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“Que uso sério pode-se fazer de Nietzsche? Dei cursos sobre Nietzsche, mas escrevi pouco sobre ele”. Michel Foucault

Diversas interpretações consagradas sobre a Filosofia de Foucault procuram em Nietzsche sua origem e inspiração76. Procuram em Nietzsche a mola propulsora que leva Foucault a fazer Filosofia, a metodologia (genealógica) e até mesmo os temas. Talvez por isso, Judith Revel, Dicionário Foucault, no verbete Immanuel Kant - afirma que Kant está estranhamente presente nas duas extremidades do percurso filosófico de Foucault. Provavelmente, Nietzsche não causaria o mesmo estranhamento.

O que é indicado como extremidade do percurso por Revel é primeiramente (como indicamos no primeiro capítulo de nosso texto) Foucault produzindo uma introdução à

Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant, sua Tese complementar. Isso se dá nos

anos 60. O outro ponto da extremidade está nos anos finais de sua produção, 1982-84, ele dedica, ao texto Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? de Kant um tratamento duplo: primeiramente um curso no Collège de France, que começa com Kant (curso publicado – Le gouvernement de soi et des autres) e o segundo texto é O que são as

luzes?77.

“Estranhamente” Kant está presente no início e final do percurso? Seguramente, não. Na verdade, estranha é essa afirmação. A tradição de interpretação que leva Foucault a Nietzsche como fundamento e outras fontes filosóficas ou até mesmo em outras áreas, não vê o significado da presença de Kant nessa Filosofia. E isso é fruto de uma leitura filosófica superficial.

76 É o caso de Castro (2009) que insere Foucault na história do nietzscheanismo. Ver verbete Nietzsche. 77 Que é extrato do curso. Há dois textos com esse título, tratando da mesma temática.

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Ao realizar uma pesquisa aprofundada sobre esse aspecto da Filosofia de Foucault percebemos que Kant não está apenas no início e final do percurso filosófico do autor. Como esperamos demonstrar em nossa tese, a presença de Kant é constante. E tal presença e permanência ficam mais evidentes ao se identificar o modelo kantiano de fazer Filosofia usado por Foucault, isso somado à presença das inúmeras referências e usos que Foucault faz de Kant em seus textos, torna a referência direta a Kant no início e fim de seu percurso algo absolutamente esperado. Deve-se considerar a presença direta de Kant em vários momentos da obra de Foucault e considerar a presença indireta de Kant (em forma de apropriação) em toda sua obra, Kant é pano de fundo e o modelo kantiano é a fôrma da Filosofia de Foucault. Dessa maneira, é possível perceber a verdadeira relação existente entre essas Filosofias, aproximar os objetivos centrais dessas duas Filosofias e perceber as muitas coincidências temáticas.

Mergulhando nas reflexões de Foucault sobre a Aufklärung vê-se claramente que há nas duas Filosofias, a de Kant e a de Foucault, o propósito de fazer uma Filosofia crítica que indique as condições de possibilidades da experiência, e que seja um desvelamento dos elementos transcendentais78 que tornam possível tal experiência; além disso, há nas duas Filosofias a denúncia da tirania da qual pode ser capaz um dado saber e a necessidade de criar freios ou limites para os usos desse poder. Sem freios ou limites o sujeito será afetado negativamente pelos saberes e terá sua autonomia ferida, profundamente ferida. Tese de Kant. Tese de Foucault.

Revel se contradiz ao dizer que “estranhamente Kant está presente” no início e fim da obra de Foucault para na sequência no mesmo verbete dizer que a presença kantiana no início e fim da reflexão foucaultiana é “bastante coerente”. E parece também não ter claro o sentido do termo transcendental e suas possibilidades de sentido, visto que afirma que Foucault é extremamente duro com qualquer perspectiva transcendentalista. Segundo a autora ele é duro com a possibilidade de fundar uma Filosofia na descoberta de elementos

78 Na próxima parte dessa tese explicitaremos os elementos necessários para indicar que também em Foucault há um uso do transcendental, nesse caso um transcendental-histórico.

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a priori que excederiam o conhecimento - e viriam fundar por aí mesmo sua possibilidade (REVEL, 2011, p. 174).

O comentário é de fato controverso. Foucault faz uma Filosofia a partir de a priori históricos e, portanto, a noção de a priori não é um problema para ele. E em Kant (e na Filosofia transcendental) o a priori não excede o conhecimento, mas o segundo é constituído pelo primeiro.

De qualquer maneira, independente de Revel, a tese de que Foucault recusa o transcendental é reforçada por algumas frases do próprio Foucault acerca desse tema. Em O

que são as Luzes? Foucault afirma que sua crítica não é transcendental. Mas, não podemos

ignorar a compreensão de Foucault a partir da leitura do Opus postumum do que é uma Filosofia transcendental para compreender essa afirmação.

Isso por si só seria suficiente para afastar Foucault de Kant? Certamente, não. No mesmo trecho do texto Foucault vincula a Filosofia transcendental ou crítica transcendental à fundamentação da metafísica, como não pretende fazer metafísica propõe algo diferente do que vê em Kant. Bem, se considerarmos que Kant não elabora uma fundamentação da metafísica, e que Foucault só lê o transcendental dessa forma devido à leitura de Heidegger sobre Kant, veremos que é possível manter o que estamos defendendo aqui: ambos fazem uma Filosofia transcendental. Mesmo que Foucault tenha vinculado o transcendental kantiano à metafísica.

Como afirmamos anteriormente, as aproximações estão sempre diante de perigos, encontramos ao longo da pesquisa diversas negações de Kant em muitos âmbitos da reflexão de Foucault, ao começar pela denúncia deste ter livrado o Ocidente do sono dogmático mergulhando-o no sono antropológico.

Não obstante, ainda na negação e ainda na denúncia a Kant encontramos a Filosofia de Kant presente. O primeiro texto de Foucault acerca de Kant, a saber, sua Tese

complementar, é exemplo cabal da entrada de Kant na Filosofia de Foucault. Na

aproximação entre a Antropologia e a Crítica em que Foucault apresenta uma como o anverso da outra (uma num plano empírico e outra no transcendental) parece estar fundamentada a própria Filosofia de Foucault vindoura: dar cabo ao que Kant inicia, porém, fazendo uma curva no que diz respeito à Antropologia. Metodologicamente,

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percebemos com a leitura da Tese complementar, a Filosofia de Foucault como o anverso (reverso) da Filosofia kantiana, não em um plano meramente empírico, e sim transcendental-histórico, anverso no plano, mas semântico na base e no campo geral do pensar.

O que procuramos demonstrar ponto a ponto e em obras e aspectos diferentes é que apesar das negações, o que se nega é sempre conteúdo e não forma. Não se pode entender o uso das categorias kantianas apenas por seu aceite em termos de conteúdo ou da Filosofia de Kant como uma visão de mundo, quando na forma são as categorias kantianas que são postas em analogia, invertidas, subvertidas ou colocadas em paralelo por Foucault. Foucault usa a mesma fôrma de produção de categorias que Kant usou. A fôrma kantiana é preservada e certamente responsável pela própria Filosofia de Foucault. Várias serão as perspectivas exploradas em nosso trabalho para tratar exatamente desse tipo de influência.

Nos deteremos ao longo da tese em alguns momentos no conceito de transcendental. Por agora, basta indicar que o uso do conceito a priori histórico indica que Foucault opera um tipo de transcendental. Foucault não abandona em nenhum momento a perspectiva transcendental, visto que busca as condições de possibilidade do discurso em a priori históricos. Busca o tempo todo por um conjunto de regras que são imanentes a uma prática e a definem em sua especificidade (FOUCAULT, 2004, p.52). Como afirmamos ao longo de toda nossa tese, a crítica que Foucault faz a Kant está numa camada mais profunda que essa apontada por Revel. E tal crítica não afeta a adoção do mesmo modelo de Filosofia.

Entretanto, apesar da incompreensão do kantismo de Foucault por parte de comentadores ou estudiosos de Foucault, no verbete indicado do dicionário de Revel há a constatação da presença de Kant na Filosofia de Foucault e isso é sintomático79: Kant está na espreita, basta olhar com atenção. Foucault se debruça, ao longo de sua obra, diretamente sobre os temas da invenção de si e da (auto-hetero)produção da subjetividade e as implicações desse processo, da possibilidade dos homens criarem um acontecimento80, se debruça sobre a atitude crítica como sendo o fazer filosófico mais próprio e busca, como

79 Isso ocorre em outros dicionários ou vocabulários sobre a Filosofia de Foucault. 80 Trataremos desse conceito mais à frente.

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já afirmamos, as condições de possibilidade para a verdade e os conhecimentos (em muitos casos particulares) e de que maneira os saberes se relacionam com o poder e vice-versa81. Esses temas kantianos saltam aos olhos e são pistas para revelar a verdadeira relação entre os dois filósofos, no entanto, poucos seguem tal pista.

Os temas tratados por Foucault, como afirma Revel, se configuram como uma espécie de “ontologia crítica de nós mesmos” em que se situará a discussão sobre a produção de acontecimentos. No detalhe percebemos, ao pensar no que se denomina ontologia crítica de nós mesmos, que Foucault indica que ela, a ontologia crítica, não é uma teoria ou um tema, e sim uma atitude.

Como afirma Foucault:

Parece-me que esta [a Aufklärung) é, inclusive uma maneira de filosofar(...) É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um éthos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e a prova de sua ultrapassagem possível (FOUCAULT, 2000, p. 351)82

Aqueles que identificam a presença de Kant na Filosofia de Foucault e se permitem fazer uma aproximação entre os dois filósofos, indicam como referência primária os textos em que Foucault trata diretamente de Kant, em tais textos estaria a fonte das leituras dessas pesquisas. Como indicado na introdução e no primeiro capítulo desta tese, a Tese

complementar não fez parte de muitas pesquisas pelos motivos já expostos. Os textos que

dão base para indicar a presença de Kant são normalmente, para a maioria dos estudiosos de Foucault, os dedicados à questão das Luzes, logo, os textos que Foucault fala diretamente e de maneira ampla em Kant.

Apesar deste não ser o ponto básico de exploração de nossa pesquisa: dizer o que Foucault disse sobre Kant, é inegável a importância desses textos para Foucault e não é por

81 Em O governo de si e dos outros Foucault trata da obra O Conflito das Faculdades. Ao ler a discussão de Kant sobre as relações entre as faculdades e o estado, entre as faculdades superiores e inferiores compreendemos mais um foco de inspiração temática e novamente em Kant.

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acaso que dedicamos a primeira parte de nossa tese a esses momentos de Foucault tratando diretamente de Kant. Esses materiais, se lidos buscando o alcance do que está sendo dito ali e os momentos em que isso foi dito, revelam a relevância que o tema da Aufklärung tem para Foucault. Revela-se com a entrada nesses textos uma forma de fazer Filosofia e o pertencimento de Foucault a essa forma ou modelo filosófico. Esses textos são centrais para compreender os objetivos da Filosofia de Foucault.

Nesse capítulo, apresentaremos as principais ideias e teses defendidas por Foucault nesses textos sobre as Luzes, textos que versam principalmente sobre o sentido da

Aufklärung e seu impacto na compreensão da modernidade. Especificamente, nos

referiremos às aulas iniciais da obra O Governo de si e dos outros, os textos O que são as

Luzes? e a conferência Qu’est-ce que la critique83. O intuito central: explicitar o papel da crítica no pensamento de Foucault, colocando-o fazendo Filosofia no interior do éthos crítico.