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“Estamos agarrados ao dorso de um tigre”. Michel Foucault, As palavras e as coisas.

Benedito Nunes em sua obra O dorso do Tigre faz uma reflexão muito pertinente à nossa argumentação, pois compara o trabalho que Michel Foucault faz em As Palavras e as

coisas como correspondente a certas intenções gerais da Crítica da razão pura de Kant. A

primeira seria uma arqueologia das ciências humanas, enquanto a segunda uma arqueologia das ciências da natureza. Foucault faria, portanto, uma arqueologia da arqueologia. Isto é, repetição de Kant.

A comparação se dá nos seguintes termos:

Tal como o arqueólogo, que parte de traços materiais de uma cultura, para reconstituir a forma de vida a que se integram, Kant partiu, na Crítica da razão

pura, das proposições físico-matemáticas, para chegar às formas da sensibilidade

e do entendimento. Na articulação entre essas formas encontrou ele a base epistemológica, que legitima, por um lado, o conhecimento das ciências da natureza, e invalida, por outro, o alcance objetivo da metafísica tradicional. Analogamente, Michel Foucault procura determinar, em As Palavras e as coisas, o que foi que possibilitou o conhecimento das ciências humanas (NUNES, 2009, p.61).

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Analogamente, a Filosofia de Michel Foucault é a Filosofia de Kant. Ou é como se fosse a Filosofia de Kant. Como já foi dito no início desse capítulo, é uma repetição e uma reprodução negativa. O anverso do idealismo. A analogia é percebida claramente quando se toma por base que em Kant:

(...) as ciências da natureza são legítimas, se elas comportam resultados positivos, é porque a razão se atém, em cada uma delas, aos limites da experiência possível, ajustando-se às intuições da sensibilidade e aos conceitos puros do entendimento, os quais por sua vez, concordam com a natureza e a atividade do espírito. A

positividade da matemática, da astronomia e da física fundamenta-se, por

conseguinte, num certo nível das funções do espírito humano, nível este que corresponde ao grau de legitimação do conhecimento científico pela experiência. Aquilo que há de positivo nas ciências é o que se encontra de positivo no funcionamento das faculdades de que dispomos para conhecer. É, portanto, na constituição do sujeito cognoscente que se deve ir buscar, segundo Kant, a constituição da positividade própria às ciências físico-matemáticas (NUNES, 2008, p. 61 e 62).

E não é tese análoga a que Foucault defende? Estruturalmente a mesma tese: que é na figura do homem (forjada pela Antropologia) que devemos buscar a positividade das ciências humanas. É, portanto, no sujeito empírico que está a constituição da positividade.

Foucault nos indica, no prefácio de As Palavras e as coisas, a teoria então desenvolvida por ele nessa obra:

(...) não compete à história das ideias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer ideias, constituir- se ciências, refletir-se experiências em Filosofias, formar-se racionalidades, para talvez se desarticularem e logo desvanecerem. Não se tratará, portanto de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade... (FOUCAULT, 2007, p. XVIII) Grifo nosso.

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Nunes compara Kant com Foucault nos seguintes termos,

Já não se trata mais do a priori constitucional de Kant, mas o problema da positividade persiste numa formulação aparentemente kantiana (...) Ao admitir o

a priori histórico Foucault admite, igualmente, que a verificação, necessária para

comprovar se o que afirmamos na linguagem concorda ou não com o que se passa na experiência, tem variado, no decorrer do tempo, conforme o gênero de positividade próprio de cada época (NUNES, 2008, p. 62).

Foucault usa a expressão “a priori histórico” para determinar o objeto do tipo de descrição que empreende – uma descrição arqueológica. O que se vê normalmente no adjetivo histórico é a diferença em relação a Kant. Apesar da filiação kantiana de Foucault ser afirmada pelo próprio filósofo, é na distinção entre os filósofos que se apega parte significativa dos comentadores. Uns os diferenciam, outros nem percebem a relação entre as Filosofias de ambos. A relação entre Kant e Foucault é vista apenas como uma influência dentre tantas outras e não como uma motivação constante e uma metodologia idêntica que gera teorias análogas.

Ao nos debruçar sobre a Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant e, acompanhando a leitura de Foucault dessa obra, percebemos claramente que a expressão “a

priori histórico” indica a filiação kantiana e não o divórcio entre essas Filosofias. Mantendo

a mesma estrutura kantiana, Foucault vai à busca de outras condições de possibilidade. A busca pelo a priori histórico é certamente instigada pela Antropologia que situa o homem como cidadão do mundo e já acena para uma espécie de a priori da existência.

O a priori histórico, efetivamente, não é idêntico ao a priori transcendental, mas é análogo123. Pois, numa dada medida ambos designam a condição de validade epistêmica ou vigência semântica dos juízos, no caso de Kant, e dos discursos/enunciados, no caso de Foucault. Ao buscar as condições de possibilidade históricas dos enunciados, as suas condições de emergência, Foucault indica, assim como Kant, as formas que os discursos

123 E aqui vale uma observação das relações efetivas metodológicas entre Kant e Foucault. A analogia tem um papel central na produção da Filosofia kantiana e na validação de um dado tipo de juízos em que a apresentação, exibição, não pode se dar de forma direta. Kant produz numa dada esfera uma Filosofia do

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são os princípios segundo os quais se efetivam, substituem, transformam ou desaparecem. Foucault afirma que o a priori formal e o histórico não são do mesmo nível nem da mesma natureza (2004, p. 146). Acrescentamos à afirmação foucaultiana: são análogos.124

O que Foucault chama de a priori histórico é o elemento que se revela como condição concreta para que algo ocorra, para que algo seja. É o elemento central da descrição arqueológica que desembocará nos enunciados. A positividade, na acepção que Foucault, não mais pertence às ciências, a título de um ideal regulador do conhecimento, mas em uma necessidade geral, a que estão subordinados tanto o sujeito como o objeto do conhecimento. Essa positividade articula e condiciona o conhecimento na medida em que por meio de conceitos operatórios, organizados em sistemas que se implantam, como afirma Benedito Nunes (2008, p.63), em certas curvas preferenciais da história as possibilidades da experiência e consequentes expressões linguísticas.

Foucault emprega o conceito “positividade” referindo-se à análise discursiva dos saberes, valendo-se para tanto da metodologia da arqueologia. Determinar a positividade de um saber diz respeito à dispersão e à exterioridade. Em uma palavra, isso significa que determinar a positividade de um saber não consiste em referir os discursos a uma totalidade de significação, nem a interioridade de um sujeito ou uma consciência. Pode-se afirmar que a positividade de um saber é o regime discursivo ao qual pertencem as condições de exercício da função enunciativa. Como afirma Foucault em A Arqueologia do saber: a

positividade desempenha o papel do que se poderia chamar de um a priori histórico

(FOUCAULT, 2004, p. 144).

Os diversos sistemas, segundo Foucault, são epistemológicos e não apenas históricos, ou não realmente históricos. Em Foucault a positividade em que se fundamentam os discursos apenas intercepta o processo histórico, sem nele encontrar origem.

124 Foucault usa em História da loucura a expressão “a priori concreto” e em outros textos a priori conceitual.

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A arqueologia das ciências humanas, questão central em As Palavras e as coisas, nos leva a pensar na forma desconcertante com que Foucault usa o termo positividade (positivité). A positividade é uma rica metáfora com conotação espacial. Foucault vê de forma peculiar a aplicação desse conceito aos sistemas de conhecimento e às ciências humanas. A compreensão desse conceito, principalmente a forma como que esse aparece em As Palavras e as coisas parece ser fundamental para compreender as relações entre Foucault e Kant. Benedito Nunes afirma ser necessário fazer uma espécie de arqueologia da arqueologia para revelar o que há aí.

Segundo Nunes,

(...) a origem histórica da arqueologia das ciências humanas de Foucault, que tenta sobrepor-se à história das ideias. Sob muitos aspectos verdadeira, na ordem dos problemas que levanta, essa arqueologia repousa numa secreta sedimentação histórico-filosófica, por ela mesma absorvida, e que procuraremos identificar. Ainda que só de maneira esboçada, tentaremos pondo em prática uma espécie de

arqueologia da arqueologia, analisar os componentes doutrinários que entram

nessa sedimentação (NUNES, 2008, p. 63).

A positividade tem relação com o(s) a priori(s) de cada época – relação entre coisa e representação. A positividade em que nasce o homem é uma positividade dupla, pois o homem é colocado como objeto de conhecimento e ao mesmo tempo como sujeito ou consciência transcendental, o elemento positivo do saber se torna elemento de ambiguidade.

A analítica da finitude empreendida na modernidade, junto com as ciências humanas, define a disposição antropológica125 da epistémê moderna. Com o surgimento da biologia, da economia e da filologia e, consequentemente, com o desaparecimento do

125 A positividade traiçoeira que Nunes faz referência, em que o homem é objeto ao mesmo tempo em que é sujeito transcendental, nos lembra do destino atormentado da razão pura que tem a tarefa de fazer uma crítica a si, ou seja, à metafísica, sendo que essa mesma tem uma disposição metafísica. Há uma cisão aí. Além disso, identificar a epistémê moderna a uma disposição antropológica da mesma forma que Kant havia identificado anteriormente uma disposição metafísica.

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discurso clássico (lugar de encontro entre o ser e a representação), aparece o homem: objeto e sujeito, ambos finitos126.

(...) a mesma finitude do homem que Foucault vê o elemento fundamental da positividade que presidiu, em fins do séc. XVIII, a formação das ciências humanas. A questão que Kant levantou, nos limites da Ciência da Natureza do séc. XVIII, e graças à crítica da experiência feita por Hume, foi sem dúvida, a questão dos juízos sintéticos a priori. Mas, o desenvolvimento desse problema chegaria, ainda dentro do pensamento kantiano, a fixar-se na oposição irremediável entre o homem e a natureza, que permitiu conceber o sujeito humano como duplo empírico-transcendental, ser natural e empírico por um lado, e ser moral e transcendental por outro. Estaria assim aberto o caminho que, passando por Husserl, vai de Kant a Heidegger, e ao longo do qual a analítica do conhecimento se transformaria na analítica da finitude ou da existência. Em Foucault a analítica da finitude integrará a arqueologia das ciências humanas (NUNES, 2008, p. 75).

Kant é o verdadeiro paradigma da concepção filosófica de Foucault. O parentesco de Foucault com Kant se define, portanto, ao longo de uma linha metodológica e temática, em que se delineiam duas arqueologias – uma idealista e outra materialista, ambas transcendentais. Foucault é um capítulo na história do kantismo.

Em As Palavras e as coisas: uma arqueologia do nascimento das ciências humanas,

Foucault trata do nascimento da “forma sujeito”, ao mesmo tempo em que indica as transformações e o provável desaparecimento de tal forma. Foucault defende que cada época tem um conjunto de regras, valores, verdades, uma epistémê responsável pela criação de seus próprios objetos, sujeitos, noções e conceitos. É o caso do “homem”, constituído como objeto de saber e tornado sujeito transcendental pelas Filosofias somente na Modernidade e em nenhuma outra época e em nenhum outro solo epistemológico. Essa tese é resultado da arqueologia ou reflexo da atitude crítica.

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