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Tropicália: “sintética pílula concepcional”

Capítulo 1: Invenção e saque

1.3 Tropicália: “sintética pílula concepcional”

Em abril de 1967, o artista plástico carioca Hélio Oiticica realizou a instalação Tropicália, no Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro, na mostra coletiva Nova Objetividade Brasileira, dando continuidade às pesquisas que, desde 1964, com a formulação do Programa Ambiental, o levam a uma radicalização da experiência dos limites entre corpo, obra e participação. Composta por dois Penetráveis37, a instalação propunha um reposicionamento de imagens que compõem o território simbólico brasileiro, a partir de uma operação desviante de clichês e mitos oficiais, apontando para as possibilidades de constituição de uma vanguarda nacional, como proposição aberta à casualidade participativa. Em nota de 4 de março de 1968, Oiticica afirma que Tropicália “veio contribuir fortemente

para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui”, em que prevalece o “mito de miscigenação” (1986, p. 108). Apesar de se basear na delimitação de um algo próprio, o princípio conceitual da instalação pretende designar sua porosidade, como “nacionalismo modal” (CAMPOS, 1977a, p. 237), que privilegia “o des-caráter, ao invés do caráter; a ruptura, em lugar do traçado linear; a historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogêneo” (CAMPOS, 1977a, p. 237), realizando-se nos planos tanto dos materiais combinados em arranjos instáveis, quanto da atuação do público, transfigurado em cúmplice de um evento de ordem estética-vivencial. Para Celso Favaretto, em A invenção de Hélio Oiticica,

Sistema delirante, máquina de produção de sentido, Tropicália é um ambiente-acontecimento que opera transformações de comportamentos: desconstrói as experiências (não só dos participantes como também do propositor) e as referências (culturais, artísticas), impedindo a fixação de uma “realidade” constituída. (1992, p. 139)

O “ponto de vista” deambulatório que se produz sob as condições técnicas e materiais da proposição, corresponde à ativação de “estruturas germinativas” (OITICICA apud FAVARETTO, 1992, p. 178)38 em acoplagens sujeito-ambiente singulares, pois a “obra” se assenta no horizonte de seu operador como dispositivo a agenciar seu inacabamento inerente, no qual as experiências e referências dos participadores são reorganizadas em condições de exceção. Ainda para Favaretto, mas aqui sob a perspectiva global da trajetória de Oiticica, esse procedimento constitui uma “poética do instante e do gesto”, que “não visa aos simbolismos da arte mas à simbólica dos estados de transformação” (2011, p. 106, grifo meu), de maneira análoga ao que se dá na poética proteiforme de Waly Salomão.

Para o poeta baiano, Tropicália constitui uma espécie de “Merzbau brasileiro” (2005, p. 35), vinculando-a ao programa polivalente do poeta e artista plástico alemão Kurt Schwitters, que se articula a partir dos resíduos do cotidiano urbano-industrial e, “feita de abismos, pontes, túneis em espirais, casa e atelier, abolição da fronteira entre a arte e a vida […]” (SALOMÃO, 2003a, p. 25), propõe-se como desmontagem do regime semiótico da

38 Expressão usada por Hélio Oiticica no texto “A trama da terra que treme: o sentido de vanguarda do grupo baiano” (2007), publicado em setembro de 1968, como analogia de “probjeto”, conceito formulado por Rogério Duarte, que trataria de “objetos ‘sem formulação’ como obras acabadas, mas estruturas abertas ou criadas na hora da participação” (OITICICA, 2007).

“obra”, dos códigos estéticos e da cidade enquanto espaço métrico, induzindo a produção de trajetórias de fruição autodeterminadas. Em plano adjacente, sua experimentação “optofonética” (CAMPOS, 1977a, p. 43), que terá em Ursonate seu momento capital39, é emblemática do processo disruptivo gestado pelas poéticas das vanguardas, que substituíam os materiais convencionais “por outros […] eleitos através de um acurado sentido de textura, de cor, de inter-relações de formas, de valores tácteis e ópticos” (CAMPOS, 1977a, p. 38), a fim de realizar uma prospecção dos contextos de produção, pois “o despejo linguístico […] também assumia o aspecto de um material a ser reencontrado e devolvido ao mundo novo do poema” (CAMPOS, 1977a, p. 36). Esses resíduos, transfiguração alegórica dos ruídos oriundos da mensagem pretensamente asséptica da modernização industrial, se tornam componentes centrais de uma obra que se quer crítica, impulsionando o poeta em sua deambulação: “[…] enquanto poeta, [sou] um cachorro vira-lata, desses que andam pelos arrabaldes remexendo lata de lixo, à cata de algum osso. Enfim, eu vivo pulando que nem sapo”40.

Apropriando-se do nome da instalação de Oiticica, ainda em 1967, Caetano Veloso batiza uma canção41, cuja veiculação massiva atingirá um público amplo e desencadeará, como efígie espetacularizada de uma contracultura em emergência, uma série de adesões e refutações, consolidando-se ainda hoje como marco referencial de um “momento” (SUSSEKIND, 2007, p. 31) em que as práticas experimentais gestadas nos subterrâneos do período ganham larga difusão midiática: o tropicalismo. Elaborado por meio do uso de procedimentos, como a colagem, a apropriação, a performance e o confronto com os códigos de produção-recepção, o registro da canção de Veloso, sob o arranjo do maestro Julio Medaglia, se insurge contra os modos convencionais da música popular, e “coloca lado a lado os índices de arcaísmos e das poéticas de vanguarda, conforme a linguagem de mistura da carnavalização” (FAVARETTO, 2007, p. 64). Ao suscitar um deslocamento do sistema de referências por meio da tomada de posse dos meios de comunicação de massa e de suas estratégias monologantes, os protagonistas do tropicalismo, de 1967-68, compreenderam “a

39 Cf. capítulo 3.

40 Waly Salomão em “Waly Salomão: Tiros de um agitador cultural”, de Maurício Stycer.

41 Caetano Veloso, curiosamente, recusa a apropriação do nome como algo programático, remetendo sua atribuição a um encontro fortuito: “Luis Carlos Barreto […] impressionou-se com essa canção (o que é perfeitamente coerente) e, ao ser informado de que ela não tinha título, sugeriu ‘tropicália’” (VELOSO, 2008, p. 183)

tecnologia como arquivo de imagens e a tecnologia como prótese dos corpos” (AGUILAR, 2005, p. 143), anunciando a explosão contracultural dos anos 1970.

Da “sintética pílula concepcional” (SALOMÃO, 2003, p. 68) de Hélio Oiticica ao tropicalismo musical, uma das faces desse momento transformador, “talvez a mais evidente, pulsante e popular” (COELHO, 2010a, p. 133), se esboçam os contornos do campo de produção da década de 1970, que se estrutura como lugar de uma convergência dissonante. Assumindo uma variedade de formas, essa palavra-alegoria Tropicália que, ao tempo em que designa uma proposição específica de Oiticica, torna evidente “uma trajetória mais longa e tortuosa na cultura brasileira da época” (COELHO, 2010a, p. 117), ganha corpo no panorama cultural brasileiro como uma “perspectiva cultural para o país” (COELHO, 2010a, p. 130), e dispara a constelação-marginália que lhe sobrevém. O “mito da tropicalidade”, mais do que reafirmação identitária, representava “[…] a consciência de um não-condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social, existencial, escapa à sua ideia principal” (OITICICA, 1986, p. 109), ressoando a leitura de Waly Salomão, quando afirma que “o que o tropicalismo devastou foi um pensamento linear. Privilegiou um pensamento, uma sensibilidade, um discurso, um comportamento que tendia para o mosaico, encruzilhada de sugestas, interconexões” (2003, p. 41).

Nesse entroncamento, o poema se encarna como um objeto-intervalo, participando de um conjunto heterogêneo de séries, sem a nenhuma delas aderir, como “[…] movimento no qual se articula uma liberdade, afim de se revelar ou de se velar para o outro” (FLUSSER, 2014, p. 17), deslocando as fronteiras dos corpos e dos textos. Em “Arte ambiental, arte pós- moderna, Hélio Oiticica”, Mário Pedrosa afirma que a arte, sob o signo do “pós-moderno”, opera com os materiais de modo que “[…] os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais” (2006, p. 143), o que implica um transbordamento dos valores plásticos imanentes para os contextos multidimensionais e multidirecionais da experiência vivencial, e põe em colapso a “pureza” do fazer artístico reivindicada pelo conservadorismo acadêmico. Mais do que promover uma indagação das relações formais entre componentes de um repertório fechado, esse objeto- intervalo constitui um des/arranjo de materiais que motiva conexões não-mapeadas entre eventos adjacentes, em curto-circuito, intervindo no complexo sensório fruidor, através de “uma vontade construtiva de afirmação de novas relações estruturais, conjugada

paradoxalmente a uma antiformalização desintegradora, a uma fuga (auto)consciente da forma” (SÜSSEKIND, 2007, p. 44). Além da exploração das “materialidades convencionais”, como a cor, a linha e o plano, no caso das artes plásticas, ou a palavra, o espaço tipográfico e o som, no caso da poesia, o corpo se torna o campo de experimentação, compreendido como medium e laboratório de invenção, num “exercício assíduo do afastamento de si mesmo” (GALARD, 1997, p. 114), pois

[…] nas criações da Tropicália, interessava […] provocar o público e expor- lhe suas cisões, sublinhando disparidades, descompassos, trabalhando com uma multiplicidade descontínua de dicções, materiais, com imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamente e potencializam tensões. (SÜSSEKIND, 2007, p. 47)

O campo de ação se situava no horizonte da alteridade, e seus propositores “[…] funcionaram como sismógrafos, como antenas de gafanhoto captando abalo sísmico iminente” (SALOMÃO, 2005, p. 41), pretendendo descondicionar os comportamentos, ampliar o espectro dos gestos, tanto dos propositores quanto de seus cúmplices participadores, para proceder a uma “liberação de movimentos ainda não percebidos” (GALARD, 1997, p. 36). Tais proposições se fazem como diálogos radicais com os ambientes que lhe serviam de fundo, mas incidem especialmente na irrupção de potencialidades gestuais não inventariadas, tendo em vista que “a poesia, seja ela verbal ou gestual, reanima os signos extintos, para que toda prosa se torne assim mais viva” (GALARD, 1997, p. 37).

Protagonista enviesado desse “momento”, Waly Salomão recusa – por vezes, de modo veemente – os epítetos “pós/tropicalista” e “marginal”, com os quais se pretendeu enquadrá-lo no cenário conturbado dos anos 1970. Como afirma em entrevista a Adolfo Montejo Navas: “Eu não gosto da moldura de poeta tropicalista, eu não me sinto assim. […] Eu tangenciei com a Tropicália, por muitas razões. A primeira delas e a mais importante está na própria dedicatória da antologia O mel do melhor: Hélio Oiticica”42 (2001). Procurando fugir ao imobilismo das categorias do discurso crítico, o poeta baiano rompe com as arapucas da historiografia literária e cultural, reivindicando a potência metamórfica de sua escritura,

42 O mel do melhor (2001), antologia organizada pelo próprio autor, traz um poema-dedicatória para Hélio Oiticica: “Nem de longe / nenhum estímulo foi mais determinante / para o surto da minha produção poética / – pedras de tropeço transmudadas em pedras de toque – / do que o convívio com Hélio Oiticica / Mitopoético propulsor […]” (p. 7). Em depoimento de 1972 Waly Salomão já afirmava se tratar de uma “influência propulsora na minha produção” (“Wally tem um troço e estreia Corda Bamba”, Correio da

que excede o limiar das décadas de 1960 e 1970. Em depoimento intitulado “Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença”43, Waly Salomão afirma:

Não posso idilizar a produção dos anos 70, não posso nem creditar tal impacto de reentrar na moda. Reentrar na moda é uma forma decaída de ela se instalar no mundo, porque suas exigências eram que os delírios e o mundo pudessem se casar, era essa a vontade e a pulsão mais profunda nos melhores, no melhor dela, no ponto mais alto dela. (2005, p. 139)

À tentativa de despotencialização da dobra escritural-vivencial que determinou seus itinerários sob o artifício da “monumentalização”, Waly Salomão responde: “[…] quanto à década de 70, esse fóssil, eu me prefiro um míssil” (2005, p. 147)44.

Como “míssil”, que não se apoia num programa de invenção exclusivo do campo verbal-discursivo, sequestrado pela exclusividade do horizonte modernista e de sua perspectiva evolutiva, evoca continuamente a afirmação de Torquato Neto: “um poeta não se faz com versos. é o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. nada no bolso e nas mãos” (1981, p. 62). Integrada a esfera do cotidiano, sua obra se quer como presença contraditória, intempestiva e evanescente, investindo no desvelamento de uma conduta que se faça afirmação irrestrita das potencialidades éticas e estéticas que assomam no deslocamento da lei. Essa “dispersão subjetiva” (GALARD, 1997, p. 114) é vivenciada coletivamente no momento de transformação das condições de possibilidade do gesto de invenção dos 1970, em que a noção de acabamento do próprio, como interioridade encerrada sobre si, é descartada em proveito de uma reconquista dos corpos. É o gesto, “[…] ato considerado na totalidade de seu desenrolar, percebido enquanto tal, observado, captado” (GALARD, 1997, p. 27), o dispositivo prospectivo que excede as fronteiras do território a fim de estabelecer nexos com componentes de um alheio indomesticável: “levar adiante tudo que resultou em mim. Morte às linguagens existentes. morte às linguagens exigentes. experimento livremente” (SALOMÃO, 1983, p. 51).

43 Publicado na segunda edição de Armarinho de miudezas (2005) e no volume que reúne todas as falas do evento, Anos 70: trajetórias (2006), realizado no Instituto Itaú Cultural.

44 Percebe-se uma retomada da alternativa instalada no poema “Ao leitor, sobre o livro”: “LER COM OLHO- FÓSSIL / ou / LER COM OLHO-MÍSSIL” (1983, p. 10).