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a foto perdida. No quarto o livro esquecido. No som o porco, o grunhido. O orgasmo suíno: o minuto, os minutos, as horas.

- Você tem sentido? - …

- Ei,

- Ei, eu disse ei… - Você tem sentido? - Não me venha com conversas…

- Ei, apenas pare! Ou melhor continue… vivendo, continue mergulhando nos buracos umbilicais seus. Isso não é problema, é escolha de

impermanência. E eu entendo, tem gente que gosta de molhar só os pés, pular as sete ondas, observar à distância a surra-abraço que a onda dá na pedra. Eu entendo, não é conversa. Afiada conversa. Mas dessa partilha de umbigo

eu não partilho, pra mim o buraco é mais pro fundo, é ainda cordão em gestação. Não sei, talvez seja pneu em combustão. Fumaça preta, língua amarela.

Quem está aqui, quem aqui pacifica, escolheu compartilhar todo o sulco da minha, das nossas essências, escolheu viver no olho do furacão, mergulhado, queimando, molhado de suor e lava de vulcão. Queimando de reiva

que nem pneu… Fumaça preta, língua amarela… Que

pin ga

E não são gotas – quem é que mata sede com gota?

Quem é que enche o bucho com partículas subatômicas de sentir? Eu mesma que não! Quero comer, repetir, sentir fome, comer e repetir. Esfomeada, quero lamber o prato de tanto sentir! Engolir os talheres, a mesa de jantar, as paredes, o barraco ajeitado e o buraco de fim de mundo em que vivo. - Entende?

É tanta coisa que nem cabe em mim. e tu me vem com migalhas?

- Ei,

Ei, eu disse ei… Comigo ou é tudo ou é nada!

Tudo pode ser usado exceto o que pode ser jogado fora (você vai precisar se lembrar disto quando for acusada de destruição). (Audre Lorde)

Esse trabalho é sobre emancipação e resgate, mas não consigo falar sobre isso sem falar sobre o que o mais trava esses dois objetivos: o racismo – “A crença na superioridade inerente de uma raça sobre todas as outras e, portanto, o direito de dominação, manifesto e implícito” (LORDE, 2018, p. 88).27

E como falar sobre racismo sem falar sobre raiva? “É possível superá-lo?”, te perguntei um dia. “O quê?”. “O racismo”, te respondi e você ficou calado. Por que é possível “superar” o racismo nessa sociedade em que estamos inseridas e inseridos? Se supero logo mais ele aparece de outra forma, às vezes mais pesado do que da última vez, não se supera o que está entranhado, acumulo descasos então, terei sorte se isso não se transformar num câncer na garganta, estômago ou em miomas uterinos – esses eu já coleciono. Mas é possível falar sobre racismo sem raiva?

Eu reclamava, exigia explicações. Suavemente, como se fala a uma criança, explicavam que era a opinião de algumas pessoas apenas, acrescentando que “era preciso esperar seu rápido desaparecimento”. De que estávamos tratando? Do preconceito de cor. (FANON, 2008, p. 109, grifo nosso).

Conhecido por todas e todos nós como racismo. Para Audre Lorde (id., p. 89) uma das respostas a ele é a raiva:

Eu vivi boa parte da minha vida com essa raiva, ignorando-a, me alimentando dela, aprendendo a usar antes que jogasse minhas visões no lixo. Uma vez fiz isso em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva não me ensinou nada. O seu medo dessa raiva também não vai te ensinar nada. Mulheres respondendo ao racismo significa mulheres respondendo a raiva; raiva da exclusão, dos privilégios não questionados, das distorções raciais, do silêncio, do maltrato, da esteriotipização, da defensividade, da má nomeação, da traição, da cooptação. Minha raiva é uma resposta às atitudes racistas e às ações e

27 Sobre a origem e o ethos do comportamento racista, Nah Dove (2018, p. 144) usa como referência Cheikh Diop que, ao falar sobre as antigas raízes do patriarcalismo indo-ariano, menciona que uma das significantes características da sua cultura é a xenofobia (medo de estrangeiros), “qual ele atribuiu à dura existência no ambiente do norte. Durante o desenvolvimento das cidades-estados da Grécia e de Roma, não era considerado um crime matar um visitante estranho (p. 146). No entanto, na sociedade matriarcal em que xenofilia (prática de acolher bem os estrangeiros) era a norma aceita, como foi documentado em Kemet durante a 12ª dinastia (4.000 anos atrás), ‘mulheres e homens pretos, brancos e amarelos, já haviam sido admitidos a viverem como cidadãos iguais’ (p. 147)”.

presunção que surgem dessas atitudes, então minha raiva e seus medos são focos que podem ser usados para o meu crescimento. Mas para a redução dos danos, não para a culpa. Culpa e defensividade são tijolos numa parede contra a qual todas nós fracassamos; eles não servem para o nosso futuro.

Formas menos hostis de fala são cobradas de nós. Como falar sobre situações de opressão e não se sentir amagamente afetada/o? Como falar disso de forma suave, “saudável”, como tantas vezes nos cobram? Pois lhes digo que não existe forma não- hostil ou suave de falar sobre o racismo – “[...] é a minha forma de falar que a impede de ouvir ou a ameaça de uma mensagem que possa fazer com que sua vida mude?” (id.). Cobra-se menos raiva por causa da culpa, mas

Não posso esconder minha raiva para poupar-lhe a culpa, nem ferir seus sentimentos, nem responder à raiva; pois fazê-lo insulta e banaliza todos os nossos esforços. A culpa não é uma resposta à raiva; é uma resposta às próprias ações ou falta de ação. Se isso leva a mudanças, então pode ser útil, já que não é mais culpa, mas o começo do conhecimento. No entanto, com demasiada frequência, a culpa é apenas outro nome para a impotência, para a defensiva destrutiva da comunicação; torna-se um dispositivo para proteger a ignorância e a continuação das coisas do jeito que são, a proteção definitiva para a imutabilidade. (id., p. 94).

E como transmutar a culpa da supremacia branca? Essa resposta não tem que ser pensada por mim ou por nós. Tenho que dar conta da culpa que me/nos foi colocada – e ela não está comigo apenas em alguns momentos de confronto, ela está sempre aqui, ontem, por exemplo, acordei e a olhei no espelho, de novo; cada dia menos; tem dias que mais. Preciso trabalhá-la, pois se não eu não consigo viver dignamente, minha escrita trava, minha língua enrola, adoeço (cancros, cancros, cancros). Hoje entendo essa culpa como uma alienação e mecanismo do próprio racismo, alienação essa que me coloca em processo de inanição... e me recuso a senti-la.

A ponta queimou a minha’boca, boca cheia de farelo e fumaça. Bem massa que embaça e amansa a dor. Te fere em dormência,

mas alguns preferem seguir na demência, corpo cheio de inteirezas desabitadas.

Mas e se eu fizesse uma endoscopia, o que em mim encontraria? Vestígios teus? Não, não sou vazia! Acho que veria cancros, cancros! Cancros vários! Fodendo meus órgãos, estuprando meu peito, invadindo meus ovários! Cancros na aorta, no cerebelo, cancros até nos fios curtos de meus cabelos! Eu só sei escrever sobre cancros, vê? Porque não sei ser pessoa-abafador, vê? Mas no geral me sinto bem, vomito todo dia:

pus, sangue e até poesia! A minha médica já marcou a endoscopia...

E sigo vomitando rimas, vomitando apatia. Vomito vontade, lágrima doce e também falsa-empatia. Contra e versa, sigo – me alimento de poesia!

Segundo Lorde (id., p. 95) essa culpa é:

[...] uma outra maneira de evitar a ação informada, de ganhar tempo com a necessidade premente de fazer escolhas claras, fora da tempestade que se aproxima e que pode alimentar a terra e dobrar as árvores. Se eu falar com você com raiva, pelo menos eu falei com você: eu não coloquei uma arma na sua cabeça e atirei em você na rua; eu não olhei para o corpo de sua irmã sangrando e perguntei: “O que ela fez pra merecer isso?”. Esta foi a reação de duas mulheres brancas para contar o linchamento de uma mulher preta grávida de Mary Church Terrell cujo bebê foi, então, arrancado do seu corpo.

Contra a culpa encontrei a raiva, esculpi a culpa na minha poesia, nas minhas palavras, na minha anatomia e nas próprias palavras de culpa identifiquei o antídoto: a própria, a palavra – não mais fajuta e disfarçada de branca, descobri uma fala diferente das que me ensinaram na escola, na universidade, descobri esse canto, no canto de fora, nos muros de fora, no meu passado (tão ali mostrado, mas que eu não enxergava); não era mais saber de canto, era saber que acomodava a sala toda, a casa toda; era

movimento abarrotado, descobri a minha “negridão”28, como chamou Frantz Fanon (2008) e a descobri com a raiva, porque a descobri através do racismo.

A ontologia, quando se admitir de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco. Alguns meterão na cabeça que devem nos lembrar que a situação tem um duplo sentido. Respondemos que não é verdade. Aos olhos do branco, o negro não tem resistência ontológica. De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta. (id., p. 104).

Em seu livro Pele preta, máscaras brancas, Frantz Fanon (2008) nos fala sobre as relações raciais e coloniais, objetiva e subjetivamente nos fala sobre a descolonização e emancipação cultural do Preto, discorre sobre a ideia de “identidade negra”. Ele fala sobre a construção dos estereótipos raciais impostos pela própria colonização e reforça em sua escrita sobre a restituição da humanidade do Preto, o Preto enquanto “sujeito”. Visto que o colonialismo destituiu os povos africanos da sua própria história e cultura – pois até mesmo o que temos acesso hoje passa pelo crivo da supremacia branca.

Fanon enfrenta esses estereótipos e no próprio desenvolvimento de seu livro vai “libertando” e desnormatizando a sua escrita a cada capítulo, colocando mais a sua voz. Nasceu e cresceu em uma colônia (Martinica), assim como nós. Teve uma educação “branca”, assim como eu e nos fala sobre a importância de reescrevermos a nossa história e cultura para não mais ficarmos à sombra de uma história e cultura europeia.

Chego lentamente ao mundo, habituado a não aparecer de repente. Caminho rastejando. Desde já os olhares brancos, os únicos verdadeiros, me dissecam. Estou fixado. Tendo ajustado o microscópio, eles realizam, objetivamente, cortes na minha realidade. Sou traído. Sinto, vejo nesses olhares brancos que não é um homem novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um novo gênero. Um preto! (id., p. 108).

Fanon nos fala de alguma forma, não tão explícita quanto a Audre Lorde sobre a raiva. Aqui na encruzilhada desse projétil, podemos atravessar a mencionada obra de Fanon com o artigo Os Usos da Raiva: Mulheres Respondendo ao Racismo, proferida

28 “Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ancestrais. Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas, – e então detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, os negreiros, e sobretudo com y’a bon banania” (FANON, 2008, p. 105).

numa conferência realizada em 1981, e que é um dos capítulos de uma das principais obras29 de Lorde.

Como o título do artigo já nos elucida, Lorde direciona a sua fala apenas às mulheres, mas isso não é uma questão aqui. Assim como em muitos momentos Fanon é androcêntrico30 em sua fala ao se referir ao “Preto”, uma das sequelas do machismo que opera em nossa linguagem. Fanon abraça o povo Preto em sua fala, trazendo a sua perspectiva, as suas vivências (a única possível) enquanto homem Preto. Assim como Audre Lorde traz em suas falas uma destacada relação de gênero. Ambos, para além dessas questões estão falando de suas experiências mediante o racismo e é nisso que essa encruzilhada foca.

Os questionamentos de fome que surgem das encruzilhadas desses dois autores são: como trabalhar a questão da raiva para a população Preta? (Entendendo-se que essa raiva também passeia por nós atravessada por outras opressões, como o machismo, por exemplo). Como processo sobre a raiva da mulher Preta? Lorde nos fala sobre isso. Como processo sobre a raiva do homem Preto? Fanon nos fala sobre isso e abre a discussão desses estereótipos raciais para a população Preta.

E as mulheres Pretas? Audre Lorde direciona seu discurso bastante ao gênero, ela fala sobre a autoaceitação da raiva de mulheres Pretas, diferencia esta do ódio, que “é a fúria daqueles que não compartilham nossos objetivos”, e que o objetivo dessas pessoas (referindo-se à supremacia branca) é por sua vez “a morte e a destruição”; fala sobre a necessidade de mulheres Pretas e mulheres brancas “encararem as fúrias umas das outras sem negação ou imobilidade, silêncio ou culpa”, pois isso “é em si uma ideia herética e generativa”. Fala sobre a implicância dessas em encontrarem uma base comum para examinar essa diferença, já que são essas distorções que nos separam. Lorde está se referindo à masculinidade branca (LORDE, 2018, p. 93).

Considero de extrema importância destacar algo que os estudos de gênero geralmente tendem a dispersar ou não focar: o homem Preto como algoz desse mesmo sistema e dos estereótipos racistas criados por ele, dentro dessa masculinidade. Portanto...

E os homens Pretos? Ainda estamos falando sobre racismo e raiva, mas a questão se torna pertinente, pois ela se contrapõe a outro estereótipo de gênero que

29 LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays & Speeches. Berkeley: Crossing Press, 2007, p. 124-133. 30 Porém é importante destacar a diferença entre androcentrismo e misoginia.

envolve também o racismo, visto que a raiva já é algo esperado desses homens, é algo inclusive, construído como sendo parte deles, ligada a uma violência naturalizada e incutida a eles.

Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do meu estar-aqui, constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim, senão um desalojamento, uma extirpação, uma hemorragia que coagulava sangue negro sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não queria esta reconsideração, esta esquematização. Queria simplesmente ser um homem entre outros homens. Gostaria de ter chegado puro e jovem em um mundo nosso, ajudando a edificá-lo conjuntamente. (FANON, 2008, p. 106).

Esse estereótipo de “objeto” é usado como justificativa para o afastamento e descaso, para o encarceramento e genocídio de homens Pretos no Brasil, não à toa nós temos a terceira maior população carcerária do mundo, onde 64% é Preta (dentro das 493.145 pessoas), ou seja, quase dois terços de toda população carcerária brasileira.31 São “personagens principais” dos homicídios – são 16 brancos assassinados a cada 100 mil habitantes contra 40,2 Pretos32. Se você não sente raiva ao ler isso nós temos um problema aqui.33

Números, dados, estatísticas, palavras, imagens veiculadas nas mídias menos sensacionalistas e internet, vivências, escancaramentos – não mudam a realidade da população Preta na diáspora forçada brasileira. Os dados expostos nessa página não são tão recentes e agora tendem a piorar, visto que o Brasil enfrenta atualmente o pior cenário eleitoral das últimas décadas, onde está sendo presidido pela extrema-direita

31 Dados retirados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em Brasília, pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, Junho/2016.

32 Fonte: Atlas da Violência, 2018, organizado em parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

33 “A informação sobre a raça, cor ou etnia da população prisional feminina estava disponível para 29.584 mulheres (ou 72% da população prisional feminina). A partir da análise da amostra de mulheres sobre as quais foi possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos afirmar que 62% da população prisional feminina é composta por mulheres negras. [...] Se projetarmos a proporção de mulheres negras e brancas observada na parcela da população prisional que dispunha de informação sobre raça, cor ou etnia para o total da população prisional, teríamos uma estimativa de 25.581 mulheres negras em todo o sistema prisional e 15.051 mulheres brancas. A partir dessa estimativa, é possível calcular a taxa de aprisionamento para cada 100 mil mulheres maiores de 18 anos entre as populações de diferentes raças, cores ou etnias [...]. Podemos afirmar que, entre a população maior de 18 anos, existem aproximadamente 40 mulheres brancas privadas de liberdade para cada grupo de 100 mil mulheres brancas, e existem 62 mulheres negras na mesma situação para cada grupo de 100 mil mulheres negras, o que expressa a disparidade entre os padrões de encarceramento de mulheres negras e brancas no Brasil”. Dados retirados do Levantamento de Informações Penitenciárias - INFOPEN, Junho/2016. PNAD, 2015, p. 40.

conservadora (leia-se aqui: racista, machista, transfóbica, homofóbica, intolerante ao que e a quem se contrapõe à normatividade cristã).

[Peço que tome fôlego...] Naturalizada ou não esperada ou não fazendo parte ou não de um estereótipo usado por essa extrema-direita pela direita esquerda e todas as direções (políticas ou não) possíveis imbuídas no cerne dessa sociedade que nasceu de um processo de colonização e escravidão que durou mais de três séculos e que dura até hoje enchendo hospitais hospícios prisões esvaziando escolas...

[Agora com pausa, vírgulas e fôlego te digo que...] É estarmos cientes dessas estereotipizações e violências, estarmos conscientes, atentos e atentas, preparadas e preparados – na medida do possível, óbvio... Cheios e cheias de raiva, pois “operamos nos dentes de um sistema para o qual o racismo e o sexismo são propósitos primários, estabelecidos e necessários ao lucro” (LORDE, 2008, p. 92).

Tendo o campo de batalha sido delimitado, entrei na luta. Como assim? No momento em que eu esquecia, perdoava e desejava apenas amar, devolviam-me, como uma bofetada em pleno rosto, minha mensagem! O mundo branco, o único honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse. Mas eles iam ver! Eu já os tinha prevenido... A escravidão? Não se falava mais disso, era uma lembrança ruim. A pretensa inferioridade? Uma pilhéria da qual era melhor rir. Eu aceitava esquecer tudo, com a condição de que o mundo não me escondesse mais suas entranhas. Tinha de testar meus incisivos. Eu os sentia robustos. E depois... Como assim? Quando então eu tinha todos os motivos para odiar, detestar, rejeitavam-me? Quando então devia ser adulado, solicitado, recusavam qualquer reconhecimento? Desde que era impossível livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como Negro. Uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer. (FANON, 2008, p. 107).

Eis ela, a raiva que permeia também as subjetividades dos homens e mulheres Pretos/as. As Poéticas Pretas necessitam de uma leitura de gênero, portanto, que envolva a fluidez entre essas linhas do “masculino” e “feminino”, impregnadas também de estereótipos racistas, porque antes desses estereótipos que marcam as próprias relações de gênero ocidentais, ambos são atravessados pelo racismo. Sendo essas poéticas múltiplas, elas podem falar por um povo, mesmo que eu esteja falando sobre mim?

A resposta é simples de início: sim, pois a opressão que passo gerada pelo racismo e que impregna os meus modos de subjetivação também é múltipla nessa sociedade. Esse racismo e suas implicações de inferioridade estão presentes nas subjetivações de todo um povo. E como Fanon nos “provoca” ela é confrontada quando me faço conhecer, e como consequência também faço conhecer a minha raiva – “reiva” quando falada e sentida com muita raiva, que a externo e a torno múltipla, multiplico a minha voz em várias na minha/nossa escrita.

Desse modo, torna-se relevante transmutar os discursos de gênero, abrangê-los e aplicá-los aqui nessa “escrita encruzilhada” à população Preta, para assim falarmos sobre a importância da articulação dessa raiva, pois não podemos “limitá-la” no gênero, mesmo sabendo da importância das mulheres se encararem sobre as suas diferenças, ou seja, a raiva de ambas entre si e do ódio em comum que as geram, como Lorde nos elucida. Porém é como se esse denominador comum fosse apenas a masculinidade de uma sociedade gestada pelo patriarcado. E é também, porém trata-se de uma masculinidade branca, coluna dorsal dessa sociedade patriarcal. Transformamos isso em um discurso delicado, pois as masculinidades são facilmente confundidas, vistas sobre um manto único: o machismo. Mas não podemos colocar numa mesma balança a masculinidade Preta e a masculinidade branca (frisando que existem outras, mas neste trabalho vou me ater apenas a essas duas, por serem as de maior destaque e dissonância na sociedade que vivemos).

Não tem como separar o racismo que o homem Preto passa do racismo da

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