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3.2. O romance e os seus propósitos no universo de José Saramago

3.2.1. O desassossego da escrita

Usando como fundamento os sentidos propostos no desenvolvimento do Capítu- lo II deste trabalho, particularmente no que toca à relação do homem com o seu seme- lhante, as relações de poder e as oportunidades de reflexão, subjetivamente criadas pelo autor-narrador, parece-nos evidente que Saramago se propôs combater a quietude, a serenidade, a tranquilidade. Implicando abertamente o leitor, diremos que, para o autor, a escrita, enquanto forma de expressão de pensamento e de intervenção intelectual, foi instrumento, foi agente provocador e plataforma de interrogação permanente do indiví- duo e da sociedade. A literatura de Saramago faz pensar, como bem exemplifica o enre-

      

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Queremos referir-nos aos seus romances O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim. No pri- meiro, humanizando Jesus Cristo, ao mesmo tempo que fustigava Deus explorando as contradições racio- nais do relato bíblico. No segundo, reescrevendo alguns episódios do Antigo Testamento que, segundo o autor, tinham como característica comum a violência e o absurdo sobre o qual se sustentam.

Acrescentemos, a propósito da temática religiosa, a opinião de Eduardo Lourenço com a qual estamos de acordo em resultado das leituras que fizemos sobre o escritor e o cidadão José Saramago: “A sua «cruzada contra Deus», a espécie de western metafísico implacável em que se converteu, é filha de uma funda vivência, de uma humaníssima vulnerabilidade frente à universal e aterradora presença do Mal” (Lourenço, 2011: 403).

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O subtítulo que aqui propomos não se restringe somente à explicitação das considerações que nos ocorrem desenvolver. Considerámo-lo expressivo, porque não podemos perder de vista que estamos a produzir uma leitura crítica d’As Intermitências da Morte e não somos de todo indiferentes ao desassos- sego e aos desassossegos aí plasmados.

do d’As Intermitências da Morte: “Aonde é que isto iria parar se todos passássemos a viver eternamente, sim, aonde é que isto iria parar,” (AIM: 68). Nesta medida se propõe o desassossego presente na palavra escrita do romancista.

Com a sua criação literária, muitas vezes aliada à atividade cívica, nunca isolada daquilo e daqueles que o rodearam, cumpriu aquilo que é mais caro aos artistas e aos criadores de arte em geral – conseguiu com a sua obra fazer pensar os destinatários, per- turbar os conformados, incomodar as consciências, desassossegar os espíritos e aguçar a lucidez. Fê-lo em todas as suas obras, atingindo, contudo, maiores efeitos mediáticos nas obras de temáticas relacionadas com a religião, chocando certas mentalidades. Nes- tas onde a religião foi pretexto para a criação de enredos, diremos com Maria Alzira Seixo (s/d: webgrafia), que, não negando a religião, na aceção etimológica da palavra, levaram a que ela se debatesse (e debata), convocando-a, homenageando-a até.

Como forma de ilustrar esta tendência para a convocação do pensamento para o entendimento de questões envolventes e, por vezes, inquietantes sirvamo-nos de um exemplo aparentemente muito simples extraído da obra em análise. Consiste na intera- ção verbal entre duas personagens episodicamente referidas, em registo alegórico, “o espírito que pairava sobre as águas” e “o aprendiz de filósofo”, que encetam um diálogo em torno da temática central do romance, a morte, generalizada ao mundo animal e vegetal. O desenvolvimento da conversa permite-nos perceber que o pensamento, aliado ao poder elucidativo das palavras, conduz à construção de conhecimento e ao sossego do espírito:

Porque cada um de nós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secre- to desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então as mortes são mui- tas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão, De certo modo sim, (…) É certo que o essencial da tese havia sido obra do espírito que pairava sobre a água do aquário, porém, bastará tornar a ler o diálogo desenvolvido nas duas páginas anteriores para reconhecer que a contribuição do aprendiz de filosofias também teve a sua influência na gestação da inte- ressante ideia, pelo menos na qualidade de ouvinte, factor dialéctico indispensável desde sócra- tes (AIM: 79-80).

No que respeita a uma eventual função da literatura, um tópico tradicionalmente presente no debate teórico-prático sobre a literatura, Saramago foi categórico afirmando que “A literatura não tem uma função”, embora admita que ela pode “ajudar a pensar” (apud Aguilera, 2010: 199):

No passado houve a ilusão de que a literatura e a arte podiam mudar a sociedade. Eu não acredito. E tenho isso claro, porque a evidência mostra que, se a arte e a literatura pudessem modificar a sociedade, as obras-primas literárias, filosóficas, musicais, pictóricas e arquitectónicas de séculos e séculos já teriam mudado, e não foi assim. (…) A literatura poderá exercer uma influência pessoal, mas não social.” (Saramago apud Aguilera, 2010: 196).

Este modo transparente de conceber a literatura denota que, na perspetiva do autor, ela não tem um papel transformador sobre a sociedade, será antes o mundo que vai exercendo um papel transformador sobre a literatura pela mão do homem que a escreve. Assim sendo, não se pode atribuir a esta arte a responsabilidade do bem e do mal da humanidade. Ela residirá no ser humano que poderá ser o agente de transforma- ção, baseando-se num quadro de valores e de integridade moral.

Maria Luíza Scher Pereira (2011), refletindo sobre a produção romanesca de Saramago, num artigo intitulado Saramago, para quê?, onde não esconde a sua admira- ção pelo autor, homem e obra, equaciona as razões que terão levado a Real Academia Sueca a atribuir-lhe o mais alto galardão da literatura, sobrevalorizando a solidez do seu projeto literário e a coerência do seu projeto de vida, pautado, este, pela combativa e corajosa “defesa de um mundo mais justo, mais igual, menos excludente”. Lem- brando que o autor foi contemporâneo de outros gigantes da literatura de língua portu- guesa, todos eles com obras respeitáveis, foi ele, todavia, quem recebeu o único Prémio Nobel. Em sua opinião,

a Academia percebeu que ele não só realizou um projeto literário extremamente bem arqui- tetado, como também, que esse seu projeto de escrita se articulava fundamentalmente com um projeto de vida. (…) Um escritor observador, participante e crítico do seu tempo. (..) O projeto literário é extraordinário. Sua obra parece ter como origem uma “potência” capaz de fazê-la se estruturar como um complexo e articulado discurso crítico-criativo, que, partindo da reflexão sobre o seu país, vai se expandindo para toda a civilização europeia, e para o próprio Ocidentalismo como uma cultura fundada no pensamento judaico-cristão (Pereira, 2011: 19).

Mostrando-se profundamente conhecedora do universo ficcional e ontológico do autor, a estudiosa brasileira apresenta os pilares da sua fundamentação, servindo-se de várias das suas obras a começar por Levantado do Chão, passando, entre outras, por Memorial do Convento, A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa, O Evange- lho segundo Jesus Cristo e terminando com As Pequenas Memórias das quais destaca o empenho do escritor na dinâmica com o mundo dos homens.