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Podemos usar cirurgia estética e cosmética, mas a velhice e a morte apenas podemos adiá-las. E no fundo aceleramos um pouco a morte quando inter-

namos os nossos idosos e os escondemos da nossa vida. O seu fim começa, então, nessa invisibilidade. Saramago (apud Aguilera, 2010: 184)

A problemática da Morte vive de mãos dadas com a temática da Velhice. Filoso- far é aprender a morrer, dizia Montaigne. É também aprender a conhecer a proximidade da morte. A velhice constitui sob diversos aspetos uma experiência tão insólita como familiar da morte.

Num primeiro período da história da humanidade, os velhos teriam sido conside- rados inúteis e um peso para o grupo social. Depois ter-se-ia tido em conta a sua sabe- doria adquirida pela experiência e ter-se-ia manifestado honra e respeito aos velhos.

Na realidade as duas atitudes coexistem na maior parte das sociedades. O que conta não é tanto a sua idade como o grau da sua fraqueza física e a sua necessidade de auxílio. Há que considerar ainda o modo de vida dos grupos sociais, mas acontece por exemplo que os novos nómadas, para os quais os velhos e os doentes representam um peso considerável, tratem igualmente estes últimos com muita atenção, outras vezes com a desenvoltura que se supõe a priori.

Aliás, a opulenta sociedade ocidental trata muitas vezes os seus velhos com negligência, ou mesmo com desprezo, não saindo ileso do retrato o romance em estudo, através de uma veemente atitude de condenação da parte do autor-narrador:

é certo que também existem, como demasiado bem sabemos, aquelas desalmadas famílias, que deixando-se levar pela sua incurável desumanidade, chegaram ao extremo de contratar os serviços da máphia para se desfazerem dos míseros despojos humanos que agudizavam interminavelmente entre dois lençóis empapados de suor e manchados pelas excreções naturais, mas essas merecem a nossa repreensão(AIM: 85).

O desprezo com que muitos dos idosos são tratados demonstra a decadência de valores de uma sociedade que não estima aqueles que chegaram ao final da sua vida útil em termos de trabalho físico, mas que muito ainda poderão dar. É valioso o legado que representam na estruturação e no equilíbrio de uma sociedade que honre a sua espécie. Uma sociedade que se comporte desta maneira não é digna de considerar civilizada.

N’As Intermitências do Morte, existe a preocupação de sobrelevar a velhice, querendo o autor-narrador retratá-la com respeito e deferência. Entende-se que o velho atinge um estado de desenvolvimento moral e intelectual que faz dele uma pessoa sábia e experiente. Note-se a utilidade do velho e humilde porteiro, como veremos no capítulo seguinte, na ajuda à compreensão do sentido da expressão popular “ encanar a perna à rã”, desconhecida dos jornalistas e não comtemplada, de forma suficientemente esclare- cedora nos dicionários da língua materna.

Na biografia de Confúcio, diz-se que aos cinquenta anos ele “conhecia os decre- tos dos deuses”, ou seja, tinha desenvolvido o lado espiritual da sua natureza; aos ses- senta anos, os seus ouvidos estavam “atentos à verdade” e aos setenta podia ouvir os impulsos do seu coração sem o risco de agir mal. Esta atenção à velhice refletia-se no simbólico. As árvores mais resistentes eram símbolo de longevidade, um abeto coberto de neve era o emblema da longevidade e da imortalidade. Está, assim, bem documenta- da a importância e a utilidade dos mais velhos na construção de sociedades sapientes, lúcidas e humanamente mais próximas dos valores da dignidade e da autenticidade que nos podem definir como pessoas humanas.

Os velhos são iguais às crianças por causa da sua impotência e necessidade de auxílio. Mas são também importantes para a sobrevivência do grupo social, e gozam, enquanto tais, de prestígio. A velhice não permite as ocupações que exigem vigor, agili- dade e rapidez do corpo, mas permite as grandes ações para as quais são necessárias sapiência, lucidez, autoridade e valor das opiniões. Os velhos importam pelo papel pedagógico que assumem, pelos ensinamentos morais, pela consciência da sua impor- tância na preparação para a vida dos jovens e adultos que deixam quando partem.

Recordemos o modo hábil e prático como o velho de uma das fábulas de La Fontaine simula um contexto de ausência por motivo de morte e demonstra a validade das suas ideias e dos seus ensinamentos, instruindo os filhos para o valor da união fra- terna:

“Um velho sábio, e prudente / vendo-se vizinho à morte, / Chama três filhos que tem / E fala-lhes desta sorte: “Eia, vede, amados filhos, / Se quebrais por força

ou jeito / Este emblema”; e tira um molho / De varas de vime feito. / Ao filho mais velho o dá,/ Que se propõe a parti-lo;/ Mas, por mais forças qu’ emprega, / Nunca pôde consegui- lo./ Pega-lhe o filho segundo,/ Destro e valente rapaz,/ Que parti-lo não consegue / Por mais esforços que faz. / Entregam-no ao mais pequeno, / Que blasona de mui forte, / Torce, dobra-o, cora e sua,/ E deixa-o da mesma sorte./ ”Fracos moços!”, diz o pai, / ”Vossa fra- queza celebro! / Vede como desta idade / Essas varas todas quebro.”/ Depois, desatando o molho, / Pronto as varas dividindo, / Com toda a facilidade / Uma a uma as vai partindo. / E diz” Vede neste exemplo, / Filhos de meu coração, / Os desastres da discórdia / E as vanta- gens da união. / Partir não podeis, ó moços, / As varas estando unidas; / Mas depois de separadas / São por fracas mãos partidas. / Se unidos vos conservardes, / Assim, ó filhos, sereis, / E aos baldões ímpios da sorte / Sem custo resistireis; / Mas se um dia a desgraça / Vos chegar a desunir, / Qualquer de vós aos seus golpes / Não poderá resistir.”/ Assim o velho proclama / Esta brilhante doutrina, / E no fim de pouco tempo / Sua carreira termina. / Os filhos choram-lhe a morte / Com lamentos deploráveis! / Porém, lembram-se mui pou- co / Dos seus conselhos saudáveis. / Porque danoso interesse / Em partilhas os envolve, / E um credor, e outro credor / Os bens paternos dissolve. / Depois, vomitando as injúrias, / Uns contra os outros litigam, / E os ministros com prisões / E com multas os castigam. /

Pobres por fim, noite e dia / Com pranto e queixas amaras / Recordam, mas sem remédio!, / O sábio exemplo das varas (Fontaine, s/d: 123).

As sociedades contemporâneas veem-se confrontadas com um fenómeno de pesadas consequências como é o envelhecimento da população. Para além do problema económico, existe um problema moral que foi bem delineado por Hemingway, o qual dizia não haver pior morte que perder o centro da sua vida, ou seja, aquilo que faz dela o que verdadeiramente é, uma vida dotada de sentido.

Cícero, na sua famosa obra sobre a Velhice, De Senectute, terá afirmado que “a velhice longe de ser débil e inerte, é, pelo contrário, laboriosa, sempre empenhada em fazer ou planear coisas novas, segundo a natural propensão de cada um na vida passada” (apud Rosa, 2012: 20). Perante estes testemunhos, compete aos responsáveis pelas deci- sões políticas e sociais envidar esforços no sentido de dignamente darem o seu contribu- to para que os nossos idosos vivam digna e humanamente o resto dos seus dias. Se assim for, impediremos, ou pelo menos tentaremos impedir, que, gradualmente, os ido- sos se sintam inúteis e sós. Dizia Fernando Pessoa, em diálogo com o seu heterónimo Ricardo Reis, numa conversa casual de natureza existencial que a solidão é a primeira manifestação de inutilidade: “creio mesmo que é essa a primeira solidão, não nos sen- tirmos úteis” (Saramago, 2002b: 188).