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Arranjos dinâmicos: quiro/tipo/fotografia em performance

Capítulo 2: Território randômia

2.2 Arranjos dinâmicos: quiro/tipo/fotografia em performance

“As épocas se distinguem pelas formas de fazer, isto é, pelas técnicas” (SANTOS, 2009, p. 177), que estabelecem o espaço de experiências de onde se projeta e para onde se volta o poema, como corpo estranho incrustado em nossos hábitos a engendrar horizontes de significação inauditos. Como “as técnicas, de um lado, dão-nos a possibilidade de empiricização do tempo e, de outro lado, a possibilidade de uma qualificação precisa da materialidade sobre a qual as sociedades humanas trabalham” (SANTOS, 2009, p. 54), percebe-se que a contemporaneidade se caracteriza por deslocamentos profundos dos modos de produção-consumo, que implicam uma metamorfose permanente do poético e de seu lastro social, assentes sobre a “imagem do tempo” (PAZ, 1994) – bem como pela “imagem do espaço”, pode-se complementar. Como enigma sobreposto ao futuro, o tempo presente se torna perpétuo limiar do desconhecido, fabricado por uma racionalidade técnica transcendente, fomentando a consubstanciação do “tecnopólio” (POSTMAN, 1994), enquanto

torna evidente que “as novas tecnologias alteram a estrutura de nossos interesses: as coisas sobre as quais pensamos. Alteram o caráter de nossos símbolos: as coisas com que pensamos. E alteram a natureza da comunidade: a arena na qual os pensamentos se desenvolvem” (POSTMAN, 1994, p. 29).

As mutações engendradas pelo desenvolvimento do aparato industrial, modelo de produção material, que contém e modula o campo simbólico, constituem um aglomerado errático de forças em conciliações transitórias e denegações violentas das formas de vida tradicionais, e disseminam-se em todas as esferas do cotidiano, ampliando vertiginosamente o campo de virtualidades da enunciação. As primeiras respostas às demandas advindas dessa ruptura, em especial as gestadas pelas vanguardas, se dão no âmbito das poéticas de invenção que surgem no século 20 e ainda servem de marcos referenciais da contemporaneidade. Conforme Andreas Huyssen “[…] no other single factor has influenced the emergence of the new avantgarde art as much as technology, which not only fueled the artists’ imagination […], but penetrated to the core of the work itself” (HUYSSEN, 1986, p. 9), alterando de modo irreversível os modos pelos quais o poema se produz. Com a emergência desse novo paradigma de operações e relações, configurando a base sobre a qual se assenta o gesto enunciativo, o estatuto do texto poético passa por uma transfiguração e exige do poeta, mais do que uma adesão subserviente à ecologia dos media, “aquela capacidade camaleônica de se metamorfosear e se adaptar, de colocar os meios ao seu serviço”87, como afirmou Waly Salomão. Esse “jeito de corpo” que atraiçoa o totalitarismo dos sistemas técnicos e o “rolo compressor da subjetividade capitalística” (GUATTARI, 1992, p. 115), pressionado-os sob a ação das táticas de guerrilha, é o modo com que Waly Salomão devém singular enquanto faz de sua escritura uma “[…] genuína operação anti-afasia” (2005, p. 61).

Com a implosão temporalidade sucessiva albergada pela cosmovisão cristã, de onde derivam (a contrapelo) as formulações, gestadas pela unidimensionalidade da escrita alfabética, do progresso linear em permanente aperfeiçoamento, surge uma miríade de temporalidades e espacialidades conflitantes, que o universo constelar e interconectivo da era eletrônica fomentou, realizando a “[…] profecia benjaminiano-mallarmaica da escrita icônica universal” (CAMPOS, 1997, p. 268). A visão orgânica de mundo, que se erige como engenharia de apaziguamento da cultura frente ao contingente, é realocada sob a pressão dos desvios advindos da aceleração do tempo histórico e de sua indeterminação finalística, instituindo um universo multipolar regido por uma variedade de forças não totalizável. Da

origem do pensamento filosófico na Grécia, com o surgimento do alfabeto (HAVELOCK, 1996a, 1996b), à ecologia cognitiva advinda da “sociedade informática” e dos processos digitais (LÉVY, 1993), os contágios mútuos entre poesia e técnica servem à compreensão dos modos de enunciação, situando o artista, “perito nas mudanças da percepção” (McLUHAN, 1971, p. 34), como articulador de novos padrões de sensibilidade nos interstícios dos dispositivos de controle.

A partir das grandes exposições internacionais de Londres, realizada em 1851, e de Paris, em 1890, em que a variedade de processos e produtos derivados dos sistemas industriais se espetaculariza (FRANCASTEL, 1963), tornaram-se inexoráveis as mutações da paisagem tecnocultural da Europa, que desembocaria na “aesthetization of technics” (HUYSSENS, 1986, p. 31), por um lado, e no horror advindo da Primeira Guerra, por outro. Para Lewis Mumford, diante da mecanização e da incorporação de seus processos e valores na vida cotidiana, “o homem tornou-se um exilado neste mundo mecânico: ou, pior ainda, tornou-se uma Pessoa Deslocada” (MUMFORD, 2000, p. 14), pois, ao prescindir dos valores herdados da tradição humanista em nome de um pragmatismo voraz, a cultura ocidental corre o risco, numa inversão radical de finalidade, de se tornar submissa à máquina, esse “animal totem do homem moderno” (MUMFORD, 2000, p. 20). Essa perspectiva, que ecoa certo “discursivo humanista catastrófico” (MACHADO, 1993, p. 10), tende à negação do campo de virtualidades gestado pela técnica moderna, por suas encarnações “monstruosas”, destituídas de escala humana, alijando-nos de nosso “território” natural e lançando-nos a um universo em que nossos sistemas de referência perderam a validade.

Contudo, independentemente de adesões ou refutações, o “mito da máquina” (MUMFORD, 2011; FRANCASTEL, 1963) que se avulta na alta modernidade, propagado sob as pressões do que a historiografia denomina Revolução Industrial, se instala de modo central nas poéticas do século 20. Desde então, a máquina toma de assalto o imaginário e expande seus limites pragmáticos, engendrando uma concepção maquínica do mundo, que em seu longo percurso histórico, produz uma ruptura do espaço de remissões mútuas da cosmovisão cristã, e desterritorializa as formas de percepção e de autorreferência humana, dando visibilidade a “[…] essa parte não-humana pré-pessoal da subjetividade” (GUATTARI, 1992, p. 20). Como uma espécie de reflexo oblíquo, em que nos reconhecemos nas imagens que os dispositivos técnicos são capazes de produzir, entre o narcísico e o narcótico88, o

88 “O que importa nesse mito [de Narciso] é o fato de que os homens logo se tornam fascinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles próprios” (McLUHAN, 1971, p. 59).

imaginário maquínico consiste numa espacialidade e numa temporalidade advindas da rede de analogias com a constituição fisiológica do corpo e das sociedades humanas89, que a excedem e transformam. Nessa perspectiva, “a máquina é primeira em relação ao elemento técnico”, pois é “a máquina social ou coletiva, o agenciamento maquínico que vai determinar o que é elemento técnico num determinado momento, quais são seus usos, extensão, compreensão…, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 81), e dessas acoplagens emergem os espaços de experiência e horizontes de expectativa de uma cultura em sua historicidade.

Em “La nueva analogía: poesia y tecnologia” (1994), publicado em 1964, Octavio Paz, numa revisitação de temas axiais em sua ensaística, postula que a técnica completa o ciclo iniciado pela crítica, gestada pela modernidade como motor de transformação, e anuncia uma circunstância histórica que se distingue radicalmente da que lhe deu origem. Deslocando as estruturas que informam o próprio sistema simbólico no qual se produz a modernidade, como a temporalidade causal da mitologia cristã, a crítica ensejou o intervalo em que se impõe a “pérdida de la imagen del mundo” (PAZ, 1994, p. 302), e que tem sua concreção definitiva na técnica moderna. Em consequência, a produção da “imagen de un mundo sin imagen” (1994, p. 302) evoca a condição dispersiva dos signos ante a instabilidade dos sistemas técnicos, inscrevendo o poema num paradoxo, pois “por una parte la poesía tiende a utilizar, como todas las otras artes, los recursos de la técnica, especialmente en la esfera de los medios de comunicación […]; por la otra, debe enfrentarse a la negación de la imagen del mundo” (1994, p. 304). A produção de uma nova imagem passa por apropriações e desvios de um movimento que se faz nos interstícios das paisagens tecnoculturais, na medida em que o “artista da era das máquinas” “[…] recoloca permanentemente em causa as formas fixas, as finalidades programadas, a utilização rotineira, para que o padrão esteja sempre em questionamento e as finalidades sob suspeita” (MACHADO, 1993, p. 12).

No babilaque “Vertozigagens” (Nova York, 1975), formado por uma série de três fotos de um bloco de notas sem pautas sobre um livro, no qual se vê a célebre imagem do cineasta russo Dziga Vertov capturado pelo aparelho num salto, e outras duas imagens, fotogramas de seus filmes, lê-se: “O homem com a câmera de / Cinema / Dziga Vertov Vertozigagens / eu e Martha / Vertov é o Picasso do cinema / com Picasso quero dizer / que Vertov é o Picasso e o / Malevich e o TATLIN e o / Mondrian e o Cezanne e o / Maiakovski e

89 Como na afirmação de Norbert Weiner: “O sistema nervoso e a máquina automática são, pois, fundamentalemente semelhantes no constituírem, ambos, aparelhos que tomam decisões com base em decisões feitas no passado” (1968, p. 34).

o Marinetti”, culminando na assertiva: “O OLHO SEM CRISES MONÓTONAS / DE CONSCIÊNCIA / Arranjos / DINÂMICOS”90 (2007, p. 100):

A sequência de remissões a autores vinculados a diversos campos de invenção, como os do cinema, das artes plásticas, da escultura, da arquitetura e da poesia, associando-os entre si numa “câmara de ecos”, em consonância com a estruturação híbrida dos aglomerados “babiláquicos”, configuram um dos caminhos pelos quais o poema walyano procede a uma explicitação de seus mecanismos. Ainda que consonantes, os elementos são des/apropriados de seus respectivos campos, aproximados e fundidos, e sua permutabilidade, por meio de identificações contraditórias (“x é y, que é z, que é…”) e sobreposições aditivas (“e… e…”), produz um curto-circuito em que tais equivalências apontam para o devir desterritorializante da liberdade experimental, suprimidas as divisas disciplinares. A escritura se faz, então, entre protagonistas das poéticas de invenção, elegendo-os como aliados e situando-os em plano sincrônico, e se articula como palavra-traço que esculpe na página uma enunciação. Essa

90 O termo “arranjo dinâmico” remete a uma obra “Mulher com baldes: Arranjo dinâmico”, de 1913, do pintor suprematista russo Kazimir Malevich, referência importante para a compreensão da poética de Hélio Oiticica, e objeto de reiteradas citações, inclusive na “Carta a Waly”, de 1974: “o q eu quero lhe dar é algo assim / irrepetível como o / SONHO DO SOL DE NIETZSCHE / o / BRANCO-MALEVITCH / o / CHÃO DE RIMBAUD / a / NEVE-LUZ” (2013, p. 142).

“forma relacional” (BOURRIAUD, 2009) implode o objeto de fruição como “substância”, plenamente apreensível pela racionalidade da lógica identitária, lança-o como “processo constelacional” (PIGNATARI, 2004a, p. 167), e abdica dos relatos de origem e autonomia, projetando-se ao encontro de sua exterioridade na produção das sensibilidades e das significações.

Dos autores vinculados aos repertórios da experimentalidade do século 20 e inventariados no babilaque, tem destaque o cineasta russo Dziga Vertov, de onde extrai o título e o retrato, pseudônimo de Denis Arkadevich Kaufman (1896-1954), cujos procedimentos heterodoxos desembocam na formulação do “cine-olho”, “[…] síntese do projeto semiótico do construtivismo para o cinema que consagrou o documentário um gênero específico da nova ordem audiovisual trazida pelo cinema” (MACHADO, 2001, p. 3). Em 19 de junho de 1971, Waly Salomão publicava sua coluna “Super frente super-oito”, no caderno Plug, do Correio da Manhã, e como apêndice, numa seção intitulada “Bestética”91, um fragmento do texto-manifesto “Resolução do Conselho dos Três”, de 1923, em tradução de José Simão:

Eu sou olho. Eu tenho criado um homem mais perfeito que Adão; eu criei milhares de diferentes pessoas JOVEM ELÉTRICO

de acordo com planos mapas previamente preparados. Eu sou olho.

Eu tomo as mais ágeis mãos de um, as mais velozes e graciosas pernas de outro, de uma terceira pessoa eu tomo a mais formosa e expressiva cabeça e, montando, crio um homem perfeito inteiramente novo92.

Pretendendo se fazer um disparador dos debates sobre os processos de criação audiovisual a partir da popularização da tecnologia do super-8, a montagem textual walyana acaba por submergir nas engrenagens do complexo enunciativo em meio às mutações tecnoculturais dos anos 1970 no Brasil, e se faz “profecia” de sua própria poética. O programa vertoviano formulado a partir de uma exploração das potencialidades técnicas de onde se enuncia, engendrando um horizonte de produção-consumo do campo cinematográfico que vai ao

91 Neologismo presente em Me segura…: “Colonialismo ou deboche. o medo do envolvimento na crítica à estética da esculhambação. bestética. Limpa fossa mais divisão rigorosa das águas = temor, paralisação” (1983, p. 37, grifo meu)

92 Em tradução de Marcelle Pithon: “Eu, o cine-olho, crio um homem mais perfeito do que aquele que criou Adão, crio milhares de homens diferentes a partir de diferentes desenhos e esquemas previamente concebidos. / Eu sou o cine-olho. / De um eu pego os braços, mais fortes e mais destros, do outro eu tomo as pernas, mais bem-feitas e mais velozes, do terceiro a cabeça, mais bela e expressiva e, pela montagem, crio um novo homem, um homem perfeito” (VERTOV, 1983, p. 255-256). Vale ressaltar que a expressão “JOVEM ELÉTRICO” é um acréscimo ao texto original.

encontro da percepção ordinária para a reinventar, alicerçando-a nas virtualidades dos media: “não podemos melhorar nosso olho mais do que já foi feito, mas a câmera, ela sim, pode ser indefinidamente aperfeiçoada” (VERTOV, 1983, p. 254). Seus roteiros compositivos são marcados por um “improvisar planejado” (BAIRON, 2009) e transcendem as fronteiras entre o orgânico e o mecânico, articulando-se na interconexão entre dispositivos técnicos e gestos enunciativos, como sistema exposto a flutuações que intervêm nos marcos de referência do humano. Com o “deslocamento do eixo da câmera”, a cinematografia vertoviana se imiscui nos ambientes capturando o cotidiano não-encenado, enquanto faz do dispositivo técnico o “protagonista da ação fílmica e da linguagem narrativa” (MACHADO, 2001), suspendendo os nexos causais de uma estratégia enunciativa unitária. Essa poética do deslocamento se assemelha a um “DELIRIUM AMBULATORIUM, rêverie em plena luz do dia, day-dream, fazer e desfazer castelos no ar, quimera e mimetismo dum fazedor de labirinto que se transveste no Minotauro, híbrido habitante saído d’algum Manual de Zoologia Fantástica” (SALOMÃO, 2003a, p. 138), que enquanto se performa produz relações transitórias entre eventos encontrados pelos caminhos num improviso construtivo.

Na operação imediata com os materiais Waly Salomão des/apropria “Dziga” e “Vertov”, desmontando sua função onomástica e fazendo derivar a palavra-valise “vertozigagens”, que nos remete aos percursos “ziguezagueantes”93 do cineasta russo, “rodopiando no caos do movimento” (VERTOV, 1983, p. 256), bem como à “vertigem” e ao vocábulo de língua inglesa “gag”94, “truque, engano, brincadeira”95. Da mesma forma que o cine-olho vertoviano percorre as circunstâncias da vida ordinária, envolvendo-se nelas de modo oblíquo, a capturar o que delas pode operacionalizar no processo de registro e montagem, o babilaque ziguezagueia entre nomes fundamentais da nova consciência poética da alta modernidade, assim como entre objetos aleatórios combinados em “arranjos dinâmicos” e, portanto, instáveis. Efeitos de mediações sobre mediações, em contínuo processo tradutório, os elementos que estruturam os babilaques se realizam num campo de ressonâncias no qual figura um texto-corpo ambiental em busca de um corpo-texto cúmplice. Além de conjunto ordenado construtivamente e re/elaboração musical, o “arranjo”, na

93 De acordo com Gillespie, “his chosen pseudonym does not have a literal Russian translation, but suggests a spinning, zigzag motion, and captures the dynamism and sheer exuberance of his filmmaking.” (2000, p. 67) 94 Como se pode ler em anotação reunida em catálogo: “Operação ABAFA-BANCA das EDIÇÕES Pedra Q

RONCA / Posters de mil exemplares / Coloridos / Tamanho poster Mick Jagger / Lançamento simultâneo das 3 espécies iniciais / a) DZIGA VERTOV VERTOZIGAG / b) KOAN / c) LOGBOOK” (2007, p. 137). 95 Em Novo Dicionário Aurélio Eletrônico 6.0 (2009).

derivação coloquial brasileira, designa “improviso”, ecoando a exploração das potencialidades compositivas pelo poeta que, como agente sedutivo, sabota e reinventa os códigos de produção-consumo. Como Vertov, Waly Salomão re/compõe-se assimilando os elementos variados, a caminhar para a construção de um novo regime de sensibilidade que torne visível não o “homem perfeito inteiramente novo”, mas essa nova qualidade do humano, produto de formações impermanentes regidas pelo acaso e pela precariedade.