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Arquitetura, paisagem e “encantamento” (1900-1918)

No documento Raul Lino: arquitetura e paisagem (1900-1948) (páginas 125-156)

Capítulo 2. Circunstância e proposta

2.3 Arquitetura, paisagem e “encantamento” (1900-1918)

O plausível projeto de casa apalaçada apresentado em 1899, ao concurso do Pavilhão de Portugal para a Exposição Internacional de 1900, em Paris, foi segundo Raul Lino “um atrevimento (…) iniciativa arrojada” para a qual o “terreno não estava por cá ainda preparado, e mesmo que estivesse!”. Estas palavras do autor sobre o curso dos acontecimentos que acercaram a seleção do pavilhão a edificar no Quay d’Orsay, em Paris, em 1900, foram publicadas na sua autobiografia, na precisa data em que o arquiteto cumpria o seu nonagésimo aniversário (21 Nov. 1969), um ano antes da inauguração da exposição retrospetiva da sua obra na Gulbenkian (1970) e da polémica que se lhe sucedeu.

A narrativa de Raul Lino em 1969, traduzia o espírito renovador subjacente ao seu projeto do pavilhão submetido a concurso em 1899, que derrotado em favor de Ventura Terra, ganhou então a simpatia de Rafael Bordalo Pinheiro, que o publicou “no primeiro numero da sua revista «a Paródia»”. Sucedendo ao António Maria, cujo projeto editorial havia terminado, A Paródia, pelo seu fino humor contado em traços grossos, continuava a caricaturar a conjuntura política nacional e em particular a burguesia cativa do estrangeirismo francês, contrapondo-lhe os valores de autenticidade da cultura portuguesa, acolhendo a simpatia do Povo, de certa aristocracia e alta burguesia culta.

Nesse sentido, a publicação n’A Paródia daquele Paço do Sul, de Raul Lino, providenciou- lhe a clientela culta e abastada que lhe permitiu construir a sua primeira obra de encantamento, através de uma arquitetura de “sonho” e “poesia,”416 para além da que lhe encomendariam os amigos do círculo de António Rey Colaço, certos que o jovem arquiteto traduziria “em pedra” a “música” e o espírito que ali se cultivava. No período de tempo que definimos para as duas primeiras fases da obra Raul Lino (1900-1918; 1918-1934) – altura em que ingressa na Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais – a sua obra vai fecundar sobretudo entre clientes privados e em particular na arquitetura doméstica, sem prejuízo de a entender em contexto e construir também, a paisagem.

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Sem obra para apresentar, Raul Lino só podia contar com a divulgação mediática da sua proposta para conquistar clientela, e nesse sentido a publicação do seu projeto de pavilhão português n’A Paródia, rendeu créditos logo quatro meses depois, com a publicação do seu primeiro esboço na revista A Construção Moderna (n.º6, 16 Abr. 1900), com honras de capa. A redação da revista, querendo proporcionar aos seus leitores “ocasião de apreciarem os progressos e aptidões dos novos, que procuram distinguir-se em manifestações de considerável valor [apresentava] hoje um bello projecto de fachada de estylisação portuguesa, de que é autor o ex.mº sr. Raul Lino, artista ultimamente evidenciado pelas interessantes provas que apresentou no concurso para os projectos destinados às instalações portuguesas na exposição de Paris.”417 Nessa revista declara Raul Lino nas palavras da redação que “o projecto em questão não procura representar um determinado estylo histórico; procura apenas imprimir um carácter nacional ao edifício, empregando alguns motivos architectonicos de antiga tradição portuguesa.”418

28. Raul Lino: Fachada de estylisação tradicional portuguesa (1900) projeto: Perspetiva e Planta419

417

Fachada de estylisação tradicional portuguesa, in A Construção Moderna, Ano I, n.º 6 (16 Abr. 1900), p. 3.

418

Id. Ibid.

419

Raul Lino começava a afirmar o seu espaço na cena nacional, numa direção de modernidade radicalmente diferente daquela que se vinculava na latitude do espaço europeu meridional influenciado que era pelo cosmopolitismo francês e pelas Beaux Arts, e Portugal não era exceção. Nessa aspiração civilizacional de progresso eram os bolseiros portugueses especializados na École Nationale et Speciale de Beaux-Arts de Paris, os arquitetos escolhidos para projetar a obra pública e privada.

Ventura Terra regressa a Portugal um ano antes de Raul Lino e nesse mesmo ano de 1896, ganha o concurso internacional para a reconstrução da Câmara dos Deputados no Convento de São Bento, vindo a desenvolver profícua atividade profissional, modernizando edifícios pombalinos, respondendo a novos programas burgueses no eclético estilo Beaux-Arts parisiense, e projetando para a Lisboa que se expande para Norte, equipamentos, residências particulares e edifícios de serviços e lazer.420 Promove o emprego do ferro, do vidro e do betão-armado e o funcionalismo na arquitetura nacional, já próximo do desenvolvimento Art Nouveau que Mackintosh exportou para o continente, movimento que fez o pleno na exposição de Paris de 1900, na direção do futuro e das vanguardas.

O referido “projecto de fachada de estylisação portuguesa” publicado n’A Construção

Moderna (n.º6, 16 Abr. 1900), e as duas imagens representadas na capa são bem

esclarecedoras do intuito do arquiteto e a partir delas podemos inferir bem o propósito da campanha que então declara os seus princípios, honestos e claros no sentido de conferir um estilo português à nossa construção citadina, que então conhece um forte impulso. É bem visível a primazia da planta que se reflete na organização do espaço centrado no átrio distribuidor, funcionando os espaços anexos como vasos comunicantes sem recurso ao corredor que caracteriza a construção corrente e que Raul Lino combaterá sem tréguas. A organização fluída do espaço reflete-se na fachada em deliberada animação rítmica que resulta da variedade de vãos e das suas dimensões relativas, de sacada e de peito com clara hierarquização no plano nobre dos espaços sociais (1.º andar).

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Bem representativa da arquitetura eclética e cosmopolita de Ventura Terra, em Lisboa, será a obra de remodelação estética e funcional de um edifício habitacional do plano pombalino de Eugénio dos Santos, para sede do Banco Lisboa & Açores (1906). Anteriormente projetou a reconstrução da Assembleia Nacional (1895-), Santuário de Santa Luzia (Viana do Castelo, 1903), Sinagoga de Lisboa (1905), e posteriormente alguns equipamentos relevantes como o Liceu Camões (Lisboa, 1907), Liceu Pedro Nunes (Lisboa, 1909), a Maternidade Alfredo Costa (1908), o palacete H. Mendonça (R. Marquês de Fronteira, Lisboa, 1909), o Cinema Politeama (1912-1913), entre outros. Cf. França, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XIX. Lisboa, vol II, (1967) p. 139.

É ainda evidente uma riqueza volumétrica do conjunto que se obtém através de um corpo saliente que se autonomiza do plano principal e se sobre-eleva em dois pisos acima do beirado, introduzindo uma verticalidade que contraria a horizontalidade dominante da composição, com presença da alpendrara e com forte efeito no claro-escuro, elementos que serão estruturantes na sua proposta ulterior. Dá-se também uma clara redução da altura relativa entre pisos que se confronta com a típica construção de rendimento, à direita na imagem, argumento que será recorrente na sua proposta e que aproxima a construção à tradicional expressão chã da nossa arquitetura meridional, É ainda clara a afirmação da marcação horizontal do beirado e das coberturas inclinadas com telha de canudo.

O “projecto de fachada de estylisação portuguesa,” embora aparentemente eclético supera bem o âmbito e título do artigo que imaginamos mais na esfera do editor, porque de facto e pelos motivos já aduzidos, a casa organiza-se do interior para o exterior como a planta bem evidencia. Contudo o exercício releva para o propósito de nacionalização da arquitetura que Raul Lino evidencia sem teorizar a matéria para um leitor que se deverá deixar encantar pelo ambiente projetado, concebendo-o não como representação de “um determinado estylo histórico” 421 mas como composição agregadora de “alguns motivos architectonicos de antiga tradição portuguesa.”422

Nele estão bem evidentes os princípios que o arquiteto plasmará em A nossa Casa (1918), nos esquemas desenhados que ilustrarão o seu pensamento sobre a casa citadina. A planta é em si reveladora do revolucionário sentido espacial da proposta de Raul Lino, que se virá a evidenciar com clareza na casa Monsalvat, no próximo artigo que publicará naquela revista. Embora se trate de uma construção urbana, limitada nos alinhamentos e polígono de implantação, não deixa de ser revelador da sua conceção espacial, o centrar-se no “Átrio” como se refere Raul Lino a este espaço nuclear na sua conceção, que é distribuidor para os restantes espaços, com reflexo na eliminação do corredor423, refletindo bem as “lições de bom gosto”424 da revista The Studio e em particular a conceção da Artistic

House de M. H. Baillie Scott.

421

Fachada de estylisação tradicional portuguesa, in A Construção Moderna, Ano I, n.º 6 (16 Abr. 1900), p. 3.

422

Id. Ibid.

423

Cf. Lino, Raul, Para o Senhor Arqto Pedro Vieira de Almeida, 3 fl. (1970). [Carta]. Acessível na Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Av. Berna.

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Raul Lino prosseguirá o tema da tradição portuguesa, com a publicação da “Casa de estylisação portuguesa do Sr. Rey Collaço: Em construção no Monte Palmella (Mont’Estoril)”, n’A Construção Moderna, (n.º 28, 16 Mar. 1901). Num mosaico de cinco desenhos distribuídos na capa daquela revista, dois alçados, uma perspetiva exterior da construção, uma interior do Átrio e a planta do piso térreo, dão uma leitura bem compreensiva do que será a obra. Entre aqueles desenhos, as perspetivas à mão livre relevam uma habilidade de desenhador sensível que permitem intuir na sua leitura de exteriores, uma volumetria desmultiplicada, com forte presença de elementos penumbrares e da arquitetura moçárabe, que o influenciaram nas suas primeiras excursões pelo Alentejo. Já a perspetiva interior do Átrio evidência a dinâmica nucleada centrada no átrio, em que a escadaria assume toda a importância funcional e cénica na distribuição entre os espaços íntimos e sociais da casa, com enfoque cénico. Mas é na planta que Raul Lino mais inova, na distribuição nucleada dos espaços que irradiam do átrio para o exterior, franqueando as fronteiras físicas da construção.

29. Raul Lino: Casa de estylisação portuguesa do Sr. Rey Colaço (1901) projeto: Alçados, Perspetivas e

Planta425

425

De novo com o tema da tradição portuguesa por fundo, Raul Lino publicou imagens de “Typos de casa de estylisação tradicional” n’A Construção Moderna, (n.º 38, 16 Ago. 1901), precisamente 5 meses após a publicação da “Casa de estylisação portuguesa do Sr. Rey Collaço”, naquela revista. Numa organização gráfica muito semelhante, distribuem-se cinco desenhos na capa daquela revista, a saber, quatro perspetivas exteriores e uma planta, referentes a quatro projetos do arquiteto, que “figuraram na última Exposição da Sociedade Nacional de Bellas Artes, e valeram ao seu auctor a medalha de 3.ª classe” 426. Uma das imagens refere-se a uma construção urbana, que poderia ser de habitação coletiva, definidora de espaço público e marcada pela composição horizontal chã animada por um ritmo vertical de expressivos contrafortes inclinados que vão definindo o afastamento dos dois planos da fachada, definidos, numa composição original. Na mancha esquerda inferior da capa, a perspetiva de uma casa é particularmente evocativa a Sintra, pela simbólica da chaminé cónica, intuição que se confirma com a representação em plano distante da serra, do palácio da pena e do castelo dos mouros.

30. Raul Lino: Typos de casa de estylisação nacional (1901) projeto: Perspetivas e Planta427

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Cf. “Typos de casa de estylisação tradicional” in A Construção Moderna, Ano II, n.º 38 (16 Ago. 1901), p. 3.

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Na mancha direita da capa, uma perspetiva com a respetiva planta, e outra perspetiva no plano inferior, remetem-nos para duas plausíveis construções unifamiliares em circunstâncias territoriais bem diversas. Provavelmente a construção superior e a planta são do sul e a inferior da região das beiras, atentando às diferentes tradições construtivas, como o ritmo das fenestrações e a inclinação das coberturas e á presença do moçárabe ou não, assim como pelas características das espécies arbóreas. Analisando aqueles desenhos presenciamos uma e a mesma vontade de construção de paisagem através da arquitetura que é independente da circunstância, da maior ou menor prevalência do elemento natural. Em meio urbano e perante a regularidade geométrica do traçado, ou “tabuleiro”428 segundo John Ruskin, a arquitetura afirma-se contrapondo-lhe o valor da sua particularidade. Em ambientes onde prevalece o pitoresco a arquitetura é concordante com o entorno, contudo não se lhe reduz de todo na expressão plástica autoral.

Raul Lino exerce a todo o tempo nos seus projetos uma manifestação clara da vontade do artista criador que não sendo imune ao meio é mais expressão de “impulso” ou da qualidade da abstração (Worringer, 1907) que sujeição imediata à “adaptação”429 ou qualidade de mimese da empatia (Worringer, 1907). Há uma geometria espiritual de proporções entre a arquitetura e o meio mas também entre o propósito e a expressão da síntese e nesse sentido concordamos com a leitura de Pedro Vieira de Almeida quando afirma que a proposta do arquiteto não configura uma adesão sentimentalista à “Mãe-

Natura.”430 Faz Raul Lino depender a génese da obra de arquitetura, em face da sua maior adesão ou distanciamento do meio, num juízo que é de ordem inefável. Esse é um dos aspetos que diferencia a sua produção dos coetâneos e que será talvez o mais evidente na leitura de continuidade da sua obra de arquitetura e paisagem.

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John Ruskin (1819-1920) sintetizou bem o seu pensamento sobre a degradação da paisagem britânica, na 2.ª palestra que proferiu em Edimburgo (Lectures on Architecture and painting: Delivered at Edinburgh, in November, 1853) servindo-se do plano de expansão da cidade, a «New Town» de James Craig (1739- 1795), e comparando-o a um «tabuleiro». Ruskin critica-lhe a regularidade, a uniformidade da arquitetura e a monotonia da ornamentação, contrapondo-lhe o exemplo da cidade medieval de Verona, elogiando-lhe a irregularidade da malha urbana, a assimetria, a diversidade, a particularidade da arquitetura e o estilo gótico, cometendo ao conjunto da arquitetura doméstica, o principal papel no embelezamento de uma cidade. Cf. Choay, Françoise L’urbanisme: Utopies et Réalités. Paris: Seuil (1965), p. 159/167.

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“O primeiro destes elementos é o indefinível príncipio que poderemos chamar impulso, desejo, anseio, misteriosa disposição procriadora que se manifesta na profundeza do nosso subconsciente, ainda sem qualquer propósito reconhecível”, desenvolvendo-se o segundo elemento “de maneira mais ou menos aparente, mais ou menos clara e que se patenteia aos nossos sentidos no processo que chamaremos de adaptação”, concorrendo ambos “no criar e formar de qualquer obra de Arte, e – digamos de passagem – são também implícitos na própria essência de beleza.” Cf. Lino, Raul, Espírito na Arquitetura, op. cit., p. 226.

430

Nestas três primeiras publicações de projetos de Raul Lino n’A Construção Moderna, estava bem patente o seu entendimento da tradição portuguesa que se evidenciava na reinterpretação das estruturas culturais de lugar (espaço) e memória (tempo da história), ou seja, da tradição. Tradição esta entendida como memória perpetuada por gerações e decantada do erro, segundo Raul Lino citando Ortega y Gasset,431 incorporando-se dinamicamente na síntese, na arquitetura em contexto, numa direção de continuidade, que é antitética da rutura que os coetâneos progressistas, vinham a operar. Na altura em que foram publicados os “Typos de casa de estylisação tradicional,” a sua terceira capa n’A

Construção Moderna, (n.º 38, 16 Ago. 1901) provavelmente a “Casa de estylisação

portuguesa do Sr. Rey Collaço: Em construção no Monte Palmella (Mont’Estoril)” publicada naquele periódico (n.º 28, 16 Mar. 1901), já estaria concluída, se não que.

Esta casa foi encomendada pela terceira Duquesa de Palmela, D. Maria Luísa Domingas Sousa Holstein, que doou o terreno de sua propriedade e custeou de raiz o projeto e a obra para a oferecer a Alexandre Rey Colaço, como incentivo para fixar o insigne pianista em território luso: “Monsalvat destinava-se a casa de verão, espécie de retiro onde se ia fazer

música”432. Coincidência foi a primeira obra efetivamente realizada por Raul Lino433 destinar-se ao pianista que o acolheu no seu círculo musical e artístico quando regressou de Hanôver em 1897, “no lar acolhedor da antiga Rua Nova de S. Francisco de Paula[,] o melhor guia espiritual que se lhe poderia ter oferecido.”434 Neste sentido Raul Lino foi, digamos, arquiteto em ca[u]sa própria, sem limites materiais ou espirituais para a conceção da obra, que não fosse o impulso musical e artístico do seu amigo. Em 1901, Alexandre Rey Colaço mudava-se da Rua Nova de S. Francisco de Paula, em Lisboa, para Monsalvat, iniciando-se então nas palavras de Lino “A era trinufal do Ersatz.”435 Monsalvat era na mitologia medieval o mítico castelo que Titurel construiu na floresta do Monte Salvaz para guardar o Santo Graal e a lança de Cristo, e a simbologia óbvia, era que aquela casa era o reduto do maior tesouro espiritual, a saber, o das artes e da Gesamtkunstwerk de Wagner.

431

Raul Lino pronunciou-se sobre este sentido da tradição citando um extrato do Prólogo para franceses (A rebelião das massas, Ortega y Gasset, 1930) no estudo que apresentou no Museu Nacional de Arte Antiga em 16-04-1951 e na escola Superior de Belas artes do Porto, em 11-05-1951. Cf. Lino, Raul, Arte, Problema Humano: a propósito da sede da O.N.U, op. cit., p. 45.

432

Cf. Almeida, Pedro Vieira, Raul Lino – Arquiteto moderno, op. cit., p. 140.

433

Cf. Pimentel, Diogo Lino, Biografia in Raul Lino: Exposição retrospetiva da sua Obra, op. cit., p.8.

434

Lino, Raul, Evocação de Alexandre Rey Colaço, op. cit., p. 8.

435

“A campanha para o aportuguesamento da casa portuguesa (…) iniciada há quase três quartos de século e que teve também, por origem, um tanto de reacção nacionalista, provocada pelo período de negação que tingiu o nosso grande florescimento literário do último período do século XIX. Reacção contra o estrangeirismo, igualmente. Mas sobretudo, o que este movimento representa na sua acção mais esclarecida é a revelação de um forte anseio por restabelecer a perdida harmonia no mundo da nossa arquitectura.

(…) A campanha começou talvez mais ostensivamente com a apresentação do referido projecto no concurso para o nosso pavilhão na Exposição Universal de paris, em 1900. Além da apreciação feita por Rafael Bordalo Pinheiro, só mereceu palavras elogiosa num artigo do jornalista Manuel Penteado.

Pouco depois, apareciam uma pequena casa em Cascais, imaginada com sobriedade pelo aristocrata Bernardo Pindela [Conde de Arnoso, 1894] que repetia as linhas de uma casa minhota das muito simples e, mais ou menos pela mesma época, uma outra casita no Monte Estoril, inspirada nos motivos alentejanos de tradição e sabor mouriscos [Raul Lino, Monsalvat, 1901]. Seguiram-se entre outras obras, a moradia do livreiro editor Manuel Gomes [Raul Lino, Casa Silva Gomes, 1902] e outra do apaixonado aguarelista Roque Gameiro [alterações Raul Lino, Casa Roque Gameiro, cerca 1900], esta na Porcalhota (hoje Amadora). E assim se começou a abrir caminho à reflexão sobre o decoro das cidades e o respeito devido à Natureza, no capítulo da Arquitectura”436

Adiante na sua autobiografia Raul Lino vem precisar a latitude da campanha que para além da “revelação de um forte anseio por restabelecer a perdida harmonia no mundo da nossa arquitectura” é também “um anseio de recuperar a harmonia perdida da paisagem, das cidades de Portugal, o desejo de restabelecer o decoro, pelo menos nas aparências, que deve ter o cenário da nossa vida.”437 Este precisar da amplitude da campanha de Raul Lino, não é de somenos para um homem e autor que é absolutamente comedido e rigoroso no uso da palavra, e neste precisar encontramos justa expressão para o entendimento que a sua obra de arquitetura é também de paisagem.

436

Cf. Lino, Raul, Raul Lino visto por ele próprio, op. cit., p. 29-31.

437

Naquele ano de 1901, era nos arredores da capital com centro na cidadela de Cascais, remodelada em 1871 para instalações de veraneio por D. Luís, numa tradição prosseguida pelo príncipe herdeiro, D. Carlos, que se distribuía a moradia veraneante da corte e da aristocracia elegante, irradiando na direção dos Estoris. Contudo a paisagem atlântica de Cascais vinha sofrendo alterações no seu perfil, que em ecletismos românticos vários transformavam-na sob o crescente peso de figurinos estrangeiros e descontextualizados da nossa tradição arquitetónica. Nesse sentido acusou Ramalho Ortigão, em 1896, a “hybrida confusão allucinada do chálet suíço, do cottage inglez, da fortaleza normanda, do minarete tártaro e da mesquita moira.”438

Em 1873, a 3.ª Duquesa de Palmela, D. Maria Sousa Holstein promovia a construção do Palácio Palmela sobre o baluarte de Nossa Senhora da Conceição”, no promontório nascente da praia da Conceição. Construído no estilo neogótico inglês sob projeto de Thomas Henry Wyatt (1807-1880), o Palácio Palmela foi entretanto alterado e ampliado sob projeto de José Luís Monteiro (1848-1942), na década de 1890.439 Em 1896, sob traço do mesmo arquiteto e no mesmo estilo edificava-se, a Poente, o palácio dos Marqueses do Faial (filhos do Duque de Palmela).440

Em 1902, na estrada da Boca do Inferno e na enseada da praia de Santa Marta, junto à foz da ribeira dos Mochos, e próximo da Cidadela, em terreno municipal aforado ao financeiro Jorge O’Neill, iniciou-se a construção da torre de São Sebastião. Concebida sob uma visão cenográfica e pitoresca de Luigi Manini, em 1900, foi o pintor Francisco Vilaça que lhe fixou a forma, cerca de 1904, numa arquitetura fortemente ancorada nos elementos

No documento Raul Lino: arquitetura e paisagem (1900-1948) (páginas 125-156)