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Figurações do sujeito moderno – tempo e espaço em Vigiar e punir de Foucault e na Estética transcendental de Kant – inversão

“Divina comédia das punições: é um direito elementar ficar-se fascinado até o riso perdido em face de tantas invenções perversas, tantos discursos cínicos, tantos horrores minuciosos. Desde os aparelhos antimasturbatórios para crianças até os mecanismos das prisões para adultos, desenrola-se toda uma cadeia desencadeadora de risos inesperados que nem a vergonha, nem o sofrimento ou a morte conseguem calar (...). [Foucault] parece-nos ser o primeiro a criar esta nova concepção de poder que se procurava sem se conseguir encontrar nem enunciar”.

G. Deleuze, Foucault.

O nascimento de uma das ideias mais caras à Modernidade nasce com todas as condições de efetivação de sua morte já determinadas, a noção de sujeito. Enquanto o sujeito transcendental de Kant é construído no séc. XVIII delineia-se a sua morte. O sujeito exposto no idealismo transcendental é anunciado com tamanha autonomia, independência e centralidade que até a responsabilidade pela criação de si, da natureza e do próprio mundo à sua volta é tarefa sua. Com Kant, a típica figura do sujeito moderno nasce. No entanto, menos de dois séculos depois, ficará evidente na Filosofia de Michel Foucault, que essa

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autonomia não se realizaria, ou ao menos não se realizaria em sua totalidade, pois a forma

sujeito seria extinta e as condições de possibilidade da extinção já estavam dadas no próprio

período de sua constituição. E é na explicitação dessa tese que veremos mais um dos muitos usos que Foucault faz da Filosofia kantiana.

Em As Palavras e as coisas a morte do homem é anunciada. Com o aparecimento da psicanálise, da etnologia, da formalização da linguagem e da literatura tem fim a

epistémê do século XVIII. Tal epistémê, como indicamos no capítulo anterior, teria como

traço delineador a Antropologia. Segundo Foucault, tal epistémê está mergulhada no sono antropológico. As teorias humanistas (existencialistas, idealistas, marxistas) teriam criado um homem racional e criativo, livre e autoconsciente, artífice de seu futuro. Esse homem, segundo Foucault, não existe fora da positividade que o forjou. O eu proclamado está devorado por estruturas biológicas, psicológicas e sociais e não passa de uma ficção, um

átomo fictício. O sono antropológico fez com que o sujeito humano fosse visto como

possuidor de liberdade, responsabilidade, poder de fazer a história, história essa que teria um sentido, um destino, um telos.

A tarefa de Foucault é despertar o pensamento do sono antropológico127 , concluída a tarefa teria destronado o eu, o sujeito, e, consequentemente sua autodeterminação e autotranscedência. Em poucas palavras, trata-se de inverter a direção que estavam indo os saberes sobre os homens, identificando e explicitando estruturas onívoras no sujeito. Dissolução do homem128.

O processo de desantropologização da história, premissa básica de A Arqueologia

do saber, se dá não apenas na produção dessa obra, mas ao longo de toda a obra de

Foucault. Apesar da crítica à razão antropológica, a problemática de Foucault é o sujeito e, sem dúvida, a formação da subjetividade ou dos processos de subjetivação ou ainda o dos modos de subjetivação. O sujeito para Foucault não é uma substância e sim uma forma: forma-sujeito. E sua Filosofia é a tematização dessa problemática (e suas implicações) sem antropologizações.

127 Assim como Hume fez com Kant.

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Foucault é conduzido ao longo de sua trajetória a uma história das práticas nas quais o sujeito aparece não como instância de fundação, mas como efeito de uma constituição. Partindo do pressuposto que os modos de subjetivação são (coerentes com sua teoria) na verdade, modos de objetivação do sujeito, isto é, o modo como o sujeito aparece como objeto de uma determinada relação. Os modos de subjetivação e objetivação são dependentes um do outro, seu desenvolvimento é mútuo, concomitante, uma vez que ele se subjetiva na modernidade, objetivando-se.

Como afirma Fonseca:

De maneira geral, pode-se dizer que Foucault pretende estudar as formas de constituição do indivíduo moderno. Quando se fala em formas de objetivação e formas de subjetivação, é sempre em relação à constituição do indivíduo. Pensar, portanto, nos processos de objetivação é pensar em aspectos da constituição do indivíduo. Da mesma forma que pensar nos processos de subjetivação também é pensar em aspectos dessa constituição. A meu ver, os mecanismos de objetivação e os mecanismos de subjetivação concorrem, simultaneamente ou não, para os processos constitutivos do indivíduo, cuja genealogia é o objeto dos trabalhos de Foucault (FONSECA, 2007, p.24).

A obra de Foucault possibilita estabelecer a constituição do indivíduo como sujeito e como objeto na modernidade. O sujeito se constitui como objeto na medida em que é vitimado pelas práticas da cultura que está inserido que vão lhe dando forma. O sujeito se constitui como sujeito na medida em que está vinculado a uma identidade que lhe é atribuída como sua. O que Foucault faz é explicitar as condições de possibilidade (histórico-culturais-materiais) dessa formação.

Se pararmos um pouco neste ponto e refletirmos como exatamente Foucault faz isso no interior de sua Filosofia perceberemos mais uma vez a presença de Kant. Primeiramente, essa descrição dos modos de subjetivação e objetivação remeterá as teses de Kant, expostas na Crítica da razão pura, acerca da dualidade da natureza do “eu penso” que se por um lado é sujeito do conhecimento, por outro é objeto do conhecimento de modo que são as condições subjetivas (sensíveis e lógicas) que permitem que esse seja, isto é, que possibilite que o “eu penso” seja fenômeno. Em Kant os modos de subjetivação são modos de

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objetivação, pois o que consideramos externo só é devido ao que consideramos interno. Por outro lado, sem o externo o interno não seria despertado.

Além desse ponto há outro em que mais uma vez observa-se a maneira criativa com que Foucault se apropria da Filosofia de Kant. Em Foucault o indivíduo é resultado de um processo de constituição que se efetiva numa certa determinação específica de uso do tempo e do espaço. A disciplina, como técnica de poder, que forma indivíduos úteis e dóceis na modernidade se efetiva por meio dos usos do tempo e do espaço. O poder se concretiza sobre o indivíduo por meio da imposição de tipos específicos de espaços e elaborações específicas dos atos temporais129. Tempo e espaço em Foucault são as condições de possibilidade concretas de formação desse indivíduo.

O século XVIII guarda uma revolução na forma de pensar, o nascimento de outra forma de pensar. O marco desse nascimento é a chamada revolução copernicana realizada por Kant. O que faz Kant? Desloca a questão do “acesso” à realidade, pelo qual se procura resolver a possibilidade de conhecimento a priori dos objetos por meio de uma submissão necessária do sujeito ao objeto, propondo a possibilidade do conhecimento a partir de uma investigação sobre as faculdades humanas do conhecimento. E afirma que é o sujeito quem legisla e constitui o objeto, e é deste modo, em um estudo do sujeito, que Kant funda o conhecimento humano. O sujeito forma o objeto, eis a inversão proposta pelo filósofo.

Foucault preservará a tarefa e tese kantianas, mas às avessas e em um campo material. O que faz Foucault? Uma nova revolução copernicana, em que a questão filosófica (e do conhecimento) é novamente deslocada, pela qual se procura por em destaque as condições de possibilidade do conhecimento através de uma submissão necessária do sujeito ao a priori histórico. O sujeito é formado. Há mais uma virada metodológica aqui.

Em As Palavras e as coisas e A Arqueologia do saber o a priori histórico aparece como um corpo de enunciados ou a conjugação de elementos conceituais e práticos de um

129 Toda a terceira parte da obra Vigiar e punir é dedicada à descrição desse uso moderno do tempo e do espaço.

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enunciado de um determinado tempo e lugar que torna possível qualquer positividade, inclusive o indivíduo, ou o sujeito. Foucault postula uma espécie de domínio transcendental que condiciona o saber, mas que, ao contrário de Kant, é não-subjetivo e variável. Foucault, assim como Kant, introduz uma série de novos problemas filosóficos, e dessa forma inventa um “novo” método histórico de fazer Filosofia kantiana do saber. Há aqui, sem dúvida, um kantismo paradoxal.

A tese de Foucault de um sujeito formado pelos usos do tempo e do espaço inverte as intuições sensíveis kantianas (tempo e espaço) o que possibilitará explicitar a gênese da formação objetiva desse sujeito, temos como resultado uma reflexão original sobre a forma-

sujeito. Em Kant e em Foucault tempo e espaço são ingredientes essenciais para a

constituição da forma-sujeito, apesar de terem estatuto bastante diversos em um e em outro. Na Estética transcendental tempo e espaço são condições subjetivas para a constituição dos fenômenos, da experiência e do próprio sujeito. Intuições puras a priori da nossa estrutura cognitiva que dão formas às coisas e as tornam fenômenos. Em Vigiar e punir, tempo e espaço são condições objetivas para a constituição da forma-sujeito, da experiência, da subjetividade, elas são realidades concretas da vida em sociedade que dão formas às coisas e suas relações. No caso do indivíduo moderno, dá a ele forma da utilidade e da docilidade.

O uso das “mesmas” categorias filosóficas num campo invertido (de um idealismo transcendental para uma espécie de materialismo transcendental), é feito por Foucault com maestria, nos indica um movimento similar ao que Marx fez com Hegel quando “vira de ponta-cabeça” o conceito de dialética ou ao que Nietzsche faz com o platonismo, criando um platonismo invertido. Exploraremos essa hipótese no nosso último capítulo que tratará dos procedimentos de produção de Filosofia.

Importa agora explicitar essa ideia da inversão promovida por Foucault, indicando com precisão nos textos o uso que Kant e Foucault fazem das categorias tempo e espaço, bem como a similitude do papel dessas categorias no construtivismo presente nas ideias dos dois filósofos. Kant explicitando as condições subjetivas para a construção dos fenômenos, incluindo o sujeito. Foucault explicitando as condições objetivas para a construção da

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forma-sujeito e, portanto, da subjetividade. Ambos defendendo a subjetividade-objetividade como interdependentes, isto é, em que uma condiciona a outra.

Ademais, a consequência desse movimento filosófico (que mantém as categorias invertendo seu campo ou seu domínio) é a de que o tipo de indivíduo que resulta de cada uma das Filosofias é também invertido. A autonomia do sujeito kantiano - que se constrói e constrói o mundo à sua volta com sua própria subjetividade e em grande parte com sua sensibilidade (aqui nos referimos a sensibilidade transcendental – espaço e tempo) – é traço essencial do indivíduo moderno. Segundo Foucault, esse traço aparece como completa

heteronomia, pois esse é construído como objeto por uma exterioridade temporal e espacial.

O sujeito kantiano submete os objetos. O indivíduo foucaultiano (nesse momento) é objeto, sujeito (pois, se sujeita) ao poder. Em Kant a subjetivação cria a objetivação. Em Foucault a objetivação cria a sujeição em forma de subjetividade. A heteronomia é explicitada em Vigiar e punir por meio da exposição exaustiva dos atos temporais e espaciais.

Pode-se perguntar: Vigiar e punir pode ser lida por esse viés? Seguramente, basta que o objetivo seja pensar a produção de pensamento filosófico. A análise da obra mostra uma microfísica do poder e um investimento político no corpo, a obra trata da formação de

subjetividades na modernidade. Uma nova concepção de poder é explicitada ali130. Um poder que cria o real antes de reprimir. Produz verdade, antes de reprimir. A repressão pressupõe sempre uma disposição ou um dispositivo no qual opera. Há nessa obra, como afirma Deleuze, uma concepção de espaço social tão nova como as dos espaços físicos e

matemáticos atuais (1986, p. 43). Há na obra Vigiar e punir a indicação que o real é

construído com condições específicas para que surjam determinados fenômenos (conteúdos que surgem das formas) como a delinquência, por exemplo. O campo do poder é um campo

formador de sujeitos e outros conteúdos. Como uma espécie de transcendental131. Deleuze afirma:

130 E essa forma tem vinculação direta com Kant como indicaremos mais à frente.

131 “Transcendental significa possibilidade ou uso a priori do conhecimento” (CRP, B81). Kraemer (2011) questiona se não haveria uma semelhança entre o conceito de Abertura em Foucault com o transcendental de Kant.

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Vigiar e punir dá um novo passo. Considere-se uma “coisa” como a prisão: é

uma formação de meio (o meio prisional), é uma forma de conteúdo (o conteúdo é o detido). Mas esta coisa ou esta forma não remete para uma “palavra” que a designaria, nem para um significante de que ela seria o significado (1986, p.49).

(...) É certo que a prisão como forma de conteúdo tem os seus próprios enunciados, os seus regulamentos. Igualmente, o direito penal como forma de expressão, enunciados de delinquência, tem os seus conteúdos: pelo menos um novo tipo de infrações (...). E as duas formas estão sempre a entrar em contato, a insinuar-se reciprocamente, a retirar segmentos uma da outra: o direito penal está sempre a levar a prisão e a fornecer prisioneiros, enquanto a prisão reproduz incessantemente a delinquência, faz dela um “objeto” e realiza os objetivos que o direito penal concebia de outro modo (...). Existe pressuposição recíproca entre as duas formas. E, no entanto, não há forma comum, não há conformidade, nem sequer correspondência (DELEUZE, 1986, p. 51).

Deleuze continua sua argumentação com uma indagação que nos leva diretamente ao ponto que queremos chegar: Vigiar e punir levanta dois problemas que A Arqueologia

do saber não podia levantar - haverá em geral e fora das formas, uma causa comum

imanente ao campo social? Como uma disposição prévia que ajustasse as duas formas e

produzisse casos concretos? Permitamo-nos por um momento pensar nessa disposição como uma espécie de transcendental (repleto de condições) que gera o fenômeno (conteúdo). Permitamo-nos ver o instrumental kantiano e seu uso em outras bases: a forma, aqui indicada organiza matérias, forma ou finaliza funções. As instituições em Foucault são matérias formadas (kantianamente falando).

Dito isso, nas partes que seguem, pretendemos indicar em Kant e em Foucault esse processo de construção de matérias formadas (em que tempo e espaço são fundamentais) e defender a tese de uma espécie de subversão do transcendental kantiano em Foucault.

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4.1 – Kant e a explicitação das condições subjetivas para a construção dos