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Capítulo 2: Território randômia

2.6 Trying to grasp

As táticas escriturais são práticas heterodoxas de enunciação que dão consistência ao que se chama aqui de “poéticas experimentais”. Mais do que discurso integrado, realizado na redução do atrito entre complexos instrumentais e suportes, que se consolida com a acoplagem tinta-papel, a experimentação escritural se assemelha mais ao “gesto de fazer uma incisão sobre um objeto” (FLUSSER, 2010, p. 25). Para Flusser, “as inscrições são escritas que demandam muito esforço e são produzidas lenta e cautelosamente. São ‘monumentos’ (monere = contemplar)”, que se produzem em diálogo intensivo com as materialidades, cuja margem de iterabilidade tende ao nulo. Ao contrário disso, as “sobrescrições”, que “[…] são escritas fugazes aplicadas a superfícies, cuja finalidade é ensinar uma mensagem a um leitor. São ‘documentos’ (docere = ensinar)” (2010, p. 32), tendem ao código e à norma. O inscrito se encarna como tensionamento de seu próprio contexto, do qual e contra o qual se organiza, e a partir desse ato “contrassituado” se enuncia. Como uma intervenção em determinado objeto a fim de informá-lo (isto é, de lhe dar uma forma), o gesto de inscrição produz uma fissura num dado estado de coisas, atribuindo-lhe, um outro conjunto de significações em potência, pois “o inscrever é um gesto informacional, cujo objetivo é romper com as condições do

116 A mesma expressão é retomada no ensaio “Velha cartomante setentona” sobre a Semana de Arte Moderna, compilado em Armarinho de miudezas: “Nenhum objeto impregnado de emoção somente peças de museu armazenadas num grande empório teorético. Não abriga mais nenhum desejo de uma arte elementar que restaure a balança perdida entre o céu e a terra, olhos afiados ouvidos agudos e a cruel liberdade de inverter os sentidos” (2005, p. 53).

cárcere, isto é, abrir crateras nos muros do mundo objetivo que nos encarceram” (FLUSSER, 2010, p. 26), ou como afirmou Waly Salomão: “BROCAS no muro do mundo […]” (1983, p. 9).

Conhecidas como grafite (do italiano, graffiti) a partir dos anos 1960 e 70 na França e nos Estados Unidos, especialmente em Nova York, e que no Brasil se tornam conhecidas como pixo, as escritas urbanas atualizam o que tento descrever como tática de inscrição. Sua presença constitui uma transgressão do código visual da cidade, e além de indicar um gesto dotado de corporalidade que se insurge contra os fixos do espaço, o pixo é também produto de uma compreensão profunda dos contextos nos quais se produz, bem como de um tensionamento com sistema gráfico alfanumérico de que faz uso, constituindo um “TEATRO URBANO ESCRITURAL” (PIGNATARI apud FONSECA, 1982, p. 36). Além das condicionantes espaçotemporais, há uma série complexa de elementos que precisam ser articulados para que o gesto se inscreva de maneira efetiva, como, por exemplo, a tinta a ser utilizada (cor, composição química), o suporte (parede, vidro, asfalto, metal), o conjunto de instrumentos (spray, brocha, jato de pressão), as condições atmosféricas e geográficas, os fluxos da região e, principalmente, as linhas de fuga, fundamentais para o desvio frente ao aparelho repressor do Estado, fazendo da “sprayação” um “[…] happening. a escritura transformada em evento público. um espetáculo” (PIGNATARI apud FONSECA, 1982, p. 36).

Refletindo sobre as transformações dos meios e das práticas de enunciação de seu tempo Walter Benjamin afirma que “a escrita, que encontrara refúgio no livro impresso, onde levava uma existência autônoma, é implacavelmente arrastada para a rua pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico” (2013, p. 25). Pressionado por forças que fogem a sua constituição intrínseca, o escritural se faz como negociação dos intervalos entre domínios (técnico, social, econômico): lugar onde o possível e o necessário se coadunam. Em sua posição relacional na ecologia dos media, a escrita se desaloja da forma livresca, veículo com a qual se confunde durante a modernidade, e ocupa as cidades sob a forma extemporânea das “nuvens de gafanhotos da escrita” (BENJAMIN, 2013, p. 25). Os poetas então se tornam “especialistas da escrita”117 que são forçados ao diálogo com os domínios da técnica e, por extensão, da economia, dos quais não podem se eximir, pois seus itinerários se fazem entre “outdoors, painéis, anúncios luminosos, cartazes, letras gigantes. A

117 Na tradução de Haroldo de Campos, em Mallarmé, “expertos da grafia” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006a, p. 206).

cidade grande é um livro aberto e o dorso do tigre será decifrado enquanto escritura torta de um Deus esfumaçado” (SALOMÃO, 2005, p. 36). Como “teatralidade escritural”, a inscrição urbana se torna um mecanismo emblemático das novas relações que se instituem a partir da infraestrutura engendrada pelas mutações tecnológicas encarnadas sob a forma da metrópole contemporânea. Atuando como crítica à organização da cidade – sua forma de gerir os trânsitos que a performam – e da própria escrita, produzindo fissuras nos fixos e fluxos do espaço-tempo escrita-cidade, o pixo torna potencialmente passível de inscrição toda e qualquer materialidade situada ao alcance do corpo. Esse transbordamento da página não indica uma ruptura da sequência histórica tipográfica e de sua normatividade, mas um vetor persistente que segue ao encontro dos limites da convenção gráfica, deformando-a e sendo formado por ela118, tendo em vista que “de um ponto de vista antropológico geral, não há nenhuma diferença fundamental entre o poeta que aciona a tecnologia do grafite, o poeta que se serve dos tipos móveis de Gutenberg e o poeta que manipula computadores”: “todos recorrem ao repertório tecnológico de sua época e cultura” (RISÉRIO, 1998, p. 53). A palavra que migra da página tipográfica para o muro das metrópoles, índice da desagregação movida pelo capital, é uma evidência das des/re/territorializações que medram no seio das codificações escriturais, e ciente dessa labilidade, o papel do poeta na “sociedade informática” seria o de operar “[…] sobre os sistemas e as técnicas de inscrição sígnica existentes no mundo à sua volta, para assim gerar textos que sintetizem e veiculem, à sua maneira, ideoemoções fundamentais da humanidade” (RISÉRIO, 1998, p. 67).

118 A ascensão e estabelecimento da cultura da pichação, tal como a conhecemos hoje, se deve parcialmente ao desenvolvimento da tinta a spray nos anos 1960. Esse dispositivo técnico delimita um novo campo de virtualidades escriturais que residia latente nas cidades, constituindo uma cultura gráfica específica.

Produzido em Itapuã, Salvador, em 1976, o babilaque “Trying to grasp the subway graffitti’s mood” incorpora essas práticas, deslocando-as para o espaço privado, neste caso, representado pelo caderno de espiral, sem pautas, em colisão com o espaço exterior, composto por um arranjo de cabos (ou dutos), garrafas e lona, sobre o qual se coloca (2007b, p. 82). Como já aponta seu título, há uma tentativa de compreensão de arranjos enunciativos, ainda que de modo relativamente vago (“mood” tanto pode significar “humor” quanto “disposição”119), por meio da experiência de um ensaio gráfico-visual, mais do que de um método analítico. A referência ao metrô está relacionada ao momento inaugural da cultura do graffiti em Nova York, onde os vagões eram transformados, pela ação da escrita, em outra qualidade de dispositivos-signos. O alvo dessa caça, dessa “tentativa de agarrar”, oscila entre a esfera dos sentidos e a dos fluxos e intensidades, e resvala na palavra, que parece abdicar de decifração sob o emaranhado de linhas, cedendo passagem à evidência de um tipo de “texto puro”, averbal, em ressonância nas formas do mundo, enquanto a própria condição de legibilidade é posta em xeque, seduzida pelo traço. Nesse babilaque, a forma gráfica-verbal é diluída, e resta uma oscilação entre a pura materialidade de uma “ex-escritura” e uma forma

119 Em Michaelis: Moderno Dicionário Português-Inglês (1998).

a-significante, enquanto gesto “[…] de libertação do Valor – político, estético, moral”, tal como definiu Harold Rosenberg a action painting (1974, p. 16), dando origem a esse tensionamento do estrato verbal, aquém e além de suas fronteiras, que institui a indeterminação como elemento axial do babilaque. Associados inicialmente a uma seta que se dirige para o alto, indicando talvez uma apropriação dos elementos dêiticos da comunicação visual de uma estação de metrô, os traços que se espalham pela superfície da página impõem- se como cifra. Num esforço de leitura, podemos depreender as letras E, N e O, formando talvez os vocábulos de língua inglesa “no” (não), “on” (ligado ou sobre), e “one” (um ou alguém), que se avizinha de “none” (nada), e “no one” (ninguém). A variação dos traços, agenciamento de ruído na codificação alfabética, torna instáveis as constelações de sentidos que é capaz de engendrar. O traçado da letra, itinerário e vestígio de uma acoplagem mão- instrumento sobre um território vazio, se faz análogo ao traçado fixo dos cabos circunvizinhos, como um harmônico visual alentado pela indecidibilidade das formas visuais. Esse modo escritural híbrido – que chega a abrir mão de sua discursividade e dos parâmetros lógicos capazes de inscrevê-la no campo hermenêutico –, se apresenta como pura presença, denunciando toda tentativa de interpretação totalizadora como “apêndice de sentido” alheio às suas condições de existência. Entre o “nada”, o “alguém” e o “ninguém” se efetua o risco: invenção de espaços e tempos “contrassituados”.