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5.2 Votos da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público

5.2.2 Voto 439/2018

Este foi o primeiro voto proferido pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão

do Ministério Público Federal sobre o tema, em 05/02/201873:

1. Inquérito Policial instaurado para apurar a possível prática dos crimes previstos no artigo 125, XIII, da Lei nº 6.815/90 (Estatuto do Estrangeiro), bem como nos artigos 304 e 307, ambos do Código Penal, supostamente cometidos por H.O.C ou I.A.A. O investigado teria apresentado documentos fraudados perante a Delegacia de Imigração da Polícia Federal em São Paulo, fato corroborado por perícia papiloscópica que concluiu serem as impressões digitais colhidas sido produzidas pela mesma pessoa, mas atribuídas a H.O.C e I.A.A., sendo que o primeiro identificado obteve permanência em 15/10/2002 e o segundo possuía registro criminal federal.

2. O Procurador da República oficiante promoveu o arquivamento por entender que não haveria mais fato criminoso a ser apurado, uma vez que a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), que entrou em vigor 180 dias após a sua publicação em 25/05/2017, ab-rogou o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) e, consequentemente, descriminalizou as então condutas típicas descritas no artigo 125 e incisos do referido Estatuto, caracterizando a figura do abolitio criminis, causa expressa de extinção da punibilidade, conforme previsto no artigo 107, III, do Código Penal. Com relação aos crimes dos artigos 304 e 307 do Código Penal, entendeu que se tratam de crimes subsidiários, cujo tipo penal só se aplica se não for o caso de crime mais grave. Portanto, uma vez que a conduta central e mais grave prevista no art. 125, XIII da Lei nº 6.815/1980 não é mais típica, o mesmo se aplicaria às figuras delitivas dos artigos acima mencionados.

3. O Juízo da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo, por sua vez, discordou do arquivamento promovido, aduzindo que os fatos descritos nos autos configurariam ilícito penal, previsto no Código Penal, uma vez que o investigado, estrangeiro, teria supostamente, feito declaração falsa em processo administrativo de regularização de sua permanência em território nacional, com ou sem a utilização de documento falsificado. Dessa forma, não haveria que se falar em abolitio criminis, uma vez que a conduta atribuída ao investigado remanesce tipificada no Código Penal.

4. Firmado o dissenso, os autos vieram a esta 2ª Câmara, nos termos do art. 28 do CPP c/c art. 62, IV, da LC nº 75/93.

5. Tendo em vista a ab-rogação do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) pela nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), tem-se que as

73 Ministério Público Federal. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. Voto 439/2018. Relator: Franklin Rodrigues da Costa. DJ: 05/02/2018.

condutas tipificadas no art. 125 e incisos do Estatuto do Estrangeiro foram descriminalizadas, sendo forçoso reconhecer a extinção da punibilidade do fato pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso (CP, art. 107, III).

6. Tratando-se de apresentação de documentos fraudados perante a Delegacia de Imigração da Polícia Federal em São Paulo e diante dos elementos que constam nos autos, verifica-se que o investigado fez uso dos referidos documentos com a finalidade de adentrar em território nacional. Portanto, a falsificação dos documentos foi o meio utilizado pelo investigado para a prática de crime mais grave, qual seja a entrada ilegal em território nacional. Assim, afasta-se a incidência dos crimes previstos nos artigos 304 e 307 do Código Penal, por se tratarem de crimes de aplicação subsidiária.

O argumento adotado pelo Procurador da República pode ser descrito da seguinte forma: o art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro foi revogado; logo, as condutas previstas naquele artigo foram descriminalizadas.

Como esclarecido neste trabalho, a revogação de uma norma penal não implica, necessariamente, na descriminalização das condutas ali previstas. Após a revogação, cabe ao operador do Direito investigar se aquelas condutas se adequam a algum tipo penal, seja ele um tipo penal novo, criado pela mesma lei que revogou o tipo penal antigo; seja ele um tipo penal já existente, que continuou a viger no ordenamento jurídico.

Entretanto, não há na manifestação do Procurador da República nenhuma discussão sobre a possibilidade de enquadramento das condutas descritas no art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro em outro tipo penal, novo ou já existente. A possibilidade de aplicação do princípio da continuidade normativo-típica, portanto, sequer foi mencionada.

Por outro lado, o entendimento do juízo federal de 1º grau foi de que a conduta prevista no art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro permaneceria criminalizada no ordenamento jurídico pátrio, mais precisamente no Código Penal, mesmo após a revogação do Estatuto do Estrangeiro.

Entretanto, ao revisar o processo na forma do art. 28 do Código de Processo Penal, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal não examinou os fundamentos do juiz de 1º grau. Tão somente repetiu as razões do

Procurador da República sem acrescentar qualquer fundamento, nem tampouco rebater os argumentos levantados pelo juiz federal.

Sem entrar, por ora, no mérito do acolhimento da tese de abolitio criminis (o que será feito no próximo capítulo), convém analisar um outro aspecto do voto acima, sem se distanciar do objeto do presente trabalho.

Falou-se que os crimes dos arts. 304 e 307 do Código Penal, imputados também ao agente, seriam, no caso, subsidiários àquele previsto no art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro, de modo que remanesceria o direito estatal de punição apenas em relação a esse último. E ainda que, extinta a punibilidade do delito do art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro, não seria possível seguir na persecução penal dos crimes do art. 304 e 307 do Código Penal.

Segundo Masson74, há subsidiariedade entre duas leis penais quando elas

tratam de estágios ou graus diversos de ofensa a um mesmo bem jurídico. No caso, segundo o voto em análise, a ofensa mais ampla e de maior gravidade, prevista no art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro, engloba as menos amplas, previstas nos arts. 304 e 307 do Código Penal.

Com efeito, extinta a punibilidade da conduta enquadrada na lei principal, não remanesce a persecução em relação às condutas enquadradas na lei subsidiária, já que essas últimas condutas estavam englobadas na primeira.

Uma outra maneira de abordar o assunto seria através do princípio da consunção, de modo a considerar crimes-meio os delitos dos arts. 304 e 307 do Código Penal, que seriam absorvidos pelo delito do art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro (crime-fim). Para que isso ocorresse, seria necessário o atendimento de dois requisitos: que os crimes-meio fossem praticados como fase necessária de preparação do crime- fim; e que os crimes-meio esgotassem sua potencialidade lesiva com a prática do crime- fim.

Se de fato os crimes-meio (art. 304 e 307 do Código Penal) fossem absorvidos pelo crime-fim (art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro) e esse último tivesse sua punibilidade extinta, não remanesceria o direito de punição em relação àqueles. Isso porque, extinta a punibilidade do crime-fim, restaria inviabilizada a persecução penal

74 MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado, Parte Geral, Vol. 1. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 151.

dos crimes-meio, por ausência de justa causa, já que esses últimos não subsistem

autonomamente75.

O que se quer demonstrar é que a eventual permanência da criminalização da conduta estudada após a revogação do art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro não diz respeito à punição dos crimes-meio, ou seja, dos crimes de falso praticados como fase necessária de preparação para a realização da declaração falsa em um dos procedimentos do dispositivo legal mencionado (como já esclarecido, esses costumam ser absorvidos pelo crime-fim, de modo que falta justa causa para a persecução penal deles). A permanência da criminalização, se for o caso, deriva unicamente da prática do crime-fim, que deixa de ser tipificado pelo art. 125, XIII, do Estatuto do Estrangeiro, em razão de sua revogação, mas passa a ser criminalizado em outro tipo penal vigente, novo ou antigo.

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