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Instrumentalidade punitiva do processo penal: um estudo do caso de LGBTFOBIA em Itatira e o processo-pena brasileiro

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

IANA ARAGÃO ESMERALDO

INSTRUMENTALIDADE PUNITIVA DO PROCESSO PENAL: UM ESTUDO DO CASO DE LGBTFOBIA EM ITATIRA E O PROCESSO-PENA BRASILEIRO

FORTALEZA 2019

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IANA ARAGÃO ESMERALDO

INSTRUMENTALIDADE PUNITIVA DO PROCESSO PENAL: UM ESTUDO DO CASO DE LGBTFOBIA EM ITATIRA E O PROCESSO-PENA BRASILEIRO

Monografia apresentada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

Área de concentração: Criminologia

Orientador: Prof. Dr. Márcio Ferreira Rodrigues Pereira

FORTALEZA 2019

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Biblioteca Universitária

Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

E1i Esmeraldo, Iana Aragão.

INSTRUMENTALIDADE PUNITIVA DO PROCESSO PENAL : UM ESTUDO DO CASO DE LGBTFOBIA EM ITATIRA E O PROCESSO-PENA BRASILEIRO / Iana Aragão Esmeraldo. – 2019.

82 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2019.

Orientação: Prof. Dr. Márcio Ferreira Rodrigues Pereira.

1. Direito Processual Penal. 2. Criminologia LGBT. 3. Direito Penal. I. Título.

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IANA ARAGÃO ESMERALDO

INSTRUMENTALIDADE PUNITIVA DO PROCESSO PENAL: UM ESTUDO DO CASO DE LGBTFOBIA EM ITATIRA E O PROCESSO-PENA BRASILEIRO

Monografia apresentada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial à obtenção do grau

de bacharel em Direito. Área de concentração: Criminologia

Orientador: Prof. Dr. Márcio Ferreira Rodrigues Pereira

Aprovada em: ___/___/____.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Márcio Ferreira Rodrigues Pereira (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Mestranda Thaynara Andressa Frota Arararipe

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AGRADECIMENTOS

Ao J., que nunca desistiu ou se entregou.

Ao Caju, ao EFTA e ao NUAPP, cujas contribuições de forma alguma se limitam às experiências que resultaram nesse trabalho. Não sei como hoje estaria sem a formação em assessoria jurídica popular e direitos humanos que me foi proporcionada nesses espaços.

A meus pais, Tales e Sandra, e meu irmão, Mateus, pelo amor e suporte, por acreditar em mim bem mais do que eu mesma.

À Kol, por muito mais do que caberia em um parágrafo. Obrigada por estar comigo, pela sua inteligência, pela companhia e pelo amor. Sem você esse trabalho não existiria.

À Marina, o Davi, a Roberta, a Nycole, por uma paciência sem tamanho comigo. Eu não teria passado por essa faculdade sem vocês. Obrigada por terem insistido em serem meus amigos desde quando nem eu queria amigos. Por favor, continuem insistindo.

Aos militantes, LGBT e feministas, que conheci ao longo desses anos, por contatos e influências que carrego sempre comigo. Vocês estão presentes em pequenos e grandes momentos, em cada fala e pensamento meu, são parte de mim.

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“When I, who am called a 'weapon' or a 'monster', fight a real monster, I can fully realize I'm just a human.”

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RESUMO

A partir do estudo dos casos ocorridos na cidade de Itatira, no Ceará, propõe-se o estudo de estruturas de poder punitivo, especialmente as que se apresentam no “processo-pena”, e o papel que sujeitos LGBT nelas desempenham. Entre os diversos casos de discriminação que ocorreram na cidade, dá-se foco ao caso do jornalista J., e como a confluência de uma instrumentalização homofóbica do processo penal a que foi submetido afetou sua vida. Partindo de formulações sobre a principiologia da prisão cautelar, do caráter antecipatório de uma futura pena que fornece o próprio correr da ação penal, o “processo-pena”, dos processos de criminalização e marginalização de sujeitos LGBT, a partir de conceitos jurídicos, criminológicos, históricos e filosóficos, é buscado um paradigma de análise que seja aplicado aos casos relatados. Utilizou-se de pesquisa bibliográfica diversa, não limitada à Utilizou-seara das ciências jurídicas. Para a análise do caso, foi acrescida pesquisa documental, participativa e de campo. Ao final, depreende-se que essas intuições punitivas, e seus discursos discriminatórios, servem a uma pretensão autoritária do Estado.

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ABSTRACT

It is taking the case study of the small town of Itatira, Ceará, as a starting point that the following work proposes a study of punitive power structures, especially those in the form of a “procedural punishment”, and the role fulfilled by LGBTQI people in them. Of all of the multiple cases of discrimination that happened in the town, this study focuses on the journalist J., and how the confluence of a homophobic instrumentalization of the penal process to which he was subjected to affected his life. Here, it’s sought after an analysis paradigm from which those cases can be viewed, from the confluence of studies of the justifying principles of precautionary arrests, of the anticipation of an uncertain sentence that the penal process in itself presents, the “procedural punishment”, of the criminalization and marginalization of LGBTQI people, with a range of law, criminological, historical and philosophical concepts. We used a diverse bibliographical research, not limited to the field of legal sciences. For the analysis of the case, documentary, participatory and field research was added. Ultimately, those punitive institutions, and its many discriminatory discourses, serve the State’s authoritative ambition.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

CAJU Centro de Assessoria Jurídica Universitária CNJ Conselho Nacional de Justiça

DPGECE Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará

EFTA Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar

GGB Grupo Gay da Bahia

HC Habeas Corpus

LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais MP Ministério Público

NUAPP Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e às Vítimas de Violência STJ Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 11

2 PROCESSO-PENA: A INSTRUMENTALIDADE PUNITIVA DA PRISÃO PREVENTIVA E DO CURSO PROCESSUAL... 14

2.1 A prisão preventiva como reforço da autoridade punitiva do Estado... 14

2.1.1 O Estado autoritário e a pena processual... 15

2.1.2 Ilegitimidade da pena processual: um estudo a partir da principiologia do cárcere preventivo... 17

2.2 “Processo-pena”: o caráter sancionatório da ação penal... 24

3 ESTIGMATIZAÇÃO LGBT E SELETIVIDADE PENAL... 31

3.1 Uma criminologia para os sujeitos LGBT do Brasil... 33

3.2 Brasil e suas populações LGBTs... 37

3.3 Labeling approach: a seletividade intrínseca do processo penal... 40

3.4 Arquétipos criminais LGBT... 43

4 HOMOFOBIA ESTRUTURAL, INSTITUCIONAL E PENAL: UM ESTUDO DO CASO DE ITATIRA... 48

4.1 A Cidade... 49

4.2 O Jornalista... 58

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 69

APÊNDICE A – TRANSCRIÇÃO DE ÁUDIO DE ENTREVISTA COM A ADVOGADA DO ESCRITÓRIO DE DIREITOS HUMANOS FREI TITO DE ALENCAR JULIANNE MELO DOS SANTOS... 74 APÊNDICE B – TRANSCRIÇÃO DE ÁUDIO DE ENTREVISTA COM O DEFENSOR PÚBLICO EMERSON CASTELO BRANCO MENDES...

7 77

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1 INTRODUÇÃO

O processo penal marca profundamente uma parcela significativa da população brasileira, especialmente cearense. Assim, se faz relevante, em um Estado Democrático que se vê permeado por instrumentos autoritários de reforço de poder, estudar qual a contribuição das instituições penais em processos de exclusão e manutenção de estruturas, qual o papel que cumpre a criminalização de sujeitos específicos nessa disputa de forças. O Direito Penal, especialmente com relação a sua processualística, é, talvez, a área das ciências jurídicas que mais infringe consequências graves a direitos individuais, sendo seus processados, por fim, os que mais sofrem com o isolamento da ciência jurídica criminal, com a sua recusa a dialogar não só com outras áreas do conhecimento, mas com a realidade que molda. Aqui, procura-se entender como as particularidades de certos indivíduos são úteis à manutenção desse poder penal, desse poder de controle, e como essas instituições processuais servem ao propósito punitivo último do Direito Penal, em detrimento das frágeis garantias genéricas em que buscam elas próprias se sustentar.

O objeto do presente trabalho é o exame dos consecutivos casos de LGBTfobia ocorridos na cidade de Itatira, que culminaram em uma ação penal contra o jornalista da cidade que fez as primeiras denúncias, a partir dos primeiros meses de 2015. O percurso que correria aquele caso seguiria paralelo ao meu próprio, tendo o acompanhado em todas as instituições por onde passei nesses anos, até o seu desfecho em 2018.

As categorias de análise desse trabalho partem de escolhas específicas e conscientes, uma tentativa de confluência de conhecimentos de áreas acadêmicas distintas para uma melhor compreensão do fenômeno do “processo-pena” na vida de sujeitos marginalizados.

Durante todo o curso do trabalho, buscou-se localizar os estudos, trazer autores e autoras que melhor pudessem agregar categorias produzidas nos eixos estrangeiros de produção acadêmica para realidade brasileira, e, quando possível, a cearense, que é o quadro onde se insere o estudo de caso que motivou as discussões.

Explorando o conceito de “processo-pena”, categoria ainda relativamente pouco conhecida, mas massivamente presente na realidade penal, o primeiro capítulo

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se debruça, inicialmente, sobre aquela que é sua maior expressão, a prisão preventiva. O processo penal tal qual apresentado na realidade brasileira, fundamentalmente, se afasta de qualquer pretensão cautelar e possui, desde sua gênese e até a prática, veias punitivistas, o que fica claro quando o olhar se volta para suas repercussões na realidade que afeta. Porquanto que o trabalho se utiliza de doutrinas garantistas, as análises partem e perseguem um objetivo, por fim, abolicionista. Explora-se, assim, o processo penal e sua instrumentalização punitiva, bem como aquele repercute e marca invariavelmente seus processados.

O segundo capítulo parte de análises sociológicas — especialmente criminológicas —, históricas e filosóficas para procurar explorar como ocorrem os processos de criminalização de sujeitos já marginalizados, com foco especial em Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais (LGBT), e como esses processos são produto de uma estrutura de poder que se reproduz através do sistema criminal. Aqui, fez-se um esforço de tentar emoldurar a realidade brasileira através de alguns conceitos estrangeiros intercalados com colocações de autores latino-americanos e brasileiros, almejando a construção de uma perspectiva útil ao estudo de caso.

O terceiro capítulo narra o caso da cidade de Itatira, no interior do Ceará, como ela veio a ser conhecida como uma “cidade homofóbica”, e a repercussão que a denúncia dos casos de LGBTfobia, teve sobre a vida de um jornalista, que foi processado criminalmente. Ao longo do trabalho, procurou-se preservar a identidade dele, referindo-se a tal como J. Essa opção, que visa resguardar sua imagem, também é fruto de uma análise da atual conjuntura brasileira, que não permite a sujeitos LGBT maiores exposições, correndo eles riscos reais de retaliação, o que, no caso de J., já se materializou na ação penal que sofreu por três anos.

O caso da cidade fornece uma moldura de análise para as colocações de como a pena que o próprio processo implica ao seu “réu” é resultado de estruturas de poder que discriminam e excluem, intrínsecas ao aparato político estatal.

Para os apontamentos teóricos dos dois primeiros capítulos, utilizou-se pesquisa bibliográfica diversa, com artigos científicos, teses, dissertações, livros e outros, não limitada à seara das ciências jurídicas. Quanto ao último capítulo, a essa metodologia foi acrescida pesquisa documental e de campo, a partir de anotações pessoais da época dos fatos, enquanto atuante no Centro de Assessoria Jurìdica

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Popular (Caju), projeto de extensão da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, e, posteriormente, as experiências de estágio no Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar (EFTA) e no Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e às Vítimas de Violência da Defensoria Pública do Estado do Ceará (NUAPP). Foram também recolhidas informações a partir de fontes públicas de informação, fatos públicos e notórios, notícias veiculadas, documentos de órgãos públicos, atas de audiências públicas e pareceres, além de documentos fornecidos para consulta para fins acadêmicos, com autorização, quais foram os relatórios produzidos pelo Escritório Frei Tito e as peças elaboradas pela Defensoria Pública. Também foram realizadas durante o mês de agosto de 2019 entrevistas estruturadas, transcritas em sua íntegra nos apêndices desse trabalho, com a advogada Julianne Melo, do Escritório Frei Tito de Alencar, e com o Defensor Público do Estado Emerson Castelo Branco, que atuaram extrajudicialmente e judicialmente no caso de J., respectivamente.

Não se pretende com essas discussões apresentar, por exemplo, alternativas ao cárcere, por se entender que quaisquer alternativas que sejam pensadas dentro da forma atual que se mostra do Direito Penal serviram como novos modelos de marginalização. A contribuição que se pretende aqui é aplicação de conceitos, a sugestão de novos paradigmas que permitam estudar e compreender a forma penal e sua estrutura LGBTfobica.

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2 PROCESSO-PENA: A INSTRUMENTALIDADE PUNITIVA DA PRISÃO PREVENTIVA E DO CURSO PROCESSUAL

Ser processado criminalmente implica ao acusado não só um forte estigma social, especialmente no contexto contemporâneo de crescente espetacularização do processo penal, como violenta os aspectos mais íntimos de sua vida.

A comparação com Direito Trabalhista, onde a figura processual do empregado é o polo mais fragilizado de uma relação empregatícia, e o Estado, reconhecendo-o como tal ali atua como garantidor de direitos; no caso penal, a figura do réu também é, por definição legal, fragilizada e merecedora de proteção, refletido pela necessidade princípios garantidores como in dubio pro reo. Ocorre que, diferentemente do caso trabalhista, essa relação naturalmente desbalanceada não se dá entre entes privados, e sim, com o próprio Estado, sendo ele próprio parte, criador e regulador dela. Assim, o poder punitivo estatal impõe a alguém a figura de “réu” e põe suas garantias mais caras em um jogo desigual onde aquele é jogador, inventor, mediador e árbitro.

O presente capítulo propõe a investigação desse (ab)uso de poder em âmbito processual, inicialmente se debruçando sobre aquela que é a maior das sanções cautelares: a prisão preventiva — relevante pela sua expressividade na cena carcerária brasileira — através de um estudo sobre a sua principiologia legitimadora. Essa análise, que partirá de pontos oferecidos pela própria doutrina jurídica, posteriormente envereda para discussões de cunho sociológico e criminológico, e busca categorias de análise para as formulações que seguirão, em especial, quando do estudo de caso apresentado no último capítulo.

2.1 A prisão preventiva como reforço da autoridade punitiva do Estado

Com 60,3%, o Ceará tem o maior percentual de presos provisórios no Brasil1. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do ano corrente, 34,5%2 de

1São 12705 presos provisórios para um total de 21050 presos no estado, segundo dados do CNJ.

Disponível em:

<www.cnj.jus.br/inspecao_penal/gera_relatorio.php?tipo_escolha=comarca&opcao_escolhida=13&tip oVisao=presos> Acesso em 24 de agosto de 2019.

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todos os presos no país estão encarcerados sem terem contra si uma sentença condenatória. O instituto da prisão provisória contribui, então, para um equivalente a mais de um terço da já inchada massa carcerária brasileira, com lapsos temporais que variam de 175 a 974 dias3.

A realidade apresentada por esses números compele uma abordagem para além da individualidade da doutrina jurídica clássica a respeito desse instrumento de detenção processual. A prisão preventiva, que é tradicionalmente definida como uma espécie de medida cautelar de caráter excepcional, tornou-se uma das ferramentas punitivas mais largamente utilizadas pelo judiciário brasileiro, sob o argumento de sua suposta inevitabilidade, uma “cruel necessidade”, e de seu caráter não-penal, cautelar. Ocorre que, para esses presos, que compõem uma parcela significativa da população carcerária do país — a maioria, no caso cearense — não existe distinção real entre a pena condenatória e a prisão cautelar. São experienciadas sob as mesmas condições, nas mesmas instalações penitenciárias e enfrentam os mesmos estigmas sociais, com a indeterminação de uma pena sem julgamento e sem perspectiva de fim.

2.1.1 O Estado autoritário e a pena processual

Traçando o caminho de sua elaboração e recepção — organizada por Luigi Ferrajoli na Itália do início dos anos 1990, e acolhida, em especial, por juristas da América Latina nos anos seguintes — é possível observar o Garantismo Penal, enquanto corrente filosófico-jurídica, como resposta a uma ânsia assecuratória de países que se viam profundamente marcados pelos regimes político autoritários do século que se encerrava. Encontra respaldo no texto da Constituição Federal de 1988 que, durante os primeiros passos da redemocratização, elevou garantias ao patamar de princípios constitucionais e as anunciavam enquanto refreios ao autoritarismo militar do Estado das décadas precedentes.

3Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais> Acesso em 26 de abril de 2019.

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É tendo em mente esse histórico antifascista do pensamento garantista, especialmente ao que se refere ao Direito Penal, e o pretérito e presente uso irrestrito de poder punitivo pelo Estado Brasileiro, que o presente trabalho se utiliza de alguns dos conceitos, inicialmente, desse prisma teórico para analisar o instrumento da prisão preventiva no ordenamento jurídico brasileiro.

Ferrajoli (2002, p. 684) descreve como “garantista” todo sistema penal que se conforma normativamente com um modelo de “estrita legalidade”, especialmente em matéria penal, e que o satisfaz efetivamente. Por mais que um ideal de estrita legalidade possa até mesmo parecer longínquo, porém preferível ao corrente quadro crítico do cárcere no Brasil, ater-se ao raciocínio de uma suposta função — inclusive

positiva — da pena, é se manter restrito a um discurso liberal e punitivista meramente

reformado, por mais amenizado que se apresente, conferindo legitimidade a um Estado de Direito que esteja, mesmo que de forma restrita, permeado por Estados de Polícia, sem jamais se libertar desses instrumentos, caindo na incoerência de “legitimar para limitar” (AMARAL, 2011, p. 209).

Aury Lopes Júnior (2016, p. 479) introduz o estudo da principiologia das prisões cautelares aduzindo que seria ela que permitiria a coexistência daquele que seria o princípio reitor do processo penal, a presunção de inocência, garantia constitucional expressamente consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição, com uma prisão sem sentença condenatória transitada em julgado. Ferrajoli (2002, p. 445), de outra sorte, escreve sobre o instituto como que seu uso, e antes ainda abuso, arrisca reduzir a presunção de inocência a um “inútil engodo” e “é radicalmente ilegítimo e além disso apto a provocar, como a experiência ensina, o esvaecimento de todas as outras garantias penais e processuais”.

Também alerta Ferrajoli para a inerente incoerência entre o instituto e a presunção de inocência sob a falácia de possuir um suposto caráter cautelar, não-penal, que, ademais, não se revelou capaz de obstar o desenvolvimento patológico da prisão sem juízo:

Os princípios ético-políticos, como os da lógica, não admitem contradições, sob pena de inconsistência: podem despedaçar-se, mas não se inclinam à vontade; e uma vez admitido que um cidadão presumido inocente pode ser encarcerado por "necessidade processual", nenhum jogo de palavras pode impedir que tal fato também se dê por "necessidade penal" (FERRAJOLI, 2002, p. 443)

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Apesar da incompatibilidade principiológica do instrumento da prisão preventiva, a Constituição prevê expressamente sua decretação em seu inciso LXI do artigo 5º, sem, porém, em seu texto, empenhar-se em legitimá-la, limitando-se a demandar que resulte de “ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente” e a prover algumas poucas limitações a seu uso. Com a finalidade de explorar os discursos legitimadores das prisões preventivas, destacam Zaffaroni e Batista (2003, p. 292-293) teorias substantivistas, que reconhecem o caráter penal das prisões preventivas, subordinando o pressuposto de inocência a uma abstrata necessidade de manutenção da ordem social, e seria típica dos modelos autoritários, incluindo o próprio nazismo; e teorias processualistas que, por sua vez, entendem-nas enquanto medidas processuais, sem caráter punitivo, se valendo para tanto de uma equiparação com as medidas cautelares civis, em uma comparação frágil, já que estas últimas tem função reparadora.

É fazendo um apanhado histórico da prisão preventiva na legislação italiana que Ferrajoli (2002, p. 444) escreve do declínio da presunção de inocência como decorrência do advento do fascismo, sendo a ausência de freios ao uso e abuso da prisão preventiva seu indicador, evocando-a sempre que houvesse “grave clamor público”, sem se usar de “jogos de palavras ingênuos, como ‘medida de segurança processual’, ‘necessária para a defesa social’”. O Estado autoritário exerce, então, o pleno vigor do seu poder punitivo no seu ancorar de uma fundamentação genérica, vazia de sentido legal e doutrinário, que sempre pode ser evocada. E é na permissibilidade que ainda encontram tais argumentos, em pleno Estado de Direito contemporâneo, que a prisão preventiva serve ao reforço do poder punitivo estatal, nas palavras de Karam (2006, p. 98): “A opção preferencial pela maior intervenção do sistema penal produz uma desmedida ampliação do poder punitivo, acabando por aproximar democracias a Estados totalitários”.

2.1.2 Ilegitimidade da pena processual: um estudo a partir da principiologia do cárcere preventivo

Adentrando o estudo dos princípios que norteiam a prisão provisória na lei processual penal brasileira, Lopes Jr. (2016, pp. 479-488) elenca como tais a

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jurisdicionalidade, o contraditório, a excepcionalidade, a provisoriedade, a provisionalidade e a proporcionalidade.

De início, o princípio da jurisdicionalidade, garantia constitucional de que ninguém poderia ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de crime militar, previsto no inciso LXI do artigo 5º, estaria fundamentado, então, na admissão, em esfera Constitucional, da possibilidade da prisão processual. Entretanto, sua confrontação com a presunção de inocência, e a compreensão do seu íntimo vínculo com o due process of law já seria suficiente para torná-la inadmissível (LOPES JR., 2016, p. 479).

Pertinente à discussão sobre o devido processo legal, discorre o autor que:

ao contrário do Direito Privado, [o Direito Penal] não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto típico, mas também que exista previamente o devido processo penal. A pena não só é efeito jurídico do delito, senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo. Por isso, a pena depende da existência do delito e da existência efetiva e total do processo penal [...] (LOPES JR, 2010, p. 1, grifos no original).

Se a pena é resultado do próprio processo, seria absolutamente inadmissível a existência de uma pena anterior à sua realização, de qualquer espécie de pena processual.

Da discussão a respeito da necessidade de satisfação do contraditório em sede de medida cautelar, sendo ele um dos corolários principais do devido processo legal, emerge a primeira das fragilidades da acrítica importação de conceitos do processo civil para o processo penal. O direito de defesa, e consequentemente sua negação, no processo cautelar, tem repercussões largamente distintas nas esferas privada e penal: as medidas cautelares, atingem, no primeiro, prioritariamente direitos patrimoniais, visando assegurar a efetivação do próprio direito, isto é, seu não perecimento, enquanto, no segundo, busca a efetivação do procedimento penal em si, atingindo, em contrapartida, o direito fundamental à liberdade do imputado. Torna-se clara, assim, a diferença entre os bens jurídicos em jogo em cada uma das hipóteses, não sendo considerável negar direito de ampla defesa no processo penal. Destaca-se, então:

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Inadmissível, isso sim, é usar no processo penal o mesmo discurso [de teoria geral do processo civil], como se o referencial semântico fosse igual (e, portanto, desprezando-o), tudo em nome de uma pseudocoerência sistêmica que, no final das contas, é sintática e acaba legitimando o status quo, nem que seja fruto da mais terrível das ditaduras (COUTINHO, 1989, p. 119). O Código de Processo Penal, em seu art. 310, inciso II, quando da conversão da prisão em flagrante, estabelece a prisão preventiva como verdadeira ultima ratio do sistema processual penal, devendo ser decretada quando presentes os requisitos legais e “se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão”. Com os dados apresentados no começo deste Capítulo, uma massa carcerária que chega, em 2019, a mais de duzentos e quarenta e cinco mil brasileiros encarcerados preventivamente4, é evidente a banalização da excepcionalidade, especialmente pelo efeito sedante que possui o cárcere preventivo, sobre a opinião pública:

A prisão cautelar transformou-se em pena antecipada, com uma função de imediata retribuição/prevenção. A “urgência” também autoriza (?) a administração a tomar medidas excepcionais, restringindo direitos fundamentais, diante da ameaça à “ordem pública”, vista como um perigo sempre urgente. Leva, igualmente, a simplificar os procedimentos, abreviar prazos e contornar as formas, gerando um gravíssimo problema, pois, no processo penal, a forma é garantia, enquanto limite ao poder punitivo estatal. São inúmeros os inconvenientes da tirania da urgência (LOPES JR., 2017, pp. 58-59).

A provisoriedade da prisão cautelar, inclusive por vezes chamada de prisão provisória, é talvez uma das mais cínicas suposições dessa principiologia. Com um vácuo legislativo flagrante e a falta de consenso jurisprudencial ou doutrinário sobre qualquer tipo de limite temporal, com lapsos que variam, em média, entre cinco meses e mais de dois anos, como previamente exposto, a verdade é que, para o preso cautelar no Brasil, não é dado qualquer resguardo sobre uma suposta provisoriedade do seu encarceramento, em flagrante dissonância com o direito fundamental de ser julgado em um prazo razoável5. Abstenção essa que parece encontrar amparo em parte significativa da doutrina, que, ao elencar as circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva como dispostas no artigo 312 do Código de Processo Penal — quais sejam a garantia da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da instrução 4Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php> Acesso em 26 de maio de 2019. 5vide art. 5º, LXXVIII, da Constituição

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criminal, ou, ainda, para assegurar a aplicação da lei penal —, não deixariam elas de existir em prazos prefixados (NUCCI, 2008, p. 362).

Mais adiante, ainda neste Capítulo, será retomada a discussão sobre o custo do tempo no processo penal. Por ora, vale-se de que não pode ser negada a ninguém a ciência, prévia e precisa, do tempo máximo de duração do processo penal, por maior resistência que se encontre nos setores jurídicos apegados a um positivismo abstrato, ante tratar de “uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão.” (LOPES JR.; BADARÓ, 2006, pp. 108-109).

Estando, em tese, submetido a medidas estritamente provisionais, o preso deveria ter sua liberdade restabelecida assim que fosse findo o suporte fático que legitimou o decreto preventivo. A segregação excepcional serviria para cumprir uma finalidade determinada, advinda de uma necessidade, expressamente fundamentada e suficiente, de preservação do processo (PACELLI, 2017, p. 234). Aqui, o embate se dá no âmbito das circunstâncias autorizadoras do cárcere, em que se dá atenção no decreto que se fundamenta na “garantia da ordem pública”, legal e doutrinariamente esvaziada de conceito, já que não se dirige à tutela do processo. A exemplo das diárias decisões que aí se apoiam, é conferido um caráter perene à prisão cautelar, visto que inexiste a possibilidade de que seu argumento ensejador desapareça no curso do processo (SILVEIRA, 2015, p. 225-226). Se essa prisão cautelar, que se sustenta em uma abstração de cumprir determinada função processual, sequer se propõe a esse fim instrumental-cautelar, ela não passa de uma pena processual.

Desse modo, diante dos inflamados discursos por segurança pública, em conjunto com uma histórica campanha — política, social, jurídica e, especialmente, midiática — que delega ao encarceramento uma função apaziguadora, seria sempre apropriada, em tese, a prisão preventiva a todo e qualquer indivíduo que entre em contato com a justiça penal, sob qualquer circunstância. Tal fato, além de evidenciar a absoluta ineficiência desse instituto, sugere que o Judiciário se lança, constantemente, a um papel que não lhe cabe. A justiça criminal não poderia estar mais distante do papel limitador do poder punitivo que Ferrajoli (2002, p. 30) atribui ao juízo, o qual teria, nos princípios garantistas, um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, a assegurar-lhe o máximo grau de racionalidade e confiabilidade. Em via contrária, o Judiciário se coloca na posição de reforçar e

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viabilizar instrumentos punitivos estatais, reproduzindo uma política de populismo penal6.

Aqui, o réu do processo penal não é visto enquanto ser individualizado, possuidor de circunstâncias particulares, e o fato que lhe é implicado deixa de ser componente de uma situação fática específica, e passam a ser um mero amálgama de uma ameaça abstrata à sociedade que a “criminalidade” ofereceria, e o único caminho que lhe seria devido é o do cárcere.

Significativo também é o caráter seletivo que adquire esse instrumento processual. Leciona Silva (2011, p.109):

Em síntese, no instante em que a aplicação da prisão preventiva venha a se apoiar em termos vagos e ambíguos, despidos de uma fundamentação legal a justificar que o provimento final desejado com a propositura de um processo criminal realmente corre perigo, a decretação da custódia provisória poderá causar um significativo descompasso no asseguramento dos direitos e garantias fundamentais constitucionais de alguns indivíduos, que, forçosamente, serão obrigatoriamente excluídos da abrangência “universal” dos direitos ditos “humanos”. Esta forçada exclusão de alguns indivíduos da órbita de proteção daqueles direitos humanos, na maior parte dos casos, importará também no afastamento de sua prisão preventiva dos pressupostos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.

Por fim, retratado como “o princípio dos princípios”, a proporcionalidade seria o principal sustentáculo das prisões cautelares (LOPES JR., 2016, p. 486), norteando a conduta do magistério frente ao caso concreto, sem perder de vista a densidade do

fumus commissi delicti e do periculum libertatis, devendo ele sopesar se seriam

elementos suficientes para justificar “a gravidade das consequências do ato e a estigmatização jurídica e social que irá sofrer o acusado” (LOPES JR., 2016, p. 486). A proporcionalidade das penas à gravidade dos delitos, ulterior caráter da pena moderna (Ferrajoli, 2002, p. 315), também se impõe à aplicação das medidas cautelares, necessitando estas de uma correlação com a futura sanção que culminaria. Essa proporcionalidade atribui então, na expressão de um caráter 6Segundo Zaffaroni, não existem limites na denominada “criminologia” midiática, que “cria a realidade de um mundo de pessoas decentes frente a uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. O eles da criminologia midiática incomodam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para tanto, é necessário que a polícia nos proteja de suas ciladas perversas, sem qualquer obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros e imaculados” (ZAFFARONI, 2012, p. 307).

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fundamentalmente burguês do Direito Penal liberal, valor à liberdade individual, posta como verdadeira moeda de troca em que é paga a gravidade do crime (PACHUKANIS, 1988, p. 129).

Vale, então, questionar quais seriam os elementos dessa transação penal feita em âmbito processual: assumindo-se que a prisão preventiva possui caráter puro e meramente processual, parece disparatado colocar em balanço direitos individuais do réu e uma suposta necessidade procedimental. Nesse sentido, retira-se do réu a própria qualidade de sujeito: sua desvalorização seria tamanha, a ponto de que o processo, por si, revela-se maior merecedor de tutela que seus direitos individuais.

Ainda sobre o princípio da proporcionalidade, seria então a ponderação dos critérios de necessidade e adequação do caso que levariam o magistrado ao decreto da medida cautelar penal extrema, preconizados no art. 282, II, do Código de Processo Penal:

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

Enquanto a necessidade ali firmada se comunica com os princípios de provisoriedade e provisionalidade já discutidos previamente, é no critério de adequação estabelecido no ordenamento jurídico que Lopes Jr. (2016, p. 487) alerta para o retrocesso ao perigoso “Direito Penal do Autor”. Quando da análise da adequação, pode-se utilizar a personalidade do acusado para fins de motivação. Aqui, não só volta a recair sobre as medidas cautelares um caráter permanente, já que a personalidade, ou “periculosidade” do imputado não se extingue ao longo do processo, mas também, legitima um juízo de valor feito pelo magistrado da personalidade do agente.

O recrutamento da população carcerária ocorre com base na identificação (mas melhor seria dizer “invenção”) das classes de sujeitos consideradas produtoras de risco, potencialmente desviantes e perigosas para a ordem constituída. Assim, não são mais tanto as características individuais dos sujeitos que constituem o pressuposto (e ao mesmo tempo o objeto) das estratégias de controle, mas sim aqueles indícios de probabilidades que permitem reconduzir determinados sujeitos a classes perigosas específicas. Isso significa, concretamente, que categorias inteiras de indivíduos deixam

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virtualmente de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crime. (GIORGI, 2006, p. 98)

Essa personalidade, inclusive, pode ser aferida pela presença de “maus antecedentes”, critério que se vale de uma rotulação feita pela própria processualística penal. Enquanto a Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) veda a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso como antecedentes criminais (que agravam a pena-base do condenado) o uso dessas como indícios da periculosidade do acusado é amplamente abraçado pela jurisprudência brasileira7. Aduz-se, então, que estar implicado em processo penal, sem qualquer relação com o resultado que virá a produzir, gera uma consequência penal muito direta, que é a quase certa decretação da prisão preventiva em novo contato com a justiça criminal. Assim, o rótulo que o próprio Estado estampou sobre o indivíduo, de réu, se torna suficiente para a sua segregação.

Zaffaroni atribui esse processo de seleção e condicionamento criminalizante, por exemplo, a alguns estereótipos difundidos por veículos de comunicação, declarando que:

[...] os órgãos do sistema penal selecionam de acordo com esses estereótipos, atribuindo-lhes e exigindo-Ihes esses comportamentos, tratando-os como se se comportassem dessa maneira, olhando-os e instigando todos a olhá-los do mesmo modo, até que se obtém, finalmente, a resposta adequada ao papel assinalado (ZAFFARONI, 2001, p. 133)

O Estado se vale de uma prerrogativa de excluir do meio social o perfil que julga necessário, exercendo então um poder autoritário de manutenção de uma ordem social, a qual segrega e segue uma lógica mercadológica: alguns sujeitos não têm o mesmo valor que outros, e deles podem ser negociadas as liberdades e garantias fundamentais.

A própria existência e admissibilidade legal da prisão cautelar, cujos fundamentos não se sustentam por si, encontrando contradições internas (a exemplo de ser uma medida cautelar, provisória, que não possui prazo legal ou

7“A periculosidade do agente pode ser aferida por intermédio de diversos elementos concretos, tal como o registro de inquéritos policiais e ações penais em andamento que, embora não possam ser fonte desfavorável da constatação de maus antecedentes, podem servir de respaldo da necessidade da imposição de custódia preventiva. […]” (HC n. 126.501, Rel. p/ Acórdão: Min. Edson Fachin, 1ª T., DJe 3/10/2016)

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jurisprudencialmente fixado) ou com a norma constitucional (incompatibilidade com a presunção de inocência), é o mais explícito indicativo da instrumentalidade punitiva e autoritária que o Direito Penal exerce sobre sujeitos criminalizados. Instrumentalidade essa que se beneficia das lacunas deliberadamente deixadas no texto legal para esse abuso de poder, e que, como será explorado nos capítulos seguintes, atinge uma realidade material de sujeitos bem delimitados, servindo como forma de controle desses “indesejáveis”.

2.2. “Processo-pena”: o caráter sancionatório da ação penal

Com uma base principiológica largamente abalada, pode-se argumentar a perda de legitimidade da prisão preventiva8, apesar de a expressão implicar que já existiu, em algum tempo, algum jogo de forma legal, garantias e fundamentos que a legitimasse. Ocorre que, mesmo que analisada de forma crua, a prisão ante iudicium está irremediavelmente pervertida, consistindo em não só em antecipação da pena que poderia vir a ser aplicada, e sim, uma verdadeira pena processual, já que resta desconhecido seu resultado.

Este âmbito, no qual a própria lei renuncia aos limites da legalidade, em que desaparece qualquer função garantidora dos tipos penais e do qual se exclui a intervenção normal dos órgãos judiciais, é a base indispensável para que possa operar o verdadeiro exercício de poder do sistema penal, ou seja, para que opere o poder configurador dos órgãos do sistema penal e para que só eventualmente se possa exercer uma repressão maior que a autorizada nos casos supostamente reservados ao discurso jurídico-penal (ZAFFARONI, 2001, p. 23).

Sem que exija sentença condenatória, defesa ampla, devido processo legal, prazos fixos, fundamentação fática, ou qualquer adequação a uma futura pena, o decreto de uma prisão preventiva, com base numa sumária cognição do juiz, efetivamente condena o réu, impõe-lhe um castigo que nem sequer se reveste das pretensões ressocializadoras da sentença9.

8Sob uma lógica equiparável à perda de legitimidade do sistema penal como argumenta Salo de Carvalho (2015, p. 152)

9´Princípio da finalidade ou da prevenção´. A pena não tem, ou não tem somente, a função de retribuir, a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e

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O processo penal se torna, então, o próprio instrumento punitivo do Estado, que ele só se ocupa em legitimar a posteriori. Consoante argumenta Ferrajoli (2002, p. 680), “não se pode desconhecer a possibilidade de fazer uso do processo como uma punição antecipada, ou de intimidação policialesca, ou de estigmatização social, ou de persecuções políticas ou por todos estes motivos conjuntamente”.

Cumpre aqui, na esfera coletiva, um papel sobre a imagem dos poderes estatal e judicial, sobre o sentimento de segurança que a população demanda, mas, na esfera individual, viola todos os aspectos da vida do imputado visceralmente, tomando forma de um “processo-pena”.

A respeito dessa fisionomia, afirma Lopes Jr. (2010, p. 1):

Essa grave degeneração do processo permite que se fale em verdadeiras penas processuais, pois confrontam violentamente com o caráter e a função instrumental do processo, configurando uma verdadeira patologia judicial, na qual o processo penal é utilizado como uma punição antecipada, instrumento de perseguição política, intimidação policial, gerador de estigmatização social, inclusive com um degenerado fim de prevenção geral. Exemplo inegável nos oferecem as prisões cautelares, verdadeiras penas antecipadas, com um marcado caráter dissuasório e de retribuição imediata.

É terminante que a prisão preventiva é o ápice desse exercício autoritário e repressor, mas ele também se manifesta quando ela não ocorre, já que, segundo descreve Lopes Jr. (2004, p. 225), o curso processual adquire uma dimensão especialmente violenta pela sua duração excessiva, que o Estado exerce ilegitimamente. Nesse sentido:

[...] o direito penal e o processo penal são provas inequívocas de que o Estado-Penitência (usando a expressão de Loïc Wacquant) já tomou, ao longo da história, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada a retirar, apossa-se do tempo. (LOPES JR., 2004, pp. 222-223)

Zaffaroni (2001, pp. 27-28) discorre sobre esse dilatamento do processo penal como violação da legalidade penal:

a duração extraordinária dos processos penais provoca uma distorção cronológica que tem por resultado a conversão do auto de prisão em flagrante

adequada contra motivação ao comportamento criminoso. Como sanção concreta, exerce a função de ressocializar o delinquente (BARATTA, 1999, pp.42-43).

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ou do despacho de prisão preventiva em autêntica sentença (a prisão provisória transmuta-se em penal), a conversão do despacho concessivo de liberdade provisória em verdadeira “absolvição” e a conversão da decisão final em recurso extraordinário. Considerando que a análise aprofundada dos limites da punibilidade ocorre apenas no momento da decisão final, o nítido predomínio dos “presos sem condenação” entre a população toda a região não implica somente urna violação à legalidade processual, mas também à legalidade penal.

É a dimensão temporal da punição, tão fundamental ao Direito Penal10, que melhor expõe a brutalidade dos artifícios punitivos na esfera íntima. O tempo do acusado é a moeda de troca em que o condenado paga pelo crime que lhe é imputado, de modo que, a partir dos estudos de Pachukanis (1988, p. 132), a transação penal funciona como um reflexo da transação comercial: “as relações entre Estado e delinquente encontram-se inteiramente inseridas no quadro de um leal negócio comercial”. Nullum crimen nulla poena, sine lege seria, então, a ciência de um contrato estabelecido com o tribunal.

A partir desses estudos, escreve Oliveira (2018, p. 251):

Quanto maior a gravidade da conduta criminosa, mais grave a responsabilidade e, portanto, maior será a pena. Mas os reflexos que a forma jurídica opõe a partir da medida de equivalência do valor não para apenas aí. A sanção é geralmente determinada de duas formas: uma sanção que implica a obrigação de uma retribuição pecuniária (uma pena, portanto, que se expressa por meio da forma-dinheiro) ou uma sanção que implica a restrição ou a privação da liberdade. Ora, em ambas as modalidades, mas principalmente na segunda, nota-se que a forma verdadeira da sanção reside no fato de que o tempo individual é expropriado.

É central nessas formulações que o tempo é medida de valor, e o tempo de trabalho do indivíduo é a própria aferição de sua capacidade laboral, e porquanto, de sua capacidade de subsistência e, despir-lhe dessa capacidade, sob o olhar capitalista, é dispor de sua própria individualidade, de qualquer valoração que pudesse ter. Segundo Oliveira (2018, p. 252), “a restrição jurídica da liberdade é, no fundo, uma expropriação do tempo individual que reduz a possibilidade de produzir valor, cujas implicações afetam diretamente a capacidade de reproduzir a si mesmo enquanto ser vivo.”

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Tendo em vista a compreensão social em larga escala do trabalho enquanto ato dignificante ou edificador do indivíduo a seu status de cidadania — por mais que este lhe devesse ser inerente em um Estado de Direito pleno — a retirada da possibilidade de labor exclui o sujeito do meio social. Aqui, não se refere apenas a efetiva prisão, mas, sobretudo, como a submissão de alguém a um procedimento penal se faz um efetivo instrumento de exclusão social, que extirpa o indivíduo de sua capacidade laborativa, seja pela existência do mandado de prisão em aberto, pela imposição de medidas cautelares diversas da prisão (como monitoramento eletrônico, a exigência de se apresentar em juízo, ou outras limitações à sua liberdade), ou pela própria condição de réu em processo penal, que independe de estar em liberdade provisória — chamada de “provisória” mesmo que a liberdade devesse ser a regra, e a prisão, a exceção11 — ou apenas investigado. Todos carregam um extremo estigma social. A própria venda da força laboral, único meio de acesso da classe trabalhadora a bens e direitos elementares, essencial para sua inserção, ainda que precária, no sistema do capital, torna-se obstada pelo estigma do processo penal.

O artigo 319 do Código Penal estabelece extenso rol de medidas cautelares diversas à prisão, que deveriam tomar prioridade ao decreto do cárcere. Como já discutido, entretanto, a prisão preventiva não se realiza enquanto prática excepcional. Sobre as medidas alternativas, vale salientar que:

[...] os substitutos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigoram; não diminuem sua necessidade, mas a reforçam; não anulam sua legitimidade, mas a ratificam: são instituições tentaculares cuja eficácia depende da existência revigorada da prisão, o centro nevrálgico que estende o poder de controle, com a possibilidade do reencarceramento se a expectativa comportamental dos controlados não confirmar o prognóstico dos controladores (SANTOS, 1985, p. 299)

Mesmo do próprio ato do seu decreto, o cárcere já funciona como exercício de poder, não no sentido de mitigar possíveis ofensas, mas de exercer controle fundamentalmente autoritário. Ferrajoli (2002, p. 446), por exemplo, sobre uma suposta necessidade de mitigar a fuga, aponta:

11Conforme Pacelli (2017, p.232), “o que é provisório é sempre a prisão, assim como todas as demais medidas cautelares, que sempre implicarão restrições a direitos subjetivos. A liberdade é a regra; mesmo após a condenação passada em julgado, a prisão eventualmente aplicada não será perpétua, isto é, será sempre provisória”.

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[...] a opção de fuga pelo imputado, forçando-o à clandestinidade e a um estado de permanente insegurança, é já por si só normalmente uma pena gravíssima, não muito diversa da antiga acqua et igni interdictio prevista pelos romanos como pena capital.

O simples contato com o sistema penal é o que já atribui uma pesada carga estigmatizante ao implicado, e não a sua condenação formal (ZAFFARONI, 2001, p.133). Inevitável mencionar os esforços do sociólogo Erwin Goffman de definir “estigma” como categoria de exclusão social:

Assim, deixamos de considerá-lo [o estranho] criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real. (GOFFMAN, 1988, p. 6)

Nesse diapasão, essa “marca”, no caso daqueles submetidos ao processo criminal — especialmente se, mesmo que temporariamente, chegaram a estar presos — transborda para todos os seus vínculos sociais, como investigaram Schilling e Miyashiro (2008, p. 248):

O estigma — que pressupomos cercar os presidiários — se estende para além do indivíduo encarcerado, passando para as pessoas que se relacionam diretamente com eles, seus familiares ou amigos, o que permite à sociedade considerá-los uma só pessoa. A sociedade os vê de maneira fundida: a mulher de presidiário ou o filho de presidiário. Com base nesses pressupostos, podemos concluir que o olhar estigmatizante que é direcionado à família do presidiário é uma extensão do estigma que o cerca.

Esse processo de estigmatização funciona como instrumento de marginalização, de manutenção de estruturas de poder, especialmente úteis às agências punitivas, e ao seu “uso desmedido da força para a neutralização social ou, até mesmo, para a eliminação física dos anormais” (CARVALHO, 2015, p. 363). Zaffaroni indica que as instituições, a lei penal e os agentes públicos que a executam formam um sistema penal complexo e integrado de subjugação, com legitimidade estatal, como se vê:

É necessário advertir que no sistema penal não se trata simplesmente de um acordo externo, mas também de sério “tratamento” integrado em um complexo processo de deterioração, cuja parte mais importante é feita pela

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prisão ou cadeia, e perfeitamente legalizado através de registros de reincidência, da possibilidade de impedir ou dificultar qualquer exercício de trabalho honesto por parte das agências do sistema penal que se ocupam de propagar o status do criminalizado, de privar de liberdade periodicamente a pessoa, convertendo-a em um “suspeito profissional”, de tomar os antecedentes como provas de culpa, inclusive por parte dos juízes, etc. (ZAFFARONI, 2001, p. 134)

Para o autor, a disciplina militarizada dos agentes penais parte de um exercício de poder repressivo, gerando uma sociedade de constante submetidos a violência interiorizada da autoridade. Essa repressão, ela própria, passa a configurar e moldar a vida social. Nesse sentido, possuiria o sistema penal um poder “militarizador” e “verticalizador-disciplinar”, isto é, um “poder configurador”, sobre as parcelas mais vulneráveis da população, bem como sobre determinados dissidentes (ou "diferentes") mais incômodos ou significativos (ZAFFARONI, 2001, pp. 23-24).

O cárcere, como expressão máxima da punição processual, serve então a uma forma de conformação social puramente repressiva, historicamente disciplinadora, conveniente ao modo de exploração capitalista dessas categorias sub-humanizadas. De acordo com Dário Melossi (2006, p. 44-45) :

A prisão se consolida então como dispositivo orientado à produção e à reprodução de uma subjetividade operária. Deve-se forjar, na penitenciária, uma nova categoria de indivíduos, indivíduos predispostos a obedecer, seguir ordens e respeitar ritmos de trabalho regulares, e sobretudo que estejam em condições de interiorizar a nova concepção capitalista do tempo como medida do valor e do espaço como delimitação do ambiente de trabalho. Delineiam-se aqui os contornos de uma economia política do corpo, de uma tecnologia do controle disciplinar que age sobre o corpo para governá-lo enquanto produtor de mais-valia e que, juntamente com outros corpos ‘cientificamente’ organizados, torna-se capital.

Se o advento da ação penal marca o imputado de forma irremediável, destituindo-o de seu valor social, vale refletir sobre quem são, de fato, os indivíduos subjugados a esse poder repressor e configurador do Estado, e sobre quais estigmas sociais eles já trazem consigo. Para tais, os marcadores de marginalização social já são prévios a qualquer contato com a justiça criminal, a qual, por sua vez, presumirão certos sujeitos como destituídos de “valor”.

No ocidente, toda e qualquer discussão em torno do sistema penal demanda, invariavelmente, reconhecer a herança escravista que o permeia. Em sua obra, Angela Davis (2011) descreve a passagem pelo sistema penal como um “branding

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social”, utilizando-se da significação histórica do termo12 para designar a um mecanismo que marca esses sujeitos com um estigma negativo que se acumula enquanto capital simbólico negativo. Especialmente para pessoas negras, esta “ferra” é permanente, e as acompanha ao longo da vida, impossibilitando sua reinserção no convívio social.

Logo, compreende-se, aqui, não somente a inegável dimensão penal do processo, como também sua instrumentalidade enquanto reforço do poder punitivo e autoritário do Estado. Ambos não derivam, em verdade, do “caos da segurança pública”, ou de uma crise temporária das instituições penais brasileiras, mas configuram, de fato, características inerentes aos sistemas penais, os quais servem a uma lógica de controle e de estratificação social, que os torna fundamentalmente ilegítimos. Leciona De Giorgi (2006, p. 36):

O controle do desvio enquanto legitimação aparente das instituições constitui, pois, uma construção social por meio da qual as classes dominantes preservam as bases materiais da sua própria dominação. As instituições de controle não tratam a criminalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em seu conjunto; ao contrário, por meio da reprodução de um imaginário social que legitima a ordem existente, elas contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de produção capitalista.

É com suporte nesse panorama sintético que se observa a deficiência de qualquer estudo acerca do processo penal que se limite, estritamente, a doutrina jurídica clássica. Com efeito, os alicerces da lei criminal não estão na realidade que ela tão brutalmente afeta. A recusa a uma comunicação com outras áreas do conhecimento busca justificar o Direito Penal como um fim em si mesmo, pretendendo-se ao seu isolamento, de modo positivista. Entretanto, quando do estudo do funcionamento prático e material das políticas criminais, desvela-se a real atuação do Direito Penal, enquanto uma ferramenta do Estado de exercício de seu poder autoritário, excludente e marginalizador, sem a possibilidade de quaisquer floreios legitimadores.

12O termo branding, em inglês, descreve o ato de marcar com ferrete em brasa, a ferra, prática até hoje comum para designar a posse de gado pelos pecuaristas. A expressão adquire também uma conotação histórica, ligada à escravidão, seja como tortura ou como delimitação da propriedade (no caso, o próprio escravo).

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3 ESTIGMATIZAÇÃO LGBT E SELETIVIDADE PENAL

Distanciando-se das discussões mais doutrinárias, passa-se a analisar como a realidade material é afetada pelo poder punitivo do Estado, em especial, como o processo penal modela então as figuras do crime e do criminoso, onde a estigmatização e o controle exercido pelo “processo-pena”, anteriormente explorado, é instrumental. Esses processos de criminalização têm alguns alvos específicos, e adiante, perceberemos como recaem sobre sujeitos LGBT e como andam paralelo aos próprios processos de marginalização.

Os discursos tradicionais legitimadores da processualística criminal, e o próprio Direito Penal em sua totalidade, apegam-se a uma suposta naturalidade das definições de crime e pena, como conceitos ontológicos anteriores à dogmática jurídica. A pena não é uma simples consequência do delito, nem pode ser entendida a partir do seu fim: ela é um fenômeno independente da sua concepção jurídica e dos seus fins sociais, e o que de fato existe, então, são sistemas de punição e práticas penais específicas, como elaboram Rusche e Kirchheimer (2004, p. 19). O próprio delito não tem conceito fora da norma penal, ele existe como um esforço normativo de criminalizar fatos — e, consequentemente, sujeitos — específicos.

As ciências criminais, em sua gênese, funcionam como resposta a uma demanda por racionalização do poder punitivo, de buscar uma legitimação para os instrumentos penais, sob o manto de controlar o poder punitivo do Estado Absolutista que o precedia. Esse esforço racionalizador, iluminista, cria novas categorias para antigas instituições de poder, como a prisão, e passa a definir o delito juridicamente (BATISTA, 2011, pp. 25-26). Assim, atenta Carvalho (2015, p. 25).

[...] as ciências criminais – concebidas como integração entre as técnicas dogmáticas do direito penal e processual penal, da criminologia e da política criminal –, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a afirmar os ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da Modernidade, produziram seu oposto, ou seja, colocaram em marcha tecnologia formatada pelo uso desmedido da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem gerado inominável custo de vidas humanas.

Lola Aniyar de Castro (1983, p. 53) discorre sobre a existência de uma função implícita da criminologia convencional, pois ela funciona como suporte e aparência científica ao exercício do controle social, sendo então, uma forma ela mesma de

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controle social. Discutindo ainda sobre o objeto do estudo criminológico, a autora argumenta que “as leis penais não são categorias sociais autênticas, algo que represente autenticamente a valoração do grupo. Elas representam mais o interesse de alguns, as crenças de alguns que constituem o grupo de cultura dominante” (CASTRO, 1983, p. 55).

Essa criminologia clássica, serviente ao exercício de poder de controle social, só reforçou então a naturalização das instituições punitivas e de seus conceitos fundantes, como o de crime e o de criminoso, afinal “o sistema penal de uma dada sociedade não é um fenômeno isolado sujeito apenas às suas leis especiais. É parte de todo o sistema social, e compartilha suas aspirações e seus defeitos” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 282).

Em via diversa, a criminologia crítica, surgida a partir da aproximação dos estudos marxistas com as ciências criminais, desconstrói esses conceitos e os enxerga como produto um processo de criminalização sofrido por determinados sujeitos, como leciona Vera Batista (2011, p. 84):

As contribuições do marxismo são fundamentais para uma ruptura metodológica no curso dos discursos sobre a questão criminal. É produzida uma passagem da fenomenologia criminal para os processos de criminalização, o olhar se estende para além do objeto, na tensão constante da luta de classes e a fúria devastadora do capital. Entram em jogo as relações entre ilegalidade e mais-valia, ilegalidades das classes trabalhadoras, os crimes contra a propriedade, as estratégias de sobrevivência, as relações entre a estatística criminal e o mercado de trabalho, a ideia de um aprisionamento desigual, articulado à repressão da classe operária, dos pobres e dos resistentes (...).

Faz-se necessária, então, uma abordagem que se valha dos ensinamentos da criminologia crítica, para que melhor sejam entendidos os processos de criminalização a que são submetidos sujeitos marginalizados — através, inclusive, do próprio processo penal, como já se expôs previamente — e a função que tais processos exercem no controle social do Estado contemporâneo.

Integram essas identidades marginais toda uma pluralidade de sujeitos historicamente criminalizados por agências punitivas de controle social, e pelos próprios estudos criminais, especialmente populações negras e pobres. Entretanto, o presente trabalho se propõe a estudar como esse olhar criminológico recai sobre sujeitos LGBT — Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Travestis — que não

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deixam, de qualquer forma, de se atravessarem por aqueles outros fatores de opressão. É Groombridge (1999, p. 534) quem atenta para a correlação entre os estudos de “desvios sexuais” e o esforço criminológico de categorizar o homo

criminalis: “[...] enquanto os sexólogos procuravam classificar o homem invertido como

diferente do homem normal, os criminólogos definiam o delinquente como anormal”.

3.1 Uma criminologia para os sujeitos LGBT do Brasil

Assim, o sociólogo que estuda o Brasil não sabe mais que sistema de conceitos utilizar. Todas as noções que aprendeu nos países europeus ou norte-americanos não valem aqui. [...] Seria necessário, em lugar de conceitos rígidos, descobrir noções de certo modo líquidas, capazes de descrever fenômenos de fusão, de ebulição, de interpenetração, noções que se modelariam conforme uma realidade viva, em perpétua transformação. (BASTIDE, 1975, p.15)

Zaffaroni (2001, pp. 34-35) indaga se teria sido a violência operativa forte, ou a falta de sutileza do que ele chama de sistemas penais “marginais”, que teria acarretado na melhor recepção e consequente contribuição para a criminologia da reação social, que será explorada adiante, nos países latino-americanos. Faz-se, nesse ponto, um breve exercício de procurar descentralizar, a fim de se desvencilhar, mesmo que timidamente, do caráter imperialista e colonial das discussões acadêmicas, especialmente, onde concerne questões penais ou criminais, além de procurar adaptar os estudos de criminologia queer estrangeira às subjetividades13 brasileiras.

Argumenta Castro (2005, p. 20):

[...]não existe uma criminologia latino-americana, mas uma

transnacionalização do saber criminológico (e, portanto, do controle social), de acordo com os modelos impostos pelos centros de poder localizados nos chamados países centrais, dos quais as sociedades científicas internacionais seriam os instrumentos de ordem e penetração.

13“No Brasil, parece arriscado referir-se a uma “comunidade guei”, tal como se podia fazer no Estados Unidos, por exemplo. Nossas expressões de homossexualidade são tantas, e com tal diversidade, que chegam a ser conflitantes. Numa mesma categorização tendem a se misturar discrepantemente homossexuais de todas as classes, profissões e estilos, desde profissionais de renome até pessoas à margem de tudo” (TREVISAN, 2018, p. 373).

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Existe uma espécie de força potencializadora dos discursos jurídico-penais e seus instrumentos repressivos e policiais em países “marginais” — fora do eixo Estados Unidos-Europa — que, em parte, advém da sua acrítica importação de modelos forâneos de política, ciência e conhecimento jurídico, produzindo resultados catastróficos: sistemas carcerários em uma hiperplasia caótica e crítica; onipresença de forças policiais repressoras e militarizadas; e morte e encarceramento em massa das populações pobres, especialmente de jovens negros.

São populações com composições étnica, racial, econômica e cultural muito distintas daquele eixo hegemônico, e formadas por processos históricos absolutamente divergentes, esses profundamente marcados por escravidões, genocídios, e, na história mais recente, regimes militares autoritários14. Assim, se faz um argumento por se pensar uma criminologia descolonizada, uma tentativa se desvencilhar da hegemonia europeia e estadunidense, que respeite esses processos históricos. Castro, sobre propor uma Criminologia da Libertação, questiona “Libertação de que?”, e responde a autora venezuelana:

Libertação das estruturas libertadoras. Libertação da ocultação das relações de poder e do funcionamento mascarado dos interesses. Libertação do discurso educativo, religioso, artístico, jurídico e criminológico vinculados às relações de poder. Libertação da razão tecnológica que traz um conceito artificial de desenvolvimento para nossos países. (CASTRO, 2005, p. 112)

Argumentar por uma criminologia descolonizada se mostra como tarefa penosa, e a concepção de uma criminologia descolonizada sob prisma dos estudos LGBT, ou ainda, queer, é ainda mais longínqua. Isso porque até as aproximações que podem ser encontradas são, fundamentalmente, intransponíveis sem maiores apagamentos do contexto histórico, social e político das populações LGBT’s brasileiras.

14Loic Wacquant (2001, p. 6), em sua “Nota aos leitores brasileiros”, discorre sobre abuso das forças policiais no Brasil: “essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a "subversão interna" se disfarçou em repressão aos delinquentes. Ela apoia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os '‘selvagens’ e os ‘cultos’, que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem”.

Referências

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