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6 REVOGAÇÃO DO ART 125, XIII, DO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO:

6.2 Art 123 da Lei de Migração

O art. 123 da Lei de Migração tem a seguinte redação: “Ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias, exceto nos casos previstos nesta Lei”.

A 2ª Câmara de Coordenação e Revisão Criminal lançou mão deste artigo para justificar sua interpretação de que a revogação do art. 125, XIII, do Estatuto do

Estrangeiro teria como consequência a descriminalização das condutas ali previstas81.

Entretanto, a natureza excessivamente sucinta do argumento presente nos votos não nos permite concluir com segurança o motivo pelo qual referido artigo foi invocado para tratar do presente tema.

Isto porque o art. 123 da Lei de Migração não fala em crime, mas em privação de liberdade. Crime e privação de liberdade são ideias que não se equivalem, não são sinônimos. Tampouco se pode afirmar que um conceito está inserido em outro. Nem todo crime tem como pena a privação de liberdade, há delitos que cominam somente pena de multa, por exemplo. E nem toda privação de liberdade deriva da punição por prática de crime, o devedor de alimentos, por exemplo, pode sofrer privação de liberdade sem ter cometido crime.

Entretanto, em que pese o fundamento ter sido muito sucinto no voto, é de se imaginar que a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão tratou como iguais os conceitos de

crime e privação de liberdade, já que essa seria a única maneira de utilizar o art. 123 da

Lei de Migração como fundamento para tese de descriminalização da conduta prevista no art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro. Tendo sido esse o caso, aquele colegiado extraiu do texto do art. 123 da Lei de Migração a seguinte interpretação: nenhuma

conduta com finalidades migratórias pode ser enquadrada como crime (repita-se, a lei

fala em privação de liberdade), exceto aquelas previstas na própria Lei de Migração.

81 Votos 2450/2018, 3758/2018 e 1665/2019 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.

Como já demonstrado, a equivalência entre crime e privação de liberdade é falsa, motivo pelo qual o raciocínio acima está equivocado. Mas, apenas para fins de argumentação, vamos assumir que essa equivalência é verdadeira.

Seguindo a lógica adotada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, qualquer conduta praticada com “razões migratórias” que não pudesse ser enquadrada como Promoção de Migração Ilegal (art. 232-A do Código Penal, inserido pela Lei de Migração) não seria crime.

Ocorre que esse raciocínio nos leva a conclusões absurdas, motivo pelo qual ele não pode ser de modo algum considerado válido. Basicamente, estaríamos concedendo um salvo conduto para prática de quaisquer condutas que tenham finalidades migratórias, desde que não se enquadrem no art. 232-A do Código Penal, que é um tipo muito restrito, já que cuida apenas de condutas que envolvem a promoção da migração ilegal, é dizer, condutas praticadas por terceiros, nunca pelo migrante.

Repita-se: o salvo conduto beneficiaria quaisquer condutas, não apenas a conduta “fazer declaração falsa”, desde que fosse praticada pelo migrante e com finalidades migratórias. No extremo, estaríamos autorizando, por exemplo, que um estrangeiro pudesse tirar a vida de um agente de segurança que guardasse a fronteira do nosso país para nele adentrar, sem que o Estado Brasileiro tivesse o direito de processá- lo criminalmente, porque ele teria cometido o homicídio por razões migratórias.

Assim, seja porque os conceitos de crime e privação de liberdade evidentemente não são equivalentes, seja pela redução ao absurdo quando se admite essa falsa equivalência, resta evidenciado que o art. 123 da Lei de Migração não serve de argumento para a tese de descriminalização de quaisquer condutas que tenham razões migratórias e não se enquadrem no art. 232-A do Código Penal. Ou ainda, a invocação do art. 123 da Lei de Migração não se presta a justificar a descriminalização das condutas previstas no art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro.

A interpretação mais adequada do art. 123 da Lei de Migração não deve ser no sentido de descriminalizar qualquer conduta, mas tão somente de evitar qualquer tipo de

privação de liberdade indevida por razões migratórias, evitando-se assim detenções de

natureza administrativa unicamente porque o estrangeiro entrou no território nacional de maneira irregular, sem que tenha praticado nenhum crime.

Assim, entendo que o art. 123 da Lei de Migração deve ser interpretado de maneira mais literal, restritiva, quanto à expressão “privação de liberdade”. Fazer aqui uma interpretação extensiva para ler “crime” onde está escrito “privação de liberdade” é indevido, pelos motivos já demonstrados acima.

É evidente que a intenção do legislador com a redação do art. 123 da Lei de Migração não era de modo algum descriminalizar quaisquer condutas praticadas com razões migratórias, já que, como demonstrado acima, isso geraria um salvo conduto desarrazoado para prática de crimes gravíssimos.

Fosse essa a intenção do legislador, teria sido muito mais adequado inserir uma causa de excludente de ilicitude para determinar que fatos praticados com razões migratórias não são crimes, desde que sem uso de violência ou grave ameaça, evitando- se, assim, uma autorização para prática de crimes de maior gravidade.

Pelo exposto, entendo que a interpretação mais adequada ao dispositivo legal em análise é a de que ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias de

maneira indevida. É dizer, caso a conduta com finalidade migratória seja um crime, o

indivíduo poderá ser privado de sua liberdade, sendo preso preventivamente ou em sede de execução penal, sendo essa uma restrição de liberdade plenamente devida. Entretanto, caso a conduta com finalidade migratória não seja crime, o indivíduo somente poderá ser privado de sua liberdade nos casos previstos na própria Lei de Migração, por exemplo, por prisão cautelar para fins de extradição, regulada nos arts. 84 a 86, não se admitindo detenções de natureza administrativa unicamente em razão da irregularidade da migração.

A interpretação aqui defendida garante uma proteção ao estrangeiro, evitando privações de liberdade indevidas, arbitrárias (como seria o caso das detenções de natureza administrativa, fundamentadas unicamente no fato de o estrangeiro ter entrado no território nacional de maneira irregular), sem deixar de respeitar o ordenamento jurídico penal e processual penal brasileiro e sem permitir situações absurdas como a concessão de um verdadeiro salvo conduto para prática de quaisquer crimes com razões migratórias, desde que não se enquadrem no art. 232-A do Código Penal.

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