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Se o mundo fosse claro, a arte não existiria. Camus (2005: 91)

Motivados pela metafórica definição de vida apresentada pelo narrador d’As Intermitências da Morte, dizendo que “a vida é uma orquestra que sempre está tocando, afinada, desafinada, um paquete titanic que sempre se afunda e sempre volta à superfí- cie” (AIM: 173), percebemos o quanto é natural que o homem, no uso da sua condição de ser racional, evidencie desde sempre uma forte tendência, chamemos-lhes mesmo necessidade, muitas vezes sentida como imperiosa, para imanentemente se interrogar, questionar e problematizar. Tal tendência projeta-se não só sobre a sua existência, começando logo pela sua essencialidade, mas também sobre o mundo que o rodeia e as vicissitudes que o caracterizam.

A arte, nas suas mais variadas expressões, tem sido vista como o espaço, se não ideal pelo menos ao alcance do homem, para a libertação dos seus pensamentos mais profundos e recônditos, das suas inquietações, incertezas, indagações e até revoltas. Como ser inteligente, ativo, livre e realizador de valores, o homem é levado a unir e a reunir, nas formas mais diversas, o sensível e o inteligível, o real e o imaginário, o con- creto e o abstrato, o natural e o sobrenatural, o sagrado e o profano, o mágico e o profé- tico, o mítico e o racional, o divino e o humano numa busca incessante de tranquilidade e de compreensão do mundo a que pertence.

Como ser em permanente busca, encontra na arte uma forma de realização ou de libertação. Integrado no mundo social que o rodeia e que ele observa, interioriza-o ou

reprodu-lo na busca dessa libertação. Convergindo para a arte que faz das palavras a sua matéria-prima, há escritores que se afirmam criando um vácuo à sua volta, que interiori- zam o mundo como uma paisagem da alma. Parece-nos que Saramago se encontra entre eles. Falava a partir de si para o mundo, “forjava o que seria a imagem da sua alma na paisagem transitória de mundos possíveis” (Macedo, 2011: 406). Ainda na opinião de Helder Macedo, Saramago consegue, com o seu estilo literário, “levar o leitor para mais longe do que, só por si, terá julgado ser possível. É como se o autor pegasse no leitor pela mão e o levasse, de pormenor em pormenor, a encontrar as respostas plausíveis para perguntas que não tinha feito” (Macedo, 2011: 406).

Esta atitude perscrutadora, indagadora e reflexiva de José Saramago se posicio- nar como romancista, característica, aliás, de escritores grandiosos, é identificadora da sua forma de conceber a escrita. As Intermitências da Morte afirmam-se como um espa- ço onde o autor, através do desafio criado e proposto ao leitor (E se a morte deixasse de matar?), leva o narrador a percorrer os meandros do poder político e económico, abrin- do a oportunidade ao seu questionamento ao mesmo tempo que vai expondo as suas hipocrisias.

Nesta perspetiva, podemos dizer que Saramago se enquadra num leque de escri- tores que se distinguem no universo da criação literária pela seriedade com que questio- nam o “estado de coisas”, problematizam o rumo que os homens de responsabilidade aos diferentes níveis lhes induzem. Diremos ainda, neste contexto, que a palavra de Saramago é ativa e assume uma função de atenção ao mundo real que é transposto, atra- vés do seu olhar, para o mundo romanesco. Estamos perante um autor que usa a palavra com uma função de alerta e de resistência crítica a atitudes, valores, procedimentos e instituições que proliferam no mundo contemporâneo.

Em suma, esta forma empenhada de estar no mundo da criação literária distan- cia-se completamente da de outros escritores que parecem fazer resultar o seu trabalho em romances que, servindo fins menos profundos, são muitas vezes procurados como evasão, fuga ao confronto de duras realidades quando a vida já, gratuitamente, se encar- regada de as trazer, ou, por legítima opção, se constituem como fontes de prazer e de entretenimento. A nosso ver, esses romances pautam-se por uma certa matriz estéril e não temos dúvidas de que estão rodeados de fortes estratégias comerciais, satisfazendo as necessidades de um mercado já instituído e em crescente procura, fruto também das vivências da contemporaneidade, em que a voracidade do tempo é mais sentida.

Para corroborar a existência das diferentes formas, ou mesmo propósitos, aqui muito sucintamente aflorados, de praticar a escrita, ora com uma clara tendência para a reflexão, ora com uma nítida tendência para a evasão e simples entretenimento, evo- quemos Albert Camus, quando, muito expressivamente, dizia “A fecundidade e a gran- deza de um género medem-se, muitas vezes, pelo rebotalho que nele se encontra. O número de maus romances não deve fazer esquecer a grandeza dos melhores” (2005: 91, 92).

Escolher a atitude criadora como estratégia para contornar a dureza da condição humana, aliviar as opressões do espírito, impostas pela natureza de que o homem é fei- to, em vez de qualquer outra, tem, por certo, permitido ajudar uns e compensar outros. Referimo-nos, em primeiro lugar, aos criadores, aos pensadores, no sentido mais meri- tório do termo, aos que são dotados de uma excecional genialidade ao nível da sua inte- lectualidade e da sua sensibilidade, e, em segundo, àqueles que, por menoridade intelec- tual e falta de talento se encontram num patamar diferente (leitores). Com a ação dos primeiros, os segundos podem participar e abeirar-se de problemáticas metafísicas, exis- tenciais, ético-morais, ideológico-políticas, de que de outro modo estariam arredados. Além disso, aos últimos, é-lhes facultada a oportunidade de entrar no universo da fabu- lação que, no dizer de Antonio Candido (2004: 17), é tão importante para o “equilíbrio social” e para a organização pessoal.

Estamos, assim, convencidos, de que está perfeita e consensualmente reconheci- da a dimensão indagadora e reflexiva da criação como atitude possível do homem lúci- do e consciente. Uma atitude que pode permitir desfazer mistérios, recuperar a sereni- dade, como reconhece Vergílio Ferreira:

Todas as coisas têm em si um halo de mistério. E não apenas aquelas em que o misté- rio está visível, como no olhar de um cão a interrogar. Mas mesmo nas coisas mais positivas e crassas e materiais como uma pedra. Todas as pessoas mais atentas o sabem. E a tentação é logo tocar esse mistério, revelá-lo, tê-lo nas mãos. É essa uma forma de imediatamente o des- truir. E a forma de uma sua destruição é trazê-lo mesmo para um domínio da palavra que o contorne, o positive, com a simples tentativa de o sistematizar, o incorporar numa doutrina, num certo modo de fazer dele um tratado, uma corrente, uma seita. Ele endurece logo assim, muda de substância, ou dissolve-se como um sonho pela manhã. (…). O mistério vive-se ou experimenta-se, não se reduz a um tratado de misteriologia. Se tentamos surpreendê-lo, ele reti- ra-se, refugiando-se onde não sabemos. (…) a arte moderna cometeu esse acto sacrílego e foi castigada pelo seu crime.

Vives rodeado de mistério e jamais o dominarás. Vive-o, respira-o. E dorme nele como no seio de uma floresta (Ferreira, 2004: 124.125).