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Nos últimos anos com a publicação dos cursos que Foucault ministrou no Collège de France entre 1970 e 1982 foi possível fazer uma análise adequada da noção de poder nessa Filosofia99. Com a publicação os textos sobre Kant, considerados muitas vezes textos menores na produção de Foucault, se mostram fundamentais para a compreensão dessa Filosofia. Uma das teses que é possível refutar (vindas de algumas interpretações consagradas das teorias de Foucault) a partir da consideração desses textos é que essa noção de poder seria devedora de Nietzsche. A chamada “hipótese Nietzsche” chama a atenção para a produção dos dispositivos de poder e orienta para que se leia o conceito de poder em Foucault com lentes nietzscheanas e que se conceba o poder como “luta’’ ou como “guerra”. Quando temos contato com os textos de Foucault sobre Kant temos uma base para compreender o poder que coloca a vontade de saber e a vontade de verdade em uma segunda camada de compreensão dessa noção. A chamada “hipótese Nietzsche” defende que Foucault usa Nietzsche para seu método e temas, deve considerar uma “hipótese Kant”: uma hipótese anterior.

Afirma Foucault,

O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários ou do compromisso de um frente a outro que da ordem do governo (...) O modo de relação próprio do poder não há, pois que buscá-lo, do lado da violência ou da luta, nem do lado do contrato ou do nexo voluntário (que no máximo só podem

99 É importante verificar nas interpretações sobre o poder se os leitores de Foucault consideram ou não esses textos.

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ser instrumentos) mas, do lado desse modo de ação singular, nem guerreiro nem jurídico, que é o governo (FOUCAULT, 2006, p. 237)100.

O poder está vinculado ao governo, a governamentalidade, na ação singular do governo. É com um grupo de cursos, tais como Em defesa da sociedade, Nascimento da

biopolítica, Do governo dos vivos, Segurança território e população e Subjetividade e verdade, e como não poderia deixar de ser, O governo de si e dos outros, que a noção de

poder em Foucault pode ser mais bem compreendida e novamente ao estudar esses textos voltamos a Kant.

Não apenas voltamos a Kant quando pensamos no poder com relação à autonomia, mas também quando entendemos que em Foucault o cuidado de si está intimamente ligado ao governar: governar a si mesmo. O cuidado de si tem vinculação com a atitude do sujeito ante as diferentes formas de sujeição que é ou pode ser exposto. É a ação do sujeito que está em questão, ação sobre si. Que cada um tome para si a tarefa de se constituir a si mesmo. Essa é a fórmula que está na base da concepção de poder de Foucault, e ela é kantiana101.

Em janeiro de 1978, Foucault inicia o curso Segurança, território e população em que a noção de governamentalidade é tratada (conceito que permite recortar um domínio específico de relações de poder em relação aos problemas do Estado). A leitura que Foucault faz dos textos de História de Kant ocupará papel fundamental nesse movimento que será de maneira clara identificada com o projeto crítico.

O curso trata da gênese de um saber político que tem como elemento central de sua apresentação a noção de população e os mecanismos que podem assegurar a sua regulação. O chamado Estado de população aparecerá como um novo enfoque da noção já conhecida de Estado territorial. Com a nova ênfase aparecerão novos problemas, novos objetivos e novas técnicas políticas. É a noção de governo que serve de fio condutor às reflexões de

100 Ditos e escritos IV – edição brasileira.

101 Historicamente, é grega antes de ser kantiana, mas em Foucault é primeiramente kantiana, pois vai aos antigos (ao menos em pesquisa sistematizada) depois de ir a Kant.

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Foucault sobre o tema. O fio condutor do governo levará Foucault à noção de governamentalidade.

Para Foucault a governamentalidade é uma dada maneira de ação, como a conduta de um conjunto de indivíduos esteve implicada no exercício do poder soberano (FOUCAULT, 1993, p.83). Na discussão da governamentalidade a temática do homem permanece e dessa vez é vista a partir da noção de população. A própria discussão da Antropologia que pensa o homem em uma perspectiva cosmopolita pode ser um antecedente dessa noção. O homem é figura da população. Assim como Kant, Foucault não tratará do indivíduo, mas do cidadão cosmopolita. Foucault fará um deslocamento do indivíduo para a população. A governamentalidade aparecerá para denominar o regime de poder instaurado no século XVIII, cujo elemento central é a noção de população. Ela é a somatória das técnicas de governo subjacentes à formação do Estado moderno.

As noções de governo e governamentalidade têm relação direta com a conduta e com a condução dos indivíduos, enquanto figuras da população. Isso está indicado no primeiro capítulo do nosso trabalho, mesmo sem explorar de maneira suficiente essa temática em nossa tese, certamente encontramos na Tese complementar de Foucault e, consequentemente na Antropologia de Kant as bases para o nascimento da noção de população, tal como é tratada aqui.

Ainda vale ressaltar, como uma última referência importante nesse momento, que Foucault parte de Kant no curso Subjetividade e verdade quando afirma que apresentará nesse curso uma investigação sobre os modos instituídos do conhecimento de si e sobre a sua história. A pergunta que o move é como a experiência que se pode fazer de si mesmo e o saber que se pode adquirir de si mesmo e o saber que deles formamos podem ser organizados. As técnicas de si são apresentadas como fonte de investigação para essa pergunta. Novamente a Antropologia de Kant está à espreita.

Como afirma Foucault,

O fio condutor que parece ser o mais útil, nesse caso, é constituído por aquilo que poderia ser chamado de “técnicas de si”, isto é, os procedimentos, que, sem

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dúvida, existem em toda civilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si. Em suma, trata-se de recolocar o imperativo do “conhecer-se a si mesmo” que nos parece tão característico de nossa civilização, na interrogação mais ampla e que lhe serve de contexto mais ou menos explícito: que fazer de si mesmo? Que trabalho operar sobre si? Como “se governar”, exercendo ações onde se é o objetivo dessas ações, o domínio em que elas se aplicam, o instrumento ao qual podem recorrer e o sujeito age? (FOUCAULT, 1993, p.110). [SV] Grifo nosso.

Para além do tratamento das noções de governo e de governabilidade, Michel Senellart (1995) afirma que Foucault faz uma crítica da razão governamental. Em conferência ministrada em 1979 nos EUA102 Foucault identifica a tarefa da Filosofia no ato de fazer uma crítica da razão política e evitar consequentemente os abusos dessa razão.

Segundo Foucault,

“(...) Dito de outro modo, a partir de Kant, o papel da Filosofia foi o de impedir a razão de ultrapassar os limites daquilo que é dado na experiência; mas, a partir desta época, (...) o papel da Filosofia foi também o de vigiar os abusos de poder

da racionalidade política (...)” (FOUCAULT, 2006, p. 181)103.

A razão que diz livremente sem freios o que é o poder deve ter um papel limitador de contrapoder, procedimento crítico por excelência. A razão deveria desmontar os mecanismos fazendo uma análise da racionalidade que está em vigência e dizer até onde ela é ou não legítima. É no meio dessa crítica da razão governamental, ou uma crítica da racionalidade política, que Foucault segue sua tarefa.

A noção de governabilidade está em um contexto moderno:

Esta racionalidade, nas sociedades ocidentais modernas, caracterizava-se por apresentar duas faces, uma individualizante e outra totalizante. Tinha sua origem na ideia cristã de um poder pastoral encarregado dos indivíduos, para conduzi- los, com paciência e firmeza, em direção à salvação, e na ideia de razão de Estado, que aparece no século XVI, como princípio de fortalecimento do poder estatal. Estas duas tendências vinham se articular, no século XVIII, na teoria do Estado de polícia, ou seja, de um Estado que tende a aumentar o seu poder, cuidando, de uma maneira minuciosa e metódica, da felicidade de seus súditos (de onde o nome de Estado de bem-estar, Wohfahrtsstaat, pelo qual é também

102 Omnes et singulatim: vers une critique de la raison politique. Ditos e escritos IV da edição brasileira. 103 Ditos e escritos IV da edição brasileira.

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designado). A implantação de técnicas pastorais no quadro do aparelho de Estado: tal era, para Foucault, a matriz da razão política moderna. Propunha então chamar com a estranha palavra “governabilidade” o processo que tinha conduzido da pastoral cristã ao Estado de polícia e que se prolongava até nós. O “governo” não era a simples instrumentalização da força de um Estado cada vez mais compacto, mas uma figura original do poder, articulando técnicas específicas de saber, de controle e de coerção (SENNELART, 1995, p.2)

Há uma racionalização do poder e em busca dessa racionalização que vai Foucault com sua crítica. Como resultado há a afirmação de que não há exterioridade em relação ao poder, sempre se está em suas malhas, afinal o sujeito é produto desse processo. A ética como cuidado de si vai garantir ao sujeito que apesar de estar em suas malhas o sujeito não precisa ser prisioneiro do poder. A crítica é uma forma apaziguada de luta. É nesse contexto que em mais uma retomada insistente de Kant, Foucault fará uma crítica do liberalismo. Foucault desconfia da razão e suas recorrentes recaídas dominadoras.