seus pais e os pais dos seus pais. Paz, não mais amém. Cansada de pedir paz e que me amem, nos amem, não, não mais amém.

A fé mudou e minha faca está amolada e hoje a minha faca se faz palavra. Pasmem: Pretas e Pretos estão em universidades, lá/aqui o conhecimento ainda é branco e a presença ainda é pouca. É importante frisar que os/as Pretos/as que estão nesse lugar são em sua maioria não retintos/as, pois para esses/as é um espaço ainda mais reduzido e distante, dominado pela pigmentocracia, espaço que continua amortizado a pensamentos brancos e colonizantes, hegemônico, mesmo quando vem do lado esquerdo da porta, porque a porta ainda é pintada de branca, assim como as paredes, o chão e toda a estrutura desse prédio. Pasmem também: as universidades não são detentoras de nossos conhecimentos e subjetividades, esses que conseguiram sobreviver ao longo desses séculos através (principalmente) da insubordinação.

A gente é insubordinada, a gente é artista...

Mulheres pretas são chamadas, no folclore que tão aptamente identifica o status de alguém na sociedade, de “a mula do mundo”, porque carregamos os fardos que todas as outras pessoas – todas as outras pessoas – se recusaram a carregar. Nós também fomos chamadas de “Matriarcas” e “Supermulheres” e “Cadelas cruéis e

malvadas”. Isso sem mencionar “Castradoras” e “Mãe da Sapphire”. Quando imploramos por compreensão, nosso caráter foi distorcido; já pedimos que simplesmente se importassem e recebemos clamores inspiracionais vazios, e depois empurradas pra o canto mais distante possível. Quando pedimos por amor, recebemos crianças. Em suma, até nossos dons mais simples, nossos trabalhos de fidelidade e amor, foram enfiados em nossas goelas. Ser uma artista e uma mulher preta, até hoje, rebaixa nosso status em muitos âmbitos, ao invés de elevá-lo: ainda assim, artistas seremos. (id., p. 81).

… somos sinônimos: artistas e insubordinadas, somos!

Peço uma pausa agora no texto, caso possa, caso esteja em casa ou em algum lugar confortável, peço que por um ato de disponibilidade tire a sua roupa. Sim, a sua roupa literal. Talvez ela te pese um pouco e você não perceba. Você pode se encaminhar para um banho agora, porque talvez as micropartículas de sujeira ou pele morta também pesem um pouco e você não perceba. É preciso se despir, se lavar com

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