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A gente combinamos de escreviver: Poéticas Pretas e modos de autopotência na criação em Artes Cênicas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS – PPGArC

NAARADEOLIVEIRAMARTINS

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER:

POÉTICAS PRETAS E MODOS DE AUTOPOTÊNCIA NA CRIAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

NATAL / RN 2020

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NAARADEOLIVEIRAMARTINS

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER:

POÉTICAS PRETAS E MODOS DE AUTOPOTÊNCIA NA CRIAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Artes Cênicas.

Linha de Pesquisa: Práticas investigativas da cena: poéticas, estéticas e pedagogias

Orientadora: Profa. Dra. Karyne Dias Coutinho

NATAL / RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Martins, Naara de Oliveira.

A gente combinamos de escreviver: Poéticas Pretas e modos de autopotência na criação em Artes Cênicas / Naara de Oliveira Martins. - 2020.

179 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2020.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karyne Dias Coutinho.

1. Poéticas Pretas. 2. Escrevivência. 3. Necroperformance. 4. Epistemicídio. 5. Artes Cênicas. I. Coutinho, Karyne Dias. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

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Naara de Oliveira Martins

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER:

POÉTICAS PRETAS E MODOS DE AUTOPOTÊNCIA NA CRIAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Artes Cênicas.

Apresentada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Prof. Dra. Karyne Dias Coutinho

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Orientadora

_______________________________________________ Prof. Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Membra Interna

_______________________________________________ Profa. Dra. Denise Carvalho dos Santos Rodrigues Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Membra Interna

_______________________________________________ Prof. Dr. Elton Panamby

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Aos ancestrais que eu conheço, aos ancestrais que eu não conheço e aos ancestrais que me conhecem mais do que eu mesma.

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Seguimos a tradição. Seguimos uma forte tradição. Seguimos uma orgulhosa tradição. Seguimos a tradição Preta. Siga-a. Siga ela agora. Siga-a PARA A LIBERDADE! Assata Shakur

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ASANTE SANA

Quando fui fazer a prova para entrar no mestrado em Artes Cênicas estava morando com a minha mãe e com a minha avó, que teve um AVC há uns anos e como sequela foi diagnosticada pelos médicos com “demência”. Sempre discordei desse diagnóstico e dessa “sentença” em forma de palavra. A minha avó diz sabedorias que nenhuma pessoa demente diria, com o rosto de uma anciã e o jeitinho de uma êre.

Naquele período eu tinha largado tudo: moradia, roupas, objetos, só não consegui me desapegar dos livros (foi um processo), estava vendendo tudo (que era pouco) e indo embora da cidade, fazendo a prova porque três amigos queridos me convenceram que era o melhor momento pra se fazer uma pós – isso foi no período “Fora Temer”, mal sabíamos do desmonte que estava por vir.

E saindo de casa para fazer a prova, vovó que estava sentada em sua cadeira de balanço me perguntou se eu estava indo pra São Paulo. Respondi que não, que estava indo fazer a prova do mestrado. Ela parou e observou o tempo que corria entre nós duas naquela sala, olhou para mim e disse:

- Pra comer não precisa estudar.

Parei naquele tempo que nos cercava. Fui fazer a prova com aquilo na cabeça. Passei no mestrado e passei também a pós inteira com essa frase me acompanhando: “Pra comer não precisa estudar”. Vovó está certa.

E estar aqui, independente desse trabalho, estar aqui... viva! – é sobre agradecer. Necessito agradecer e é uma das coisas que mais preciso nesse momento, além de escrever. Aqui tenho as duas coisas ao mesmo tempo e posso fazer delas sinônimos.

Então aqui escrevo-agradeço aos meus pais, Vera e Moisés; a minha irmã Natália e ao meu pequeno sobrinho Francisco, vocês são minhas raízes, meu sumo mais concentrado. A vovó Nevinha pelas suas palavras de fome e sabedoria, a vovó Martins (In Memoriam) pelo abraço de circunferência de mundo e o chão rosado de flor de jambo.

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Escrevo-agradeço a minha orientadora Karyne Dias Coutinho pelo apoio, amizade, respeito e amor. À banca – Luciana Lyra, Denise Carvalho e Elton Panamby – pela generosidade em aceitar meu convite em participar, pelos apontamentos desde a qualificação, por permanecerem mesmo quando as coisas estão tão mais impermanentes.

Agradeço ao trajeto e trocas no Grupo de Pesquisa Poéticas do Aprender. Agradeço também a minha turma do mestrado e a professoras como Luciana Lyra, Karenine Porpino e Itza Amanda Varela-Huerta por todas as trocas, contribuições e partilhas em sala de aula e grupo de estudos/orientações no México, respectivamente.

Agradeço as minhas amigas e amigos tão querides: Franco Fonseca – pelas mangas e caroços chupados ao longo desse trajeto de amizade e trabalho que construímos, te sinto parte minha e me sinto parte sua, mesmo a gente não se pertecendo; Pablo Vieira – pelo suporte afetivo (e material também, como bom taurino que é); Gabriela Marinho – pela tradução do abstract e por tanto afeto, colocando-me pra cima especialmente quando não me sinto bem; Cléo Morais – pelos coices cheios de amor e Renata Santos – pelas conversas engraçadas e sérias ao mesmo tempo. Poderia escrever outra dissertação só com as nossas histórias, mas por agora fico feliz em celebrar como é incrível ser eu mesma dentro do nosso pequeno grupo e isso é tão grandioso que nem sei se vocês fazem ideia... É muito amor em meio a tantos xingamentos, conselhos e... É isso, amo vocês!

Ao meu grande amigo-paterno Edivaldo – que me acolheu em sua casa nesses últimos e cruciais meses de escrita, mas que já me acolhe e acompanha de longe, dessa vida e de outras. Te amo forte, grande amigo.

Aqui escrevo-agradeço ao Jahi – grupo de danças negras e estudos afrodiaspóricos que me fez abraçar ainda mais os nossos conhecimentos e a dar importância à nossa ancestralidade; escrevo/agradeço a Kakilambe, afroempresa de roupas que faço parte com Kédma, Evelyn e Nimba – cada estampa pintada entre músicas e danças foi aprendizado e afeto misturados, me sinto uma encantada naquele atelier.

Escrevo-agradeço as minhas irmãs de alma, luta e gargalhadas: Shay Santana, Aline de Moura Rodrigues e Marielle Salles – conhecê-las foi um dos melhores presentes que o México me trouxe, tenho dificuldades em palavrar tudo o que compartilhamos e vivemos durante esse

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tempo... O que sei palavrar é que sinto orgulho de vocês e as amo imensamente. A Marbella Figueroa por me receber com tanto afeto em sua casa, por me ajudar a caminhar com aquela tela pelas ruas, por ser uma artista tão inspiradora, tão amável; agradeço-escrevo também as meninas do Coletivo Flores de Jamaica. Agradeço a Aline Zúñiga por me acolher em Tepoztlán, pelas nossas conversas-andanças e as-simetrias. Agradeço a todos que me alimentaram e me acolheram verdadeiramente nessa estadia de três meses: a Bety Robles Reyes – por chorar e rir comigo, por ser tão sensível quanto eu e me tratar com tanto afeto; a Emiliano Guerrero – pelas massagens, malteadas, pelas conversas engraçadas em portunhol, pela amizade; a família Acevedo Ávila, por me acolher, me alimentar e me ensinar coisas tão preciosas na Costa Chica de Oaxaca... Agradeço imensamente a Juliana Acevedo Ávila, que além de me ajudar como “porto-teórico” me ajudou também com a sua grande e amável família. As pessoas incríveis que conheci e que me abraçaram e dançaram comigo na Cidade do México, em Oaxaca de Juárez, Tepoztlán, Collantes e José María Morelos. “Que pasa con el dj que no pone perreo?” – melhores companhias!

Agradeço-escrevo às pessoas que estiveram envolvidas em partes desse curto e longo processo do mestrado, que contribuíram com retalhos significativos para essa caminhada: a Amanda Raquel pelas considerações e afeto logo no início dessa pesquisa; a Alma Narvaez por me apresentar lugares incríveis e pessoas essenciais em terras mexicanas – você também foi e é essencial; a chiquitita Alma Elena por ser minha amiga mais nova em idade e por isso tão cheia de sabedoria, como são as crianças; a Emma Reyes Reyes pelos bordados e risadas contagiantes; a Viviana Lorenzo pelo registro da performance (que no final das contas nunca foi compartilhado comigo, mas agradeço mesmo assim o empenho naquele dia e nos dias de oficina no CEDART).

Agradeço-escrevo atravessada ao quilombo que construímos –

A Kédma, uma irmã que a vida me presenteou – tenho orgulho e felicidade de dizer que construímos a nossa amizade, “destruímos”, mas depois construímos um lar e uma grande parceria, que é mais justo chamar de irmandade. A Alysson pela amizade/alimento – é bom estar com você, amigo. Me sinto confortável com a sua fala e com o seu sorriso. Não pare de falar, insisto! O que você fala é importante, é combustível para nós/laços e espero ter colocado aqui um pouco dessa gasolina, querosene, dessa coisa inflamável e latente que são as nossas falas. A Evelyn – “fada cheirosa”, maga dos aromas, das mãos curativas, da firmeza de anciã, mas que garota, que êre você também é, minha irmã. A Nimba, calorosa e materna,

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seu movimento de fogo me queima demais, Preta, me contagia, me abraça e me faz querer chorar de felicidade. Eu assim tão emocional sempre, mas sei que você entende de água, por isso nos captamos. A Nina, a nossa pequena ancestral. A Elaine e seu deboche que me ensina mais do que qualquer universidade, que feliz compartilhar essa vida contigo, amiga. A Sâmela e a sua escuta, generosidade, amorosidade – que deusa e voz, te agradeço e te escrevo aqui. Esse trabalho é sobre nós. O ṣeun.

Ao meu companheiro Matheus, que me enche de dengo – palavra africana que você me trouxe e que é afeto, amor preto. Matheus, tu que me mostra diariamente que se curar não é segurar, ao contrário, é liberar e compartilhar... Amor entre nós.

Ao nosso pequeno Imani.

Escrevo-agradeço aos ancestrais do passado: Dandara, Anastácia, Luísa Mahín, Tereza de Benguela, Aqualtune, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Acotirene, Adelina Charuteira, Rainha Tereza do Quariterê, Mariana Crioula, Esperança Garcia, Maria Firmina dos Reis, Eva Maria de Bonsucesso, Maria Aranha, Na Agontimé, Tia Simoa, Zacimba Gaba, Carolina Maria de Jesus, Marcus Garvey, Malcolm X, Beatriz Nascimento, Lélia González, Abdias do Nascimento, Sobonfu Somé, Maria Martins.

Agradeço-escrevo também aos ancestrais do futuro: Conceição Evaristo, Assata Shakur, Paulina Chiziane e Marimba Ani, mulheres Pretas que me inspiram e que me dão sopro pra continuar.

Aqui eu escrevo-agradeço a todes as pessoas Pretas, que assim como eu, escrevivem para não morrer!

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RESUMO

A partir de perspectivas afrocêntricas, este estudo pesquisa a noção de Poéticas Pretas como possibilidade de autopotência na criação em Artes Cênicas e como desestabilização das estereotipias raciais nesse âmbito, entendendo tais estereotipias como práticas epistemicidas que necessitam ser problematizadas e combatidas. Inspirando-se no conto A gente combinamos de não morrer, de Conceição Evaristo, a Dissertação ora apresentada, que se intitula A gente combinamos de escreviver, tece relações entre Poéticas Pretas e a produção de subjetividades Pretas, trabalhando com a importância do afeto entre nós mesmas/os (bell hooks) e com os “usos da raiva” (Audre Lorde), ambos necessários para a manutenção e sustento das nossas escrevivências. Para tanto, parte-se dos conceitos de “encruzilhada”, de Leda Maria Martins, como reversão metodológica; e de “necropolítica”, de Mbembe, enquanto política da morte, supressora e mantenedora das narrativas hegemônicas sobre os nossos corpos — este seundo conceito também inspirou a necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada nas cidades de Oaxaca de Juárez e Cidade do México / México, como parte desta pesquisa. Na esteira disso, este trabalho encruzilha epistemes de autoras e autores como Audre Lorde (1978; 2018), Abdias do Nascimento (1980), Sueli Carneiro (2003), Frantz Fanon (2008), Lélia Gonzalez (2018), Achille Mbembe (2018; 2016), bell hooks (1994), Leda Maria Martins (2003), Alice Walker (2018), Molefi Asante (2009), Alex Ratts (2007), entres outras/os. Este trabalho é carregado de “projéteis” que laboram sobre a responsabilidade com nós mesmas/os, a de compartilharmos e difundirmos linguagens e ações. Nós temos um compromisso com a quebra do silêncio, com a sua transformação numa linguagem criativa e artística. Assim, o que interessa nesta pesquisa-encruzilhada é sobretudo a reverberação dos abalos provocados pelas Poéticas Pretas. Essas que pretendem ir além dos padrões tradicionalmente entendidos como “raça”, fazendo cintilar a ideia de que há muitas formas de enunciar essas subjetividades Pretas a partir da arte e, portanto, também na vida.

Palavras-chave: Poéticas Pretas. Escrevivência. Necroperformance. Epistemicídio. Artes Cênicas.

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RESUMEN

Desde perspectivas afrocéntricas, este estudio investiga la noción de Poéticas Negras (Poéticas Pretas) como una posibilidad de auto potencia en la creación en las Artes Escénicas y como una desestabilización de los estereotipos raciales en este contexto, entendiendo tales estereotipos como prácticas epistémicas que deben ser problematizadas y combatidas. Inspirado en el cuento A gente combinamos de não morrer, de Conceição Evaristo, la Disertación ahora presentada titulada A gente combinamos de escreviver, entrelaza las relaciones entre las Poéticas Negras (Poéticas Pretas) y la producción de subjetividades negras, trabajando con la importancia del afecto entre nosotras/os (bell hooks) y con los “usos de la ira” (Audre Lorde), ambos necesarios para el mantenimiento y el apoyo de nuestros registros. Para eso, parte de los conceptos de “encrucijada”, de Leda Maria Martins, como una inversión metodológica; y la “necropolítica”, de Mbembe, como una política de muerte, que suprime y mantiene narrativas hegemónicas sobre nuestros cuerpos. Este segundo concepto también inspiró el desempeño de la necroperformance ¿Y si muero aquí?, hecha en las ciudades de Oaxaca de Juárez y Ciudad de México, en México, como parte de esta investigación. En el curso de eso, este trabajo cruza epistemes de autoras y autores como Audre Lorde (1978; 2018), Abdias do Nascimento (1980), Sueli Carneiro (2003), Frantz Fanon (2008), Lélia Gonzalez (2018), Achille Mbembe (2018 ; 2016), bell hooks (1994), Leda Maria Martins (2003), Alice Walker (2018), Molefi Asante (2009), Alex Ratts (2007), entre otras/os. Este trabajo está cargado de “proyectiles” que trabajan con responsabilidad con nosotras/os mismas/os, el de compartir y difundir lenguajes y acciones. Estamos comprometidos a romper el silencio, transformándolo en un lenguaje creativo y artístico. Por lo tanto, lo que importa en esta investigación de encrucijada es sobre todo la reverberación de las conmociones causadas por Poéticas Negras (Poéticas Pretas). Essas que pretendem ir além dos padrões tradicionalmente entendidos como “raça”, fazendo cintilar a ideia de que há muitas formas de enunciar essas subjetividades Pretas a partir da arte e, portanto, também na vida.

Palabras clave: Poéticas Negras (Poéticas Pretas). Escrevivência. Necroperformance. Epistemicídio. Artes Escénicas.

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LISTA IMAGÉTICA

Imagem 1 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 101 Imagem 2 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 103 Imagem 3 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 103 Imagem 4 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 104 Imagem 5 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 104 Imagem 6 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 106 Imagem 7 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 107 Imagem 8 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 108 Imagem 9 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 115 Imagem 10 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 116 Imagem 11 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 116 Imagem 12 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 117 Imagem 13 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 117 Imagem 14 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 118 Imagem 15 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 118 Imagem 16 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 119

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Imagem 17 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 120 Imagem 18 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 121 Imagem 19 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 121 Imagem 20 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 123 Imagem 21 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 123 Imagem 22 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 124 Imagem 23 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 124 Imagem 24 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 125 Imagem 25 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 125 Imagem 26 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na Oaxaca de Juárez, Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 137 Imagem 27 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. ... 137 Imagem 28 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019 na Oaxaca de Juárez, Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ... 138

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SUMÁRIO

EM CASO DE EMERGÊNCIA: QUEBRE ESSE VIDRO TRINCADO EM CASO DE DESISTÊNCIA: RASGUE ESSA FOLHA ME LEIA SE POSSÍVEL, ANTES DE MAIS

NADA: É UMA ESCOLHA ... 13

AINDA NÃO ENCONTREI UM TÍTULO QUE COUBESSE AQUI ... 19

PROJÉTIL 0 - CARTUCHO VAZIO OU BALA DE BORRACHA ... 26

PROJÉTIL I - ARMA DE ILHA ... 34

A ENCRUZILHADA COMO REVERSÃO METODOLÓGICA ... 35

CARTOGRAFIA DO SUOR ... 38

CARTOGRAFIA DO CORPO-ENCRUZILHADA ... 42

POR UM EROTISMO PRETO ... 43

CARTOGRAFIA DA DISTRAÇÃO ... 58

PROJÉTIL II - REIVA ... 62

CARTOGRAFIA DA NEBULOSA ... 71

CARTOGRAFIA DO PRÉDIO-COLINA ... 75

CARTOGRAFIA DA TRINCA AGUADA ... 77

PROJÉTIL III – ¿Y SI MUERO AQUÍ? ... 84

CARTOGRAFIA DA MESTIÇAGEM ... 88

CARTOGRAFIA DA CHEGADA ... 98

CARTOGRAFIA DE UMA NECROPERFORMANCE ... 106

CARTOGRAFIA DA FOME ... 128

CARTOGRAFIA DA CULPA ... 131

PROJÉTIL IV - A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER ... 139

CARTOGRAFIA DA PROCRASTINAÇÃO ... 152

CARTOGRAFIA DA FUGA ... 159

PARA QUEM ESSAS MÃOS APONTAM? ... 165

REFERÊNCIAS ... 168

(16)

EM CASO DE EMERGÊNCIA: QUEBRE ESSE VIDRO TRINCADO EM CASO DE DESISTÊNCIA: RASGUE ESSA FOLHA

ME LEIA SE POSSÍVEL, ANTES DE MAIS NADA: É UMA ESCOLHA

Abrindo caminhos te digo logo de cara que essa pesquisa não tem introdução, porque acredito que ela começa do meio e não se introduz um meio, o meio já se pega andando. Então peço paciência ao invés de receios. Percebi também nesse processo de pesquisa que possuo uma forma “curta” de soltar as frases, tenho mania de falar pausadamente.

A minha escrita acaba se tornando então um pouco truncada, como quem quer desistir no meio do caminho da fala, desacelerar o passo, desacelerar. Mentira, isso é uma mania antiga que tenho de me justificar. Mania que veio da insegurança em escrever. Mas se a boca é ferida não cicatrizada, exposta e viva, o que a alimenta? Comida? Bebida, que desce e escorre ao avesso? A boca se alimenta de falas, descomeços. E se falo? Falo não. Você então pode me dizer:

- Fala!

A minha síntese está na antítese de sentir demais. Se falo é porque não cabe aqui nesse espaço de gente que sou. Se fala é porque transbordou. Sim, as vezes até já secou, que nem aquela saliva espessa presa no canto da boca, que fica por horas e ninguém te diz que está ali. Esse trabalho é saliva espessa no canto da boca.

E a lesma língua encorpa, encosta, lambe e a/o engole. Cospe. Funga com as suas narinas gustativas. Abocanha todo o desmantelo de não cicatrizar, porque a fala rompe a ferida, incendiária, molhada de saliva e em constante movimento. A minha fala não cala, minha fala é feita tiro de vento. Reverbera às vezes. Outras afaga. Machuca às vezes. Outras apaga. Sepulcra às vezes. Outras abestalha. Fala miúda às vezes. Fala gigante. Outras mortalha.

- Fala…

Te direi em algum momento. Fala não cicatriza, não seca, fala não é cimento. Fala é chuva de saliva, saliva escorrendo, que encorpa com o tempo. E molha essa escrita aqui. Porque esse trabalho é sobretudo sobre se curar ferida escrevendo, porque cansei de segurar ferida escorrendo...

“A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER” –

O título desta Dissertação foi inspirado no conto A gente combinamos de não morrer, do livro Olhos d’água (2014) de Conceição Evaristo, considerada como uma

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“ancestral viva” e escritora de “ficção”. Porém acredito que Conceição escreve sobre muitas verdades; Evaristo escreve sobre múltiplas pessoas, realidades, o seu trabalho diz muito sobre a diáspora forçada brasileira, necropolítica, violência, sobre a realidade da população Preta, sobre resiliência.

E pausadamente te digo que eu escrevo porque preciso, assim como Evaristo. Essa foi a forma que encontrei de não morrer, de me fazer ouvir, falar-conversar comigo, sangrar, me cuidar, mas não, não falo aqui apenas do meu umbigo (mesmo ele aparecendo muitas vezes neste trabalho). Não me coloco como ser só umbilicado e si no mundo, porque a cada texto sou uma pessoa diferente, daí que sou muitas, então escrevo de e para uma multidão. Sou um coletivo de pessoas, um mói de gente.

Escrever para sarar o quê? Ferida colonial, ancestral, é o que sei te responder por agora. Dei pra falar esses dias, inclusive.

- Fala!

Mas assumo que obviamente enquanto pessoa negra eu já me calei muitas. Já suspirei em muitas vezes sem juros também, tem dias que até pouco, juro, porque também canso de suspirar, juro, de jogar meu corpo pra lá, ali, pra’li e pra cá... Ele balança como em um navio. E de ressaca encrespo minhas palavras “negreiras”, encrespo minha jornada e encruzilhadas num mestrado em Artes Cênicas, escrevo aqui sobre Poéticas Pretas.

Quando criança eu não sabia o que era “poética” –

Definição do Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas1: Pó de ética, modo não vulgaris: poiética. Trata-se da sedimentação da ética (de si), substantivo feminino. Esse pó sedimenta querer de si, perceber-se. É a nossa essência sedimentada diante de nós mesmas/os. Poética pode ser desvio, rota alternativa. Desvios podem ser atalhos, caminhos mais longos, arrepios, desvios podem ser ruas sem saída (por que não?), podem ser daquelas jornadas longas em círculos, perdidas. Podem ser também rotas alternativas, onde lá muitas vezes encontramos aquilo que não estávamos procurando.

1 Esse Dicionário – ou Diciordinário, como gosto de chamar – foi motivado pela vontade em ressignificar algumas palavras que atravessam a minha vida de forma mais latente. Nesta Dissertação ele aparece de forma tímida, mas trata-se de um Dicionário pessoal, onde me libero a desencaixar algumas palavras que me pulsam. A partir dessas reestruturas tento me ressignificar também perante o mundo, cercando-me assim de palavras e significados menos concretos e mais maleáveis.

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Se o padrão fosse desviado, não seria mais padrão, em probabilidade matemática existe desvio padrão, mas padrão foge do desvio e vai pela rota comum. Nos desvios moram as imprevisibilidades, as erupções na pele, os buracos no chão cheios de água, os buracos com lama, os buracos de ar, os tremores, os calores insuportáveis, as camisas suadas, os sapatos desgastados. Buracos nas paredes também podem ser desvios (janelas são desvios programados). E desvio pode muito bem ser ausência daquelas expandidas que nos fazem criar. Nos desvios não moram a lisura, a perfeição, o Estado, as leis, os regimentos, os dispositivos, a cor “homem-branca-hétero-cristã”. Desvios não podem ser conceituados, se são conceituados já não são mais desvios. Porque a conceituação das coisas e das palavras já são uma tentativa de estabilização de conhecimento, de razão. Sempre ela (as janelas)! A razão está presente no desvio, mas vem sempre acompanhada de sensibilidade. É razão sensível, é sensível-racional. Então para tentar explicar sobre desvio, permita-me primeiro desviar um pouco mais (d)as palavras, já que poética é deslocamento e também desviamento. Mas nos atentemos, pois nem toda poética é desviante, mas todo desvio é poético-cambiante.

Quando criança eu não sabia o que era “poética”, mas aprendi o que era racismo. Fui racializada como “parda”, mesmo sendo “parda” uma cor que carrega em sua raiz um tom pejorativo – “suja/o” e “manchado”, fruto da miscigenação. O primeiro contato que tive com o racismo, portanto, foi dentro do meu próprio núcleo familiar. Ele me tornou tão pungente e frágil que me fechei, me omiti, me calei, fiquei quieta, não queria estar ali naquele “lugar”, por isso passei a me embranquecer na aparência, leituras, na música que escutava, nos relacionamentos que pulava, nas amizades – essas que nunca levava em casa, por vergonha do chão vermelho encerado, do teto de teias de aranha e das paredes de tijolos vermelhos-cor-de-vergonha – esburacadas – da casa minha que eu também era.

Passei a não entender quando me chamavam de “filha da empregada”, mesmo minha mãe sendo professora, porque neguei esse “lugar” pra mim; e por não ter a pele retinta – “Você não é negra, menina, você é morena, nem tem a pele tão escura assim” – tive acesso a muitos espaços brancos. Era um acesso que me feria, porque uma vez lá eu sempre senti que era tolerada e não abraçada, um brinquedinho que entretém, e por muitos anos me acostumei e usei desse papel pardo de “palhacinha” que me deram, usei

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do sorriso para não me sentir tão deslocada assim. E hoje as palavras de Carneiro (2014, p. 108) fazem muito sentido nessas minhas experiências:

A desmoralização cultural do Outro realiza a um só tempo a superlativização do Mesmo e a negação do Outro. Daí o estereótipo do negro “verdadeiro”: alegre, brincalhão, infantil, imprevidente, festeiro etc., o negro de verdade! Destinado ao entretenimento do branco. Modelo que, na busca de aceitabilidade, muitos reproduzem.

A teoria do branqueamento é defendida com unhas e dentes em países de colonização europeia, está incrustada em nossos imaginários. Dentro da história brasileira essa teoria defende o intenso processo de miscigenação, onde os descendentes de pessoas Pretas passaram a ficar cada vez mais brancos a cada geração, o que acarretou em um país com diversas tonalidades de pele – do Preto retinto ao marrom menos escuro, e nessas cores nós podemos observar e sentir os vários espectros do racismo, a depender da tonalidade.

A Redenção de Cam2 é uma realidade brasileira, onde ser branco/a é ser ideal, ser “pardo/a” ou “moreno/a” é garantir algumas vantagens e acessos à Casa Grande, ser “negro/a retinto/a” é não ter acesso à Casa Grande. No fim das contas, levando em consideração principalmente os diversos espectros desse racismo, ainda continua sendo ele: o racismo de brancos para “não-brancos”, mas recuso a estar nessa classificação de silenciamento e embranquecimento.3

As pessoas Pretas/os passam por um processo de exclusão racial sistêmico no Brasil, como modo de deslegitimar e desarticular lutas, existências, ancestralidade e fenótipos, construindo a falsa ideia de “democracia racial”; além de colocar a “pigmentocracia”4 da pele Preta como uma questão menor e não como algo que merece

2 Pintura realizada por Modesto Brocos (1895), que aborda teorias eugênicas do fim do século XIX, tratando dessa busca por meio do gradual embranquecimento das gerações de uma mesma família através da miscigenação.

3 Faz-se importante a lembrança de que a miscigenação não é um “fenômeno natural” e sim um “dispositivo de poder” (TADEI, 2002, p. 3). “Sua gênese e desenvolvimento apresentou três etapas: do século XVII a meados do século XIX tivemos a emergência de um saber sobre a mestiçagem no meio religioso, que depois se disseminou entre a população colonial, sendo acolhido pelos intelectuais e políticos brasileiros do período em questão (esse saber era favorável à miscigenação); em seguida, na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, esse saber sofreu uma epistemologização, isto é, ganhou um estatuto científico, passando a ser uma preocupação constante dos cientistas brasileiros (os vários cientistas brasileiros que abordaram esse assunto, nesse momento, apresentaram uma resistência à miscigenação), e, a partir da década de 1930, ele sofre uma reinterpretação, momento em que os principais estudiosos brasileiros do assunto passaram a destacar os aspectos positivos da mestiçagem, momento em que se consolida a ideia de democracia racial”. (id.).

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atenção pela sua complexidade. A miscigenação brasileira não é digna de orgulho, ela na realidade visa disfarçar o processo histórico iniciado aqui e que se deu através do estupro de mulheres africanas e dos povos originários desta terra, Pindorama, que em Tupy-Guarani para a linguagem colonizadora quer dizer “terra das palmeiras”.

Os anos se passaram então e eu não era mais a “filha da empregada”, eu era a própria. Eu me tornei a “mulata”, sexualizada desde a infância, entre toques e abusos. Com 19 anos fui estuprada – por um homem branco. Com 23 anos fui estuprada novamente – por outro homem branco. Tudo isso me feriu e me encheu de raiva.

Acabei direcionando por muito tempo essa raiva a mim mesma e a minha imagem. Isso significava, portanto, sentir raiva dos fenótipos que “carregava”, pois lia-os como uma carga... E repetia para mim mesma cansada, como se eu flia-osse uma navalha falha:

-Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

-Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

4 Preferi fazer uso do termo pigmentocracia ao invés do termo “colorismo” (cunhado por Alice Walker em 1982), por este trazer em sua etimologia a questão chave do contexto das construções raciais brasileiras, que se deram de formas diferentes das estadunidenses, ou seja, os das relações de poder que definem quem é mais ou menos favorecido de acordo se a pessoa tem mais ou menos pigmentação. Existe tratamento diferenciado a depender do seu tom de pele, visto que pessoas de pele menos retinta (me recuso a dizer “mais clara”, porque essa é uma maneira de afirmar que até mesmo o nosso padrão para a “negritude” parte da branquitude) são mais aceitas e possuem mais acesso em nossa sociedade; e a depender também de seu fenótipo, pois algumas características como cabelo crespo, boca grossa, nariz largo determinam como as pessoas são tratadas socialmente, sendo os/as Pretos/as de características mais “brancas”, isto é, com “traços mais afilados” possuem mais passabilidade, sendo “toleradas” em mais ambientes. O racismo que pessoas de pele mais retinta passam no Brasil é indiscutivelmente maior, e esse racismo é reforçado pelo mito da “democracia racial”.

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Eu não sou uma imagem. Me recuso a ser apenas uma. Imagine se eu cristalizo tal qual me mostro? Tal qual você me vê? Essa é a questão do momento: eu não sei como você me vê para além do ótico dessas palavras. Como você me vê se eu não sou uma miragem? Sólida? Nem concreta eu sou. Quebradiça? Nem de vidro eu sou. Às vezes 3D eu sou. Duvido que sou. Duvida?

Eu sou presença, cheiro, pele, topografia, estratigrafia, cartografia, “fía” e filha de pelos ouriçados e profundezas – até dizer chega. Não chegava, até que aprendi a partir com destino às vezes, outras vezes deixo para o aconchego do desmantelo me colocar em algum canto novo. Eu sou azeda até dizer doce. Azul turquesa até mirar no verde. Costumo ser correnteza até evaporar na imagem que construí e construíram de mim.

Sou uma mulher estranha, de hábitos de estanho, escritas, descritos e enrolados que nem meus cabelos ralos e castanhos. Também rimo como posso e ando na velocidade que me permito. Não sou uma imagem, percebe? Sou dentro-fora, às vezes dentro e fora do meu umbigo. Sou uma viagem, percebe? Aqui e agora, às vezes vivo nas viagens que imagino. E rimo, rimo como quem passa… E às vezes não rimo, porque rimar demais perde a graça. O clima, imagino.

A verdade é que agora eu poderia estar dormindo, não literalmente, sim numa espécie de torpor, de dormência, como as das minhas mãos e pés (às vezes acordo sem sentir as minhas extremidades, sintoma da anemia). E acho que só não prego os olhos porque preciso colocar as pregas vocais para te dizer agora que eu não sou projetável, apesar de lançar alguns projéteis aqui neste trabalho, então só me injete se quiser me conhecer para além de uma imagem...

Sim, acredito que toda imagem tem fim quando a vista da imaginação acaba. Acredito que eu possa ser uma imagem também, mas dessas com textura, falhas, borrada, tem dias que nublada, dias de altíssima qualidade, imagem, inclusive, pixelada. Mas nunca uma imagem “menor” por causa de um fenótipo. E para além da imagem: o que é que sobra? Costumo acreditar que as dobras; essas muitas que fiz de mim.

Este trabalho tem algumas dessas dobras, diáspora minha.

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AINDA NÃO ENCONTREI UM TÍTULO QUE COUBESSE AQUI

No ano de 2018 eu ofereci este trabalho em uma encruzilhada, esta que uso como reversão metodológica para essa pesquisa. Encruzilho nela autoras/es nas minhas escrevivências e assim as performo (seja vivendo, escrevendo e na confluência disso), nessa busca em romper o campo do “ex-ótico” das subjetividades das Artes Cênicas.

Esse campo caminha dentro de uma regra de humanidade branca, onde nele as dicotomias “razão” e “emoção” ainda imperam – associando a razão à “branquitude” e a emoção ao que é Preto.5 Não temos que “ocupar” lugares nem dicotomias. Podemos circular e estarmos abertas/os ao que as encruzilhadas nos trazem e propõem.

Esse trabalho não possui capítulos, são projéteis – e ainda não sei se é azar ou sorte ser atingida/o por eles. Projétil é o que é disparado – projetado – de uma arma de fogo e assim escolhi fazer essa substituição de palavra como parte da reversão metodológica dessa escrita. A estrutura ainda se assemelha a de capítulos, pois ainda são divisões de um trabalho que separam noções e conceitos, organizando esse todo. Quero vazar disso, mas por enquanto ainda sigo esse modelo de encapsular as palavras.

Segundo o dicionário convencional, pois para falar em bala é melhor falar pela voz do algoz que a dispara, projétil é qualquer sólido pesado que se move no espaço. Um projétil se abandona quando é disparado, logo após receber um impulso (dedo apertando o gatilho). O projétil é o que envolve a munição que atravessa a carne, é ogiva de chumbo em combustão com a pele.

Projétil talvez faça mais sentido do que a palavra capítulo, pois disparo aqui questões que trato tal qual bala, questões que lamentavelmente atravessam não apenas metaforicamente corpos Pretos. É sobre reverter a bala que nos atinge com projétil-palavra. É sobre embalar palavras.

No Projétil 0 – Cartucho vazio ou bala de borracha introduzo a noção de Poéticas Pretas enquanto objeto desta pesquisa. Disserto sobre esse enquanto veneno-antídoto desta, pois trata-se de falar sobre epistemicídio através das próprias escrevivências performáticas de uma atrizta pesquisadora. Também falo nesse projétil sobre alguns “procedimentos” dessas escrevivências. Essa “parte zerada” é pulsão do tiro-dissertativo, é vontade, “o antes”, por isso que está em estado zero, mas isso não significa que ele seja nulo, ele é apenas “antes”.

5 Geralmente a emoção é atribuída às pessoas Pretas e mulheres. A razão fica a cargo da masculinidade branca.

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No Projétil I – Ainda não encontrei um título que coubesse aqui, discorro sobre a metodologia escolhida para essa pesquisa, a encruzilhada (MARTINS, 2002), que pode ser vista também como um modo de organização menos metódico para se pensar as Poéticas Pretas em cena/texto/performance. Essa pesquisa é movida pela noção de “encruzilhada” e tem como um de seus procedimentos a criação de um “experimento performático”, que se trata dessa voz que você está lendo agora na sua cabeça. A cabeça é sua e a voz é a minha, mas que pode ser a sua também – vai depender do elo que construirmos aqui.

Este trabalho carrega uma escrita ou oralidade ou um cerne ou corpo performativo em sua genética. Essa reversão metodológica apresentada conversa com discussões a respeito da produção de subjetividades Pretas, no que chamo aqui nesse trabalho de Poéticas Pretas, que laboram com uma estética Preta e com um erotismo Preto.

Trata-se de uma escrita da experiência encruzilhada, de uma escrevivência repleta de singularidades atravessadas por nossa cor, que acaba potencializando de certa forma os desvios necessários para um desencontro com estereotipias raciais dentro e fora de “cena”. Para isso, nesse Projétil encruzilho autoras/es como Leda Maria Martins (2002), Malcolm X (2018), Abdias do Nascimento (1980), Sueli Carneiro (2003), Conceição Evaristo (2007), bell hooks (1994), Audre Lorde (1978), Toni Morrison (2011) e Alice Walker (2018).

Nesse primeiro Projétil discuto sobre a necessidade de “ferramentas” como o afeto e o cuidado para a manutenção das nossas escrevivências e também como modo de autopreservação ao ódio, pois torna-se importante lembrar que nenhuma luta política, e, portanto, artística se faz pelo ódio. Ela pode ser feita e impulsionada pela raiva, que inclusive pode nos ajudar a desestabilizar a hegemonia branca.

É sobre ela – a raiva – que dissertamos no Projétil II, intitulado de Reiva. É relevante destacar a diferença entre essas duas “ferramentas”, pois o ódio é a “ferramenta” usada pela própria hegemonia para manter o controle sobre os nossos corpos, ele nos leva a não nos percebermos enquanto sujeitos desse processo, diferente da raiva que pode ser usada como potencializadora para os nossos escritos. Assim sendo, no segundo Projétil encruzilho a raiva nas e com as minhas escrevivências; encruzilho a minha voz rouca com as vozes de autores como Audre Lorde (2018) e Frantz Fanon (2008).

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No Projétil III, intitulado ¿Y si muero aquí? encruzilho a primavera da autora quilombola Lélia Gonzalez (2018) com a afromexicanidade de Juliana Acevedo Ávila (2018), problematizando a questão da miscigenação em nossas subjetivações, exaltada pelo mito da “democracia racial” – no caso brasileiro – e da mestiçagem – no caso mexicano, dissertando assim sobre o contexto dessas duas diásporas, tão distintas e próximas em suas respectivas colonizações luso-espanhola. Para falar da necessidade dessas fraturas-resistências diaspóricas que são os quilombos, inclusive, como “resposta” às fabulações que são a raça e o racismo (MBEMBE, 2016), encruzilho, no terceiro Projétil, a noção de Poéticas Pretas com a necroperformance ¿Y si muero aquí?, que realizei México6; e conceitos como quilombismo de Abdias do Nascimento (1980) e o corpo-quilombo de Beatriz Nascimento (Apud RATTS, 2007).

Nós precisamos mudar o nosso mundo e não apenas a visão que temos sobre ele. A nossa escrita é potente porque ela parte do que vivemos, são “ficções reais” que tocam dentro e fora de “cena”, dentro e fora desse campo extraordinário, as nossas vivências ordinárias, extraordinárias num campo não mais tão ordinário. É sobre a necessidade e a fome de escrita que o Projétil IV, intitulado de A gente combinamos de escreviver disserta. Fala-nos sobre a morte dessa escrita através do epistemicídio, que é a forma de negação (anulação) a uma educação de qualidade, e, portanto, gerador de uma inferiorização intelectual, deslegitimando saberes, subjugando nossos conhecimentos, à medida que cerceia e tolhe a nossa racionalidade, forma de degradar e rebaixar a nossa capacidade cognitiva. Para falar sobre tal assunto peço emprestada a voz e presença de Sueli Carneiro (2005), ela está de pé numa encruzilhada, conversando com Achille Mbembe (2018) e com o seu conceito de Necropolítica. Ambos falam sobre uma política de morte, assim como Conceição Evaristo (2014) em seu conto A gente combinamos de não morrer. Os três em pé numa encruzilhada. Nós quatro. Cinco agora.

Seguindo o curso nos deparamos com o despacho deste trabalho – intitulado de Para quem essas mãos apontam? Nele são feitas algumas considerações sobre essa pesquisa e o seu/meu futuro, sobre o salto, sobre a necessidade do pulo, sobre os vários tiros disparados no escuro. São desmontes de saúde, educação, mas mais do que isso é desmonte de gente. É “desmonte” antigo e tem sua (a)fundação no processo de

6 Tratou-se de um Intercâmbio de Estudos que contou com um programa de atividades que foram desenvolvidas entre os meses de agosto a novembro de 2019, sob orientação a distância da Profa. Karyne Dias Coutinho (UFRN) e orientação in loco da Profa. Itza Amanda Varela Huerta (Centro de Investigación y Estudios Superiores en Antropología / CIESAS – Pacífico Sur).

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colonização, escravização de pessoas africanas e dos povos originários; ele tem continuidade no “pós-abolição”, nas favelas e comunidades que nesse desmonte secular foram montadas, amontoadas e disparadas, porque são alvos do que não presta: polícia, violência, fome e esgoto a céu aberto.

Inicialmente, nos anos de 2017 (onde submeti o projeto para a pós-graduação em Artes Cênicas) e 2018 (primeiro ano da pós-graduação) resolvi trabalhar com “poéticas de gênero” como objeto desta pesquisa, por também ser uma temática que eu já vinha dialogando durante a graduação em Teatro (2013-2016).

Nesse percurso fui pesquisando outros significados para “gênero” –

Definição do Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas Genealogia das “pulsões de vida”; modo não vulgaris: gerar a si.

“Como gerador de identidade?”, me perguntaram. Fiquei na dúvida, mas respondi que sim, porque era a forma que me desenformava sempre: fofa, caída e quente – tão quente que dói ânus, estômago, dói até meus dentes. Só dói. Mas no fundo algo me incomodava. “Identidade de gênero”, ela reportava – não tinha saída. Era isso. Daí que resolvi pensar sobre essa dor: “por que dói?”; “por que transformaram a minha vida em dor?”; “como gênero faz parte da minha identidade?”, perguntei, ela perguntou. Ela (que disseram que era eu). “Só faz”, responderam. Mas não criei essa identidade. Ela estava aqui quando afirmaram o seu/meu gênero num consultório asséptico, sempre contra a sua-minha vontade, isso depois veio a se tornar um hábito, me ensinaram como uma verdade: a única. O costume de forçar. O gênero nasceu antes de mim, foi gestado (genus) com cinco meses de vida em casulo. E antes, quem diria, eu era só um microcosmo que passava meus dias no saco escrotal do meu pai. Uma ejaculação transforma vidas, isso é bem verdade. Eu era Pangeia antes e logo depois, em questão de instantes me tornei uma placa tectônica. Correr daquele saco foi o meu primeiro conflito existencial. E depois de anos te digo, ser placa tectônica me trouxe experiência em conflito, ser placa de gênero feminino – que “naturalmente” é inferiorizado em detrimento do gênero branco masculino. “Gênero como identidade?”, insistiram. “Menina ou menino?”. Voltei atrás… “Gênero como poética é que me satisfaz”, pois já que ele está aqui dentro desse mecanismo emaranhado e sem sentido, com cheirinho podre de patriarcado e racismo, o uso como criação e recrio gênero por masturbação de palavras, movimentos, siririco o que vejo e sinto. Quando perguntam meu gênero,

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respondo então:

- Estou “mulher-moça-rapariga-menina-entendida-por-muitos-como-dona-de-uma-energia-unicamente-feminina” – e isso não me dói mais, mas na maior parte do tempo

estou com energia “tectônica”, a energia do meu nascimento – depois que fui fecundada, depois de nadar quilômetros, suada de placenta, aguada, coberta e barrenta. Complexa do plexo pequeno. Mas cansei de enrolar gênero, então voltei atrás:

gênero como poética é que me satisfaz!

Neste percurso (2013-2018) comecei a perceber mais as questões de gênero que me atingiam, bem como passei a escrever sobre elas – vociferar meu silêncio, experimentá-las cenicamente também no meu corpo-cotidiano-extra-cotidiano. Senti a necessidade de entende-las de forma mais fluida e poliforma, ou seja, trabalhar o próprio gênero de modo a me desviar de alguns estereótipos que sancionam e fixam-no em um padrão binário, este que é portador de energias “femininas” (em que são remetidas a características como sensibilidade, cuidado, afeto e passividade) e/ou “masculinas” (ligadas à produção do conhecimento, força, virilidade e agressividade). Fui percebendo então nesse processo as dissonâncias que conflitavam com a minha própria existência.

Para tornar as coisas mais “claras”, nós podemos ler os estereótipos mencionados no parágrafo acima com a seguinte legenda: “estereótipos brancos de gênero”, pois são bem diferentes quando os olhamos pelo contexto racial, pois às mulheres Pretas geralmente lhes é tirado o afeto e lhes são remetidos estereótipos ligados à força, agressividade e sexualidade/subserviência, sendo-lhes exigida também a passividade, algo que também é remetido aos homens Pretos (levando em consideração as próprias nuances do machismo), porém a esses é majoritariamente negada a produção de conhecimento tão presente no meio masculino, que continua sendo hegemonicamente branco.

Obviamente não tinha como partir apenas do gênero nessa pesquisa, pois para a população Preta esses marcadores funcionam de formas bem diferentes das disseminadas, inclusive pelo Feminismo, por exemplo, visto que esses marcadores ocidentais não dão conta de abraçar as vivências e opressões que vivemos em decorrência do racismo. Mesmo o Feminismo Negro e/ou Interseccional, por terem em

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sua base uma ideologia que não foi feita por e para pessoas africanas7 também não atendem a população Preta de forma mais integral e holística. Torna-se importante destacar que para as mulheres brancas o Feminismo é extremamente necessário.

Mas tampouco disserto neste trabalho sobre “Feminismo Negro” ou “Interseccional”, na realidade converso nessa escrita com autoras reconhecidas como feministas que discorreram ou discorrem sobre vivências Pretas de gênero. Essas que antes de mais nada são atravessadas por opressões raciais e constroem em suas epistemologias a importância da construção de subjetividades Pretas como modo de afeto, autonomia e potência.

As teorias pertencentes à natureza particularizada das experiências das mulheres africanas têm sido largamente insuficientes. Aqueles relacionados com a tradição feminista, tanto branca quanto negra, criticavam as condições sociais das mulheres no seio das sociedades europeizadas e buscavam soluções dentro de paradigmas europeus. Fugindo desse padrão, a teoria do mulherismo africana (1993) de Hudson-Weems analisa criticamente as limitações da teoria feminista e ajuda a explicar, de forma abrangente, as ideias e ativismo de algumas mulheres africanas que contribuíram para a teoria womanist (mulherista) de diferentes perspectivas ideológicas. Desta forma, ela começa a construção de um paradigma afrocêntrico que tenha as reais condições de abranger o ativismo de todas as mulheres africanas, reconhecidas ou ignoradas, que lutaram para libertar africanos em uma escala global.

Me identifico como mulherista africana e essa escrita dissertativa também acompanha um processo de amadurecimento ao longo desses dois anos. Trata-se de um processo de resgate e emancipação, implícito de muitas formas aqui neste trabalho, porém optei por não discorrer aqui sobre esse processo nem tampouco explanar sobre esse paradigma, mesmo ele estando latente aqui de outras formas. Porém achei importante mencioná-lo e assumi-lo enquanto uma parte inteira desse trabalho e das escrevivências presentes, optei por afirmá-lo principalmente porque ainda se possui o hábito de ligar discussões sobre raça e gênero a teorias feministas ou teorias “feministas negras”. Então te reafirmo que não, não é sobre isso.

7 “O conceito africano é usado para descrever mulheres, homens e crianças, que são pessoas africanas continentais ou membros da diáspora africana, isto é, pessoas que vivem em sociedades europeias ou europeizados fora do continente. Este conceito reconhece a especificidade cultural e experiência dos diversos povos africanos. Por causa da necessidade da ‘intelligentsia’ europeia em distinguir tipos humanos como raças, os povos africanos foram categorizados como sendo da raça negra, que pode variar do preto ao marrom. Dimensões psicológicas, distinções culturais e atributos físicos e mentais têm sido atribuídos às assim chamadas raças para diferenciá-las em uma escala hierárquica. No caso deste trabalho, africano tem um valor genético que liga aqueles que carregam as características físicas, mas, mais importante, oferece o potencial de conectar essas características para um sistema de valor cultural que venera a humanidade africana”. (DOVE, Nah, 2018, p. 136).

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Então a escrita aqui compartilhada não se trata de uma arte que fala apenas sobre gênero, “políticas de gênero” e/ou “identidades de gênero” associadas a modos de existência, pois isso pode se confundir pelo fato de eu ser uma mulher e tudo o que eu escreva necessariamente entra nesse marcador ocidental de gênero que me perpassa, até porque de modo geral esse tipo de arte/escrita imprime também todo esse imaginário que a envolve. Quando me refiro a gênero ele não será o destaque, mesmo que faça parte substancial deste trabalho, pois afinal são como as minhas vivências se inscrevem, são como construíram e como construí as minhas subjetividades diante de uma sociedade patriarcal; quando destaco esse conceito na minha produção artística, não o trato apenas como “identidade social”, filha também de um contexto histórico e cultural; a minha intenção é utilizar o termo “gênero” também enquanto remanescente de um contexto de exploração e imposição coloniais, por circunscreverem em si as mesmas bases do racismo.

Na minha escrita dou preferência a um gênero perpassado também por essa poética, foi a maneira que encontrei de transvê-lo, colocando no jogo dessa criação e recriação, assumindo-o na minha performance/escrita não como um fator de apagamento do gênero e das vivências masculinas Pretas, nem tampouco ignorar os resultados do patriarcado ocidental e as inferências desses sobre as vivências masculinas que afetam diretamente as vivências femininas de pessoas Pretas / negras.

Este trabalho não é sobre gênero, mas também é sobre isso, pois o “gênero” da forma como se construiu é hegemônico, branco e ocidental. Para além disso, quero destacar nesta pesquisa sobretudo questões sobre a produção artística que remetem a uma Poética ou a Poéticas dos nossos corpos.

Esse trabalho é assim meio forçado – diáspora minha, porque força e também me recobra: força!

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PROJÉTIL 0 - CARTUCHO VAZIO OU BALA DE BORRACHA Somos feitos/as de:

- carne; - terra; - e osso. Mas a gente se conforma em ser migalha, rala, presa no bolso. A gente se espanta com o tamanho da explosão, com o pipoco! A explosão de sair da casa-bolso, a explosão de não esperar

nem mais um pouco. Renasço então coberta de placenta e ando nos encantos do ressurgir... A lacraia do olho, inconformada com a saída de bolso, se achega, vem em passos rápidos, pequenos (ti-ti-ti-ti-ti-ti) e se aconchega na carne podre do conforto. Espalhando veneno, obsidiana lacraia... Ela é escroto! Caroço-olho, caroço que engole caroço. A lacraia (pra quem ainda não sabe) é pessoa

putr_enfarta: pode ser homem pode ser mulher pode ser bicho, é peso sem fluência... Um misto,

de coisa que engasga, delito,

desconforto. Ela me engole, me cospe... e diz:

- Volta pro teu lugar, infeliz... Volta pra casa-bolso!

Migalha amassada! Migalha da migalha da migalha,

seu filhote de esgoto!

Choro e respondo: - Uma porra que volto... nem mais um pouco!

Sou então forçada, arrastada,

carregada por aquele caroço-escroto... - Voltei, voltei pro casa-bolso. E na pira da respira, penso, a saída agora não é por fora é por dentro. Por dentro da carne,

é por dentro do osso!

Choro mais e escavo a terra-corpo,

escavo

e vou como sopro, vento fininho, fraco...

no oco!

Vou tomando força, e na pira da respira o sopro fino vira sopro grosso, rajada de vento... Sopro-pipoco! Sopro-furacão, sopro-tornado! AR SOPRO... A lacraia-caroço! Que se desfaz, esvai virando pó de osso. “É só sóbrio você!”, disse a consciência retomada, indomada agora... - É só bril... Brilho de olho, o seu brilho, ela disse. E a ilha do olho se enxágua e deságua no oco do caroço... Sim, nós somos feitos de: - carne; - terra; - osso; - de placenta; - somos feitas de sopro!

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Eu acredito que um navio perdido, conduzido por navegantes cansados e mareados ainda pode ser guiado para atracar em casa.

(Assata Shakur)

A “atriz-ta” entra em cena e, mesmo sem abrir a boca, a sua presença já diz algo, ainda que silenciosamente. Ela carrega estereótipos em si, eles estão fixados ao longo de todo o seu corpo: da sua altura ao seu peso, dos seus curtos cabelos ao seu gênero, e essas características dentro dos estereótipos disseminados na sociedade em que vivemos demarcam também, grosso modo, sua orientação sexual. “Nela” antes da presença, do gênero, sexualidade, da sua massa adiposa, postura, caminhar – antes ela fosse só uma voz, sem cor, porque o que importa aqui nesse caso é a cor e não a sua voz… A cor… Ela é negra! “Espera, nem tão negra assim”.

Mas nessas folhas (brancas) não quero usar essa palavra padrão para destacar a “negritude”, porque essa palavra nos lembra apenas de quem somos (ou no caso quem nos ensinaram a ser) no hemisfério ocidental pela tutela do homem branco, antes e depois de sermos sequestradas/os.

Nós fomos cientificamente produzidos pelos homens brancos. Sempre que você vê alguém que se chama de Negro, eis um produto da civilização ocidental – não apenas da civilização ocidental, mas também do crime ocidental. O Negro, como é chamado ou se chama no ocidente, é a melhor evidência que pode ser usada contra a civilização ocidental hoje. Uma das principais razões pelas quais somos chamados de Negros é que não saberemos quem realmente somos. E quando você se chama assim você não sabe o que é seu. Contanto que você se chame de negro, nada é seu. Sem idiomas – você não pode reivindicar idiomas [...], você estraga tudo. Você não pode reivindicar qualquer cultura uma vez que usa a palavra “Negro” para se identificar. Ela não atribui você a nada. Nem sequer identifica a sua cor. (X, Malcolm, 2018, p. 26).

Porque Preto tem raiz, mas Negro é “árvore sem raiz”, árvore seca de tanto ser comida por cupins, comida e sem história antes de virar comida, árvore morta culturalmente, pois “não existe uma cultura Negra, ela não existe. A terra não existe, a cultura não existe. A terra não existe, a cultura não existe e o homem não existe. Eles tiram você da existência chamando-o de Negro” (id, p. 27).

Li um dia desses que “no Brasil ser ‘negro’ é uma escolha”. Temos que problematizar essa escolha, porque simplesmente é problemático “escolher ser negro”, se existe uma parcela da população que escolhe existe outra que não escolhe, então “ser negro” entra também como algo impositivo. A “negritude” foi construída e esboçada

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para ser um fardo. O “pardo” é esse fardo do Brasil, o filho bastardo depois do estupro. O Preto é o fardo que o Brasil não quis assumir. A/o “negra/o” foi construída/o para cercear.

Torna-se importante ressaltar que o contexto racial de Malcolm X é bem diferente da experiência brasileira, visto que a primeira, estadunidense, tem uma leitura binária e fixa a respeito de raça, já no Brasil essa leitura só começou a ocorrer a partir da década de 1970, com o aumento da desarticulação de celebração da mestiçagem, assumindo assim um modelo político mais bipolar (branco-negro).8 É interessante destacar que Pretas/os estadunidenses, por causa desse apartheid assumido, sempre souberam e se reconheceram como Pretas/os, já que essa questão lá é lida pelo viés da própria cor e da ancestralidade (genética). No Brasil, devido ao processo de miscigenação essa “identidade” Preta foi “espalhada”. Arrancaram as folhas, os galhos, o caule, e antes tivessem deixado apenas um toco com raízes apodrecendo, mas não, também arrancaram as raízes9.

Dentro do contexto estadunidense existem muito discursos políticos e uma produção de conhecimento intensa de Pretas/os reivindicando um retorno à África, o discurso brasileiro geralmente se centra numa questão mais identitária, ou seja, lutamos para nos reconhecerem e nos reconhecermos enquanto “negros e negras”, lutamos por uma participação na sociedade, pois o que nos chegam são migalhas disfarçadas de “democracia racial”10.

Nós, os negros, temos sido forçados a esquecer nossa história e nossa condição por um tempo demasiadamente longo. Por que ficarmos quietos, silenciosos, e perdoarmos ou esquecermos o holocausto de milhões sem conta - cem, duzentos, trezentos milhões? – de africanos (homens, mulheres, crianças) friamente assassinados, torturados, estuprados e raptados por criminosos europeus durante a escravidão e depois dela? [...] Podemos ler as páginas da história da humanidade abertas diante de nós, e a lição fundamental que nos transmitem é de

8 “O combate à discriminação racial e a denúncia do mito da democracia racial, ao mesmo tempo em que busca a afirmação de uma identidade racial negra positivada, como no poema de Solano Trindade, são características fundamentais do movimento negro contemporâneo que constituiu no Brasil na década de 1970. Naquele momento, a opção pela utilização da ideia de raça como um instrumento para construção de uma identidade negra positiva, e com o objetivo de combater as desigualdades estruturais que atingiam a população negra no Brasil, foi uma saída encontrada pelo movimento social negro que se constituía em meio às propagandas oficiais da “democracia racial” brasileira [...] Nesse sentido, o racionalismo presente nos discursos do movimento negro contemporâneo é evidente. Abordando um outro aspecto à questão racial, e falando sobre a validade da utilização da ideia de raça no Brasil”. (CABRAL, 2010, p. 61). 9 Mas não contavam com as sementes caídas naquele solo seco. Germinamos.

10 Gilberto Freyre “[...] teria sido o criador do conceito de ‘democracia racial’, o qual agiu como principal impedimento da possibilidade de construção de uma consciência racial por parte dos negros” (SOUZA; Jessé, 2000, p. 136).

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uma enorme fraude teórica e ideológica articulada para permitir que a supremacia ario-euro-norte-americana pudesse consumar sua imposição sobre nós; e seu dictate econômico, sócio-cultural, ideológico e político nos modelasse qual uma camisa-de-força inevitável. Sob a lógica desse processo, as massas negras do Brasil só têm uma opção: desaparecer. Seja aniquiladas pela força compulsória da miscigenação/assimilação, ou através da ação direta da morte pura e simples. [...] De nossa perspectiva, no que se refere a certos objetivos, a luta do negro brasileiro difere da luta de seus irmãos afro-norteamericanos. Aqui nos Estados Unidos ele é uma minoria rodeada pela sociedade majoritária branca racista. No Brasil, debaixo das variadas gradações de cor epidérmica, as massas de descendência africana – os negros – somam a maioria absoluta do povo brasileiro. Se abandonarmos os estilos de raciocínio inerentes a cada um dos grupos dominantes, verificaremos que o Brasil pratica na América do Sul, uma política racial de conteúdo e consequência racistas – discriminatória e segregacionista – baseada no exclusivismo branco-minoritário exatamente nos moldes daquela praticada pelos aparteistas da União Sul Africana. (NASCIMENTO, 1980, p. 22).

É importante ressaltar o contexto brasileiro, pois é o que vivo/vivemos, para além das palavras são as vivências nas ruas, para além dessas folhas são as vivências em nossas casas, com os nossos familiares, amigos, patrões (senhores e sinhás) que ferem a nossa existência e nos impulsionam ainda mais a uma busca e afirmação por uma “identidade”, dentro e fora do contexto da miscigenação.

Portanto, mesmo diante do processo de busca identitária do contexto brasileiro, da importância dentro dos meandros de como se construiu a colonização e principalmente como se deram as políticas raciais pós-falsa-abolição, mesmo diante dessa necessidade de nos reconhecermos e nos entendermos enquanto “negras/negros”, opto por usar neste trabalho a palavra Preta/Preto. Porque Preta/o é linda/o!

Perceba que a necessidade não mudou com a troca de palavra, ela (ainda) permanece aqui tão intacta como a necessidade que tenho de escrever – e eis o que quero nesta escrita dissertativa, trocar as palavras, invertê-las, desencaixá-las, se possível. Descabê-las. E descabelada te digo que as rupturas nessa identidade precisam continuar emergindo, até porque “o/a negro/a” não é um sujeito estático, fixo. É necessário reelaborarmos nossos discursos e práticas, porém tendo sempre em mente o contexto da diáspora brasileira de desumanização do povo Preto e da construção de uma escala pigmentocrática ao longo desses mais de cinco séculos.

Trata-se do velho mito da democracia racial disfarçado com anos de eugenia brasileira. Eugenia: ingenuidade ou ignorância opressiva? A segunda opção sem dúvidas, já que todas as pessoas brancas nesse constructo social ocidental, e, portanto,

Referências

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