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3 ESTIGMATIZAÇÃO LGBT E SELETIVIDADE PENAL

3.4 Arquétipos criminais LGBT

Comportamentos desviantes do padrão heteronormativo, no imaginário social, estão historicamente associados a conceitos de perigo, degeneração, desordem, trapaça, doenças, contaminação, sexualmente predatórios, predação, depravação, subversão, transgressão, deslealdade e violência. Tendo como fundo o cenário norte- americano dos primeiros anos da corrente década que Mogul, Ritchie e Whitlock (2011, p. 23) escrevem do eterno espectro de criminalidade que permeia a vida desses sujeitos. Essas narrativas não só incitam respostas grutais — subconscientes ou não

19Disponínel em: <https://www.nbcnews.com/politics/immigration/22-immigrants-died-ice-detention- centers-during-past-2-years-n954781> Acesso em 5 de agosto de 2019.

— como influenciam diretamente no tratamento que lhe é conferido pelo Estado, nas políticas públicas que envolvem pessoas LGBT, e, como é o foco do estudo, na justiça criminal. Tamanho o enraizamento dessas concepções no imaginário social, produzem narrativas tão fortes, tão convincentes, que os autores, em detrimento do termo “estereótipo”, argumentam para a caracterização de verdadeiros arquétipos criminais, em analogia à psicologia junguiana.

Esses arquétipos criminais — que também são produtos de aspectos criminalizadores de raça, gênero e classe — compõem controladas estruturas narrativas, que preconizam como serão interpretadas essas pessoas, de forma pré- determinada, independentemente das suas circunstâncias ou realidades particulares. Assim, o que buscam tornar criminal aqui não é a conduta delitiva, e sim, a própria identidade, a própria expressão das suas singularidades, sua expressão enquanto sujeito LGBT. São, então, independentemente de qualquer conduta delitiva que tenham vindo a praticar ou não, submetidas a policiamento e a criminalização (MOGUL; RITCHIE; WHITLOCK, 2011, p. 24).

Fundamental a compreensão de que esses arquétipos não ocorrem, no geral, a partir de ativa e consciente fobia, de ódio pessoal, mas sim, como resultado de concepções sociais que são estruturantes das instituições de poder, como será explorado no capítulo seguinte. A violência aqui analisada, é, inegavelmente, uma violência, porém, não é aquela perpetuada por indivíduos ou grupos particulares — por mais que venham a lhe endossar e reproduzir — mas sim, uma violência sistemática, advinda do próprio Estado e reforçada pelas instituições penais.

O processo penal tem muito bem definidos os perfis e sujeitos que podem ocupar a posição de “vítima”, ter suas garantias e proteções tuteladas, e os que podem estar no polo do réu, que sofrem toda a força da punitividade vingativa estatal sem significativos freios. A gays, lésbicas, bissexuais, pessoas transsexuais e travestis, especialmente pobres ou negras e negros, não é dado o “benefício” de serem vítimas, e sim, são personalidades previamente criminais por si só. Crimes praticados contra esses sujeitos são largamente ignorados, porém, enquanto réus, são brutalmente penalizados. Essas potentes narrativas são propagadas por meios de comunicação

em massa, por programas policialescos, por produtos de entretenimento20 e pelas mais diversas práticas culturais, e fundamentam políticas criminais e de segurança.

Mogul, Ritchie e Whitlock identificam alguns desses arquétipos criminais de sujeitos LGBT, que têm uma estrutura basilar e ressonância, mas não são exaustivos ou fixos, e sim, fluídos e adaptáveis. Assim, estudar esses arquétipos pode ajudar a entender como essas imagens estão embrenhadas no imaginário coletivo, nas políticas públicas e práticas institucionais, tomando-os como ponto de partida, procurando trazer do cenário norte-americano, quando possível, para a realidade dessas populações no Brasil. Os autores listam cinco desses arquétipos: o “assassino gay”, o “predador sexual degenerado”, o “disseminador de doenças”, a “ameaça à segurança” e “jovens gays delinquentes” (MOGUL; RITCHIE; WHITLOCK, 2011, pp. 23-43).

Ao torturar e matar, não só pela sua pura euforia erótica desses atos, o “assassino gay” estaria em uma cruzada para aniquilar seus inimigos heterossexuais, seus parceiros e amantes que os decepcionam ou ainda quaisquer outros que fossem um obstáculo à realização dos seus “desejos pervertidos”. Narrando casos brasileiros de tratamentos conferidos por instituições jurídico-psiquiátricas a homossexuais, Trevisan argumenta que são os próprios aparatos punitivos e repressivos que tanto se debruçam sobre sujeitos LGBT os conformam nas situações criminalizadas:

Ora, nenhuma homossexualidade nasce em crise; antes, torna-se conflitiva no contexto social, inclusive como resultado do pânico sofrido pelas condenações (ancestrais e atuais), que foram internalizadas. Assim, a atitude “curativa” e punitiva perante a homossexualidade esquece convenientemente que os “pavorosos crimes” porventura cometidos por homossexuais são resultantes perversos menos da “perversão sexual” em si do que da situação trágica em que o desejo desviante tem sido envolvido pela repressão social, durante séculos. Legisladores, médicos e psiquiatras que atormentam com tanta obstinação a vida de homossexuais são, na verdade, a própria causa dos males que combatem: a homossexualidade não seria problematizada se

20A título de exemplo, existe um recorrente o uso de vilões que são queer coded em produtos de entretenimento, especialmente, infantil. “Coding”, “codificar”, é uma atribuição de elementos em obras de ficção que denotem estereótipos bem firmados e facilmente reconhecíveis pelo espectador, geralmente, para transmitir de forma mais clara uma ideia. Assim, para que toda a “vilania” do antagonista seja facilmente identificada, não é raro que a ele sejam atribuídas características de estereótipos — estéticos ou comportamentais — de gays, lésbicas, ou até drag queens (nas animações da Disney, Ursula, Scar, Hades, Governador Ratcliffe são exemplos clássicos desse queer coding). É um percurso fácil para o imaginário comum fazer a associação imediata desses atributos a alguma forma de degeneração moral intrínseca.

eles não a tornassem (ou definissem) como “um problema” (TREVISAN, 2018, pp.197-198).

Pessoas LGBT são ostracizadas por serem uma eterna ameaça, não só a crianças e adultos inocentes, mas à normalidade, a seus futuros promissores e a rígida ordem social, de gênero, raça e classe que essas vidas inocentes representam. O “predador sexual degenerado”, comumente, o homem pedófilo; o estuprador na prisão; o homem gay promíscuo; a travesti que atrai seduz homens pela sua personificação de gênero. Qualquer ato de crime sexual implicados a esses sujeitos funcionam como uma reafirmação do que seria sua invariável “desviância sexual” (MOGUL; RITCHIE; WHITLOCK, 2011, pp. 31-34).

Enquanto “disseminador de doenças”, pessoas LGBT são vistas como verdadeiros corpos “infectados”, cuja presença, literalmente e figurativamente, contamina. Sendo a figura do homossexual que alicia outros inocentes desavisados para seu estilo de vida sempre presente, as crises de saúde causadas pela AIDS que deram novo fôlego a velhas narrativas. Doenças de massa, vistas sob o prisma da religiosidade ocidental, são associadas a pestes, a castigos divinos, e doenças infecciosas historicamente ligadas a sexualidade (como a sífilis e a tuberculose) também evocam no imaginário popular a imagem de uma “culpa moral”, que teria o acometido, alguma responsabilidade pela sua própria enfermidade (TREVISAN, 2018, pp. 319-400). No Brasil, o pânico, de caráter higienista, instaurado serviu também de eficiente instrumento de controle, através de um verdadeiro terrorismo moral instalado na consciência do corpo social brasileiro, além de desabar sobre a população gay uma responsabilidade sobre a saúde pública, essa que ela parecia tanto ameaçar (TREVISAN, 2018, pp. 402-403).

Pela sua natureza, sua própria existência subversiva, que nega valores tradicionais, esses sujeitos encarnam a “ameaça à ordem pública” tão recorrente nos discursos legitimadores do encarceramento — especialmente preventivo, como já discutido anteriormente — no judiciário brasileiro. Apresentam eles um eterno perigo à família, às comunidades e às nações.

A presença de jovens LGBT em espaços públicos é razão suficiente para contê- los, pois eles já posam uma ameaça, sendo então necessária intensificada repressão policial e assédio. Especialmente jovens negros (e imigrantes, no caso norte americano) são demonizados enquanto predadores, violentos e hipersexuais.

Tais arquétipos criminalizadores dificultam a observância das prerrogativas legais desses sujeitos, e afetam diretamente como são vistos perante o sistema de justiça criminal, especialmente em crimes de natureza sexual, sendo homens gays, por exemplo, quase automaticamente considerados culpados de qualquer ato sexual que lhe implicam, segundo pesquisa norte-americana de 1998 (MOGUL; RITCHIE; WHITLOCK, 2011, p. 76).

Existe uma enraizada crença de desvio sexual e moral no consciente coletivo. Ainda que sob uma aparente permissividade, o sujeito LGBT brasileiro nunca foi considerado outra coisa que não anormal, mesmo quando “tolerado”, é um sinal da degenerescência moral do corpo social. A sua “desviância”, sua não conformidade com essa normalização reguladora, submete-os a constante policiamento e processos de criminalização.

4 HOMOFOBIA ESTRUTURAL, INSTITUCIONAL E PENAL: UM ESTUDO DO

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