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3 ESTIGMATIZAÇÃO LGBT E SELETIVIDADE PENAL

3.1 Uma criminologia para os sujeitos LGBT do Brasil

Assim, o sociólogo que estuda o Brasil não sabe mais que sistema de conceitos utilizar. Todas as noções que aprendeu nos países europeus ou norte-americanos não valem aqui. [...] Seria necessário, em lugar de conceitos rígidos, descobrir noções de certo modo líquidas, capazes de descrever fenômenos de fusão, de ebulição, de interpenetração, noções que se modelariam conforme uma realidade viva, em perpétua transformação. (BASTIDE, 1975, p.15)

Zaffaroni (2001, pp. 34-35) indaga se teria sido a violência operativa forte, ou a falta de sutileza do que ele chama de sistemas penais “marginais”, que teria acarretado na melhor recepção e consequente contribuição para a criminologia da reação social, que será explorada adiante, nos países latino-americanos. Faz-se, nesse ponto, um breve exercício de procurar descentralizar, a fim de se desvencilhar, mesmo que timidamente, do caráter imperialista e colonial das discussões acadêmicas, especialmente, onde concerne questões penais ou criminais, além de procurar adaptar os estudos de criminologia queer estrangeira às subjetividades13 brasileiras.

Argumenta Castro (2005, p. 20):

[...]não existe uma criminologia latino-americana, mas uma

transnacionalização do saber criminológico (e, portanto, do controle social), de acordo com os modelos impostos pelos centros de poder localizados nos chamados países centrais, dos quais as sociedades científicas internacionais seriam os instrumentos de ordem e penetração.

13“No Brasil, parece arriscado referir-se a uma “comunidade guei”, tal como se podia fazer no Estados Unidos, por exemplo. Nossas expressões de homossexualidade são tantas, e com tal diversidade, que chegam a ser conflitantes. Numa mesma categorização tendem a se misturar discrepantemente homossexuais de todas as classes, profissões e estilos, desde profissionais de renome até pessoas à margem de tudo” (TREVISAN, 2018, p. 373).

Existe uma espécie de força potencializadora dos discursos jurídico-penais e seus instrumentos repressivos e policiais em países “marginais” — fora do eixo Estados Unidos-Europa — que, em parte, advém da sua acrítica importação de modelos forâneos de política, ciência e conhecimento jurídico, produzindo resultados catastróficos: sistemas carcerários em uma hiperplasia caótica e crítica; onipresença de forças policiais repressoras e militarizadas; e morte e encarceramento em massa das populações pobres, especialmente de jovens negros.

São populações com composições étnica, racial, econômica e cultural muito distintas daquele eixo hegemônico, e formadas por processos históricos absolutamente divergentes, esses profundamente marcados por escravidões, genocídios, e, na história mais recente, regimes militares autoritários14. Assim, se faz um argumento por se pensar uma criminologia descolonizada, uma tentativa se desvencilhar da hegemonia europeia e estadunidense, que respeite esses processos históricos. Castro, sobre propor uma Criminologia da Libertação, questiona “Libertação de que?”, e responde a autora venezuelana:

Libertação das estruturas libertadoras. Libertação da ocultação das relações de poder e do funcionamento mascarado dos interesses. Libertação do discurso educativo, religioso, artístico, jurídico e criminológico vinculados às relações de poder. Libertação da razão tecnológica que traz um conceito artificial de desenvolvimento para nossos países. (CASTRO, 2005, p. 112)

Argumentar por uma criminologia descolonizada se mostra como tarefa penosa, e a concepção de uma criminologia descolonizada sob prisma dos estudos LGBT, ou ainda, queer, é ainda mais longínqua. Isso porque até as aproximações que podem ser encontradas são, fundamentalmente, intransponíveis sem maiores apagamentos do contexto histórico, social e político das populações LGBT’s brasileiras.

14Loic Wacquant (2001, p. 6), em sua “Nota aos leitores brasileiros”, discorre sobre abuso das forças policiais no Brasil: “essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a "subversão interna" se disfarçou em repressão aos delinquentes. Ela apoia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os '‘selvagens’ e os ‘cultos’, que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem”.

Se parte dos conceitos identitários presentes no Brasil é fruto de importações — como é o caso da própria sigla “LGBT” — e hoje gozam de amplo reconhecimento popular, foi por passadas décadas de inserção ativa no vocabulário brasileiro, processo bem diverso das gírias e dialetos que são originários do país, principalmente nas periferias dos centros urbanos, a exemplo do pajubá, cuja matriz linguística, principalmente africana, não advém de uma importação, e sim, da representação da afrodescendência desses brasileiros. Assim, existem importações que parecem impossíveis por não serem conceitos tão facilmente reconhecíveis no país, como o de “queer”. A educadora Guacira Lopes Louro, de qualquer forma, faz o seguinte esforço de definir o vocábulo:

Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante — homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira ao centro e nem o quer como referência; um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2015, p. 7)

Por mais que o termo queer tenha sua importância e significação, vale considerar que, quando extraído do específico contexto estadunidense — do ressignificar de uma palavra historicamente pejorativa, das repercussões acadêmicas da Teoria Queer, até a atual composição dos grupos ativistas dos Estados Unidos — ao ser transposto para as realidades latino-americanas, não carrega as mesmas significações, e fazer um esforço conformativo das populações LGBT desses países, em toda a sua diversidade e história, à conceitos estrangeiros, será inevitável que muitas das narrativas sejam apagadas, pois são conceitos identitários que não necessariamente se transpõem para as identidades brasileiras. Enquanto queer é uma palavra de fácil reconhecimento e popularizada para norte-americanos, evoca estranheza em brasileiros, até mesmo na maioria da sua população LGBT.

mundo15, sendo o que mais mata suas pessoas transexuais16, e apesar do histórico confronto dessas populações com as instituições policiais, relação marcada por violência e repressão, há, comparativamente, pouca discussão na academia jurídica acerca do contato dessas populações com o Estado Penal. Esse apagamento é perigoso, pois se reverte em uma ilusão de igualdade, de uniformidade, que, se já não existe em nenhum outro aspecto da vida social desses sujeitos, também não existe na esfera punitiva. Para Baratta, a negação do “Mito da Igualdade” — mito de que o Direito Penal seria um Direito igual por excelência — é central na crítica criminológica, posto que:

a) o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensIdade desigual e de modo fragmentário; b) a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade. (BARATTA, 2002, p. 162)

Portanto, enquanto uma criminologia queer não poderia se transpor integralmente para a realidade brasileira, por hora, se faz necessária. Por todas as suas limitações, queer ainda evoca algum, mesmo que tímido, reconhecimento nas ciências sociais brasileiras, reflexo da repercussão de estudos como os da Guacira Lopes Louro. Enquanto a academia, que permanece reclusa e com imensas faltas representativas em seu corpo, limitar o avanço dessas discussões no contexto brasileiro, essa criminologia queer, com formulações da Teoria Queer sobre “heterossexualidade compulsória”17, é um ponto de partida que se apresenta relevante para esses estudos criminológicos. Como aponta Salo de Carvalho (2012, p. 160):

15Grupo Gay da Bahia. Assassinato de homossexuais (LGBT) no Brasil: relatório 2018. Salvador, 2018. Disponível em: <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2019/01/relatorio-2018-1.pdf>. Acesso em 31 de julho de 2019.

16Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-ranking-de- assassinatos-de-transexuais-23234780> Acesso em 5 de agosto de 2019.

17“Essa produção disciplinar do gênero leva a efeito uma falsa estabilização do gênero, no interesse da construção e regulação heterossexuais da sexualidade no domínio reprodutor. A construção da coerência oculta as descontinuidades do gênero, que grassam nos contextos heterossexuais, bissexuais, gays e lésbicos, nos quais o gênero não decorre necessariamente do sexo, e o desejo, ou a sexualidade em geral, não parece decorrer do gênero — nos quais, a rigor, nenhuma dessas dimensões de corporeidade significante expressa ou reflete outra. Quando a desorganização e desagregação do campo dos corpos rompe a ficção reguladora da coerência heterossexual, parece

[..] entendo possível afirmar que os níveis micro e macrocriminológicos de compreensão das violências e dos processos de criminalização, desenvolvidos pelas referidas tendências criminológicas (teoria do etiquetamento, criminologia crítica e criminologia feminista), preparam o terreno para que se possa pensar a possibilidade de uma criminologia queer ou, no mínimo, de um entrelaçamento das teorias queer com a criminologia (queering criminology).

Por fim, seria então essa heterossexualidade compulsória, modelo normalizador que define pela diferença: o “homossexual”, a “transsexual”, são expressões que só existem pelo contraste com a norma, que inclusive aduzem caráter de classificação médica, de psiquiatrização, de racionalização da exclusão, e adquirem maior importância na transição entre o pecado da sodomia das instituições religiosas para legitimação científica das instituições psiquiátrico-penais.

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