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Artista, mercado e público

No documento Arte e conflito social (páginas 68-89)

A condição autônoma, que no presente caracteriza o trabalho dos profissionais da música, (SEGNINI, 2014) tendo como princípio o individualismo e o livre desenvolvimento da criatividade e da auto realização, abdicando de uma integração social plena em uma sociedade organizada pelo mercado, (MENGER, 2005, p. 23) começou se organizar na modernidade. Tais mudanças alteraram não apenas o sentido e o lugar da cultura, arte e artista na sociedade, mas também o do público.

Antes o público das artes se restringia aos círculos de cultivados da alta sociedade. Enquanto o artista era considerado um trabalhador manual, necessitava adentrar os círculos da nobreza e sujeitar-se ao gosto e à dependência do mecenas para sobreviver. A indústria e o mercado ainda não estavam desenvolvidos e o círculo de receptores das obras artísticas era muito restrito. Especialmente na música, eram os gostos da aristocracia que ditavam padrões artísticos, pois não havia público suficiente na burguesia, nem estrutura social para sustentar o músico enquanto artista autônomo.

A decisão de Mozart de se estabelecer como artista autônomo ocorreu numa época em que a estrutura social ainda não oferecia tal lugar para músicos ilustres. O mercado de música e suas instituições correspondentes estavam apenas surgindo. A organização de concertos para um público pagante, e as atividades editoriais na venda de músicas de compositores conhecidos, mediante adiantamentos, se encontravam, na melhor das hipóteses, em seus estágios mais iniciais. (ELIAS, 1995, p. 33 - 34)

As mudanças que ocorreram na Europa iam aos poucos iam instituindo o mercado e a indústria como intermediários entre artista e público, estabelecendo condições para o a realização do desejo que a Mozart ainda não era possível.100 Na medida em que o capitalismo se organizava, rompia as relações tradicionais pautadas no favor, no patronato e na dependência dos cargos nas cortes. Na música, contudo, o processo ocorreu tardiamente em relação ao mercado literário.

Na metade no século XVIII já era possível ao escritor de literatura e filosofia, especialmente na Alemanha, assumir a condição de autônomo na sociedade e acessar o público. Havia os primórdios de uma estrutura especializada (mercado consumidor de burgueses instruídos, indústria em desenvolvimento e oferta de publicações). Diferentemente, no mesmo momento, a subsistência dos músicos ainda derivava quase exclusivamente do mecenato da

corte. 101 Para a literatura, um comércio significativamente desenvolvido já existia nas primeiras décadas daquele século, conforme analisa Williams (2011, p. 56)

“A ideia do escritor criativo independente, o gênio autônomo, estava se transformando em uma espécie de regra (...) A partir da terceira e quarta décadas do século XVIII vinha se desenvolvendo um público de leitores da nova classe média, cuja ascensão corresponde muito proximamente à ascensão que aquela mesma classe teve à influência e ao poder”. Embora o patrocínio ainda fosse necessário ele foi sendo suplantado pelas relações modernas de produção e consumo. Os padrões artísticos aristocráticos, vão sendo superados pelo critério da venda, proveniente da burguesia em ascensão, e a indústria vai emergindo enquanto necessário meio de circulação das obras literárias.

Os padrões artísticos, que para os músicos na corte eram excelência e a virtuosidade, são alterados. Este processo de conversão da arte em mercadoria e dos artistas em trabalhadores especializados coexistiu com resistências contrárias à submissão ao gosto do público inculto. As reações contrárias dos artistas românticos em defesa da “verdade imaginativa”102, da criatividade e originalidade, já analisado no capítulo precedente, evidenciou disputas no tocante à definição do que seria a verdadeira arte. Enquanto os artistas defendiam a noção de “realidade superior” o mercado definia a popularidade como critério de sucesso do artista, em detrimento do conteúdo da obra.

Para os artistas a reação era “rejeição do público e da popularidade como padrões de mérito. ”103 O desprezo em relação ao mundo da produção, ao qual estavam desde então subordinados era acompanhada da rejeição ao consumo de massa e à manufatura.

Notadamente tal uma mudança de atitude em relação ao público manifestou-se na forma de um desagrado mais agudo e geral, uma desqualificação de seus julgamentos. Composto de espíritos simples, o público foi colocado pelos artistas românticos em contraposição a uma noção idealizada de povo, geral e abstrata, cujo espírito e sabedoria seriam alçados como parâmetro de excelência artística. Tal modelo idealizado foi usado para rejeitar as reações reais do público, considerado incapaz de admirar as obras cultas.

O argumento era que a ampliação do público submetia o trabalho do artista ao crivo de uma “tola multidão”104 de não-cultivados, que contrasta com pequeno número de pessoas cultas e com a abstração na figura do leitor ideal. Dessa mudança de referencial decorreria a

101 Ibid., p. p.17; p32. 102 Id. Ibid., p. 60. 103 Ibid., p. 59.

queda dos padrões artísticos. Assim, no plano conceitual, os adjetivos “culto”, “cultivo” iam surgindo, e a noção de “cultura” enquanto oposta ao mercado:

Essa insistência [em um “espírito personificado” de um povo], vale a pena enfatizar, é uma das fontes primárias da ideia de cultura. Cultura, o espírito de um povo’, o verdadeiro padrão de excelência, passou a ser disponível no decorrer do século, como o tribunal de recursos em que valores reais eram definidos, normalmente em oposição aos valores ‘artificiais’ lançados pelo mercado e por operações semelhantes da sociedade. 105

A oposição construída entre valores “reais”, idealizados, e “artificiais” foi feita por meio do desprezo pela imitação, a qual adquiriu sentido pejorativo. Anteriormente, no interior das convenções artísticas, a ideia de imitação era usada para descrever positivamente o trabalho artístico, como a “imitação da realidade universal”106 Ela passou então a ser limitada à ideia da imitação de obras já feitas, à adesão a regras alheias. Com essa transição, o sentido negativo que adquire a imitação sustenta, a um só tempo, a crítica aos processos de manufatura aplicados ao domínio da arte, crítica à civilização industrial que se anunciava, e sustenta também a requalificação do artista como “gênio criativo”. Pois para captar a “verdade universal” – e isto não era posto em questão – o artista deveria agir por meio da imaginação e sensibilidade.

A arte foi eleita como esfera superior e lócus privilegiado para salvaguardar valores considerados ameaçados pelo advento da industrialização, o que consistiu em importante baluarte de uma crítica às bases da nova organização social. A crítica da arte ao mercado e, por conseguinte, ao capitalismo, necessitou desse estabelecimento de um espaço abstrato de superioridade, oposto ao da produção. Justamente por essa capacidade de abstração é que foi possível condenar o utilitarismo ao qual a arte estava, a partir de então, sujeita.

Porém, tal abstração levou a uma concepção de que as atividades artísticas seriam o único domínio possível de manifestação das atividades humanas criativas criando uma falsa dissociação.107 Levou também à rejeição do público real, considerado inculto e tolo, criando cisão entre obras artísticas feitas para reduzido número de pessoas e obras produzidas pela indústria para as multidões. O que podemos inferir da leitura de Williams, contudo, é que não teria sido esta a intenção do movimento romântico. As concepções da arte como “esfera superior” e a do artista enquanto um tipo especial de pessoa foram se aprofundando, na medida em que a industrialização tornava esse isolamento cada vez mais difícil de ser justificado.

105 Ibid.., p. 58. (Aspas do autor) 106 Ibid., p. 63. (Aspas do autor) 107 Ibid., p. 55.

Os critérios do mercado para a venda em massa são quantitativos e não qualitativos. A arte crítica e reflexiva converteu-se em privilégio da minoria culta. Estar às margens do mercado passa a ser o lugar reservado aos artistas e público cuja origem social permita o distanciamento do mundo da produção ou para aqueles que se adaptam à instabilidade e à pobreza.

A estrutura de sentimento do medo (WILLIAMS, 2011) analisada do capítulo I desta dissertação, foi articulada com a fuga imaginativa, que se constituiu parte do conteúdo da noção de arte. Os artistas românticos não propuseram soluções aos dilemas da modernidade; a fuga esteve presente nos romances industriais analisados por Williams como escolhas dos autores para o desfecho de suas personagens, consolidando-se como uma estrutura de sentimento moderna. A rejeição da sociedade e o escape para algo externo a ela vai se repetir nas histórias analisadas por Williams no capítulo Os Romances Industriais. A emigração, aparece em Mary Barton da autora Sra. Gaskell e Alton Locke, de Kingsley. Em North and South, por exemplo, também de Elizabeth Gaskell, a fuga da situação incômoda ocorre por meio de uma herança, assim como em Sybil, de Disraeli. Em Tempos difíceis, romance de Charles Dickens, a imagem de um circo representa relações sociais não permeadas pelo egoísmo e o lucro.108

O conteúdo crítico da arte construída pelos românticos havia sido pautado em questionamento profundo das bases do industrialismo e na condenação de seus males. Na medida em que tal noção de arte foi se constituindo enquanto domínio da minoria culta, a negação da sociedade, passou a incluir o medo em relação à classe trabalhadora e do populacho urbano. A fuga imaginária das condições de vida degradantes, mantendo inalterada a realidade presente nos romances comercializados no industrialismo consistiu em instrumento para suportar o sofrimento quotidiano que condicionava os trabalhadores longas e duras jornadas de trabalho nas indústrias.

A construção da “fuga” é funcional à manutenção do sistema. A organização e expansão do capitalismo rompe relações sociais pautadas no compartilhamento de experiências e as reorganiza sob novos valores: individualismo, lucro e realização pessoal. O desvelamento dessa estrutura de manipulação dos desejos humanos e de ruptura com experiência real é analisado por Williams por meio da biografia do romancista inglês do D.H Lawrence, que escreveu suas obras nas primeiras décadas do século XX.

Lawrence, um exilado, isto é, nutrindo um desejo pela reforma daquela sociedade, não se deixou iludir pelo escape parcial à condição proletária, descortinando os mecanismos que estão no cerne da máquina capitalista. O sistema necessita do individualismo e as narrativas de sucesso. Em suas lembranças de infância como filho de um mineiro, Lawrence salienta fatos ordinários como os mais importantes, inclusive as brigas, já que são expressões de intimidade e vínculo real.109

O ideário de felicidade serve para nutrir a competição entre as pessoas, em contraposição aos vínculos reais de compartilhamento e união, ameaçados. Lawrence, enquanto escritor, conseguiu criticar tal ilusão por meio da abstração compreendida na arte enquanto realidade superior e crítica; por meio da arte foi possível o distanciamento com relação à tal realidade e Lawrence, conforme analisado por Williams, sustentou a crítica e o compromisso com reforma da sociedade.

O público real é a multidão.110 A concepção idealizada construída pelos artistas românticos é uma abstração, pois a multidão está imersa nas experiências concretas de vida. Apesar da pretensão de universalidade, o ideal de civilização foi forjado nas elites e absorvido pela burguesia, tendo sido concebido como o percurso correto para toda a nação, e único parâmetro do comportamento civilizado (ELIAS, 2011, p. 50). Isto é, o bom comportamento é aprendido socialmente. Na dominação simbólica dos gostos e padrões estéticos normativos impõe distância em relação às experiências da multidão (populacho) e o uso da arte enquanto fuga, pelo entretenimento ou pela imaginação de situação melhor. A “cultura de minoria”111 carregou não apenas a condenação moral do lucro e do mercado mas também da pobreza e seus processos simbólicos.

A estrutura de sentimento da fuga, produto da sensibilidade artística, diante do que pode ser considerado caótico, permeia também no presente, a noção de arte, diante de problemas sociais e urbanos para os quais não se encontram soluções, especialmente no contexto de redução do Estado do bem-estar social e privatizações que se articulam cada vez mais com todas as dimensões da vida, inclusive na arte, conforme analisado em Wu (2006), ameaçando o conteúdo crítico da arte. (YÚDICE, 2006)

109 Ibid., p. 230.

110 Williams analisou o público de literatura do século XIX na Inglaterra. Nesta pesquisa, esta perspectiva é empregada apenas iluminar nosso objeto, que trata do público de música no contexto atual brasileiro. Não é objetivo aprofundar na discussão das categorias de público e multidão, particularmente desenvolvidas por Gabriel Tarde, 2005, na obra A Opinião e as Massas.

Na Virada Cultural, a articulação de conteúdos antagônicos de arte e dos conflitos sociais que carregam objetivam a pacificação, conforme analisado no capítulo I. Os conflitos sociais da Virada Cultural devem ser gerenciados no interior de hierarquias econômicas e simbólicas de cidade de 12 milhões de habitantes. O Observatório de Turismo e Eventos, vinculado à SP Turis realizou em parceria com a SMC série de pesquisas amostrais sobre o perfil do público da Virada Cultural e identificou que a extensa maioria do público do evento em 2015 mora na cidade de São Paulo, 85% do total.

O público da Virada Cultural de São Paulo é composto de milhões de pessoas e cresceu ao longo dos anos. Em 2006, segunda edição, houve circulação de aproximadamente 1,5 milhão de pessoas no evento segundo informações históricas presentes na página oficial.112. Em 2012 a organização estimou 4 milhões, dos quais, de acordo a quase totalidade ( 92%) de residentes da cidade de São Paulo. (SP Turis, 2012)113

A primeira análise dessa “multidão” que caracteriza a Virada Cultural evidencia sua composição por gênero. Em 2015 houve leve predomínio de mulheres (53,9%); (SP Turis, 2015)114 A participação feminina cresceu em 2016 (56%) (Virada Cultural, 2016c)115. Em edições anteriores havia sido constatada pelas mesmas pesquisas maioria de homens (sem variações significativas): 54% em 2010, 51,7% em 2011, 52,3% em 2012 e 54,7 % em 2013 (SP Turis, 2010 – 2013)116. Os dados demonstram que há forte participação das mulheres entre público na Virada Cultural, que constituem importante parcela dos frequentadores; indicam também que é precoce afirmar a consolidação das mulheres enquanto maioria no evento.

A idade média foi de 33,8 anos e, em relação à escolarização 30,2% possuíam nível médio completo, 15,% nível superior incompleto e 30%,superior completo (30,1%). Nos extremos, apenas 6% declararam possuir título de pós-graduação e 18,2% até o ensino médio incompleto. No tocante à raça, os brancos são maioria significativa, 65% aproximadamente, negros e pardos somam 33%.

112 Virada Cultural, 2016a. Cf. nota de rodapé 18.

113 Disponível em: < http://www.observatoriodoturismo.com.br/pdf/virada_2012.pdf/>. Acesso em 17 jun. 2016. 114 Disponível em: <http://www.observatoriodoturismo.com.br/pdf/VIRADA_CULTURAL_2015.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2016.

115 Disponível em: <http://www.viradacultural.prefeitura.sp.gov.br/imprensa/publico-aprova-virada-cultural- 2016-e-nota-do-evento-sobe-em-relacao-a-2015/>. Acesso em: 27 set. 2016.

116 SP Turis, 2010 – 2013. Disponível em: <http://www.observatoriodoturismo.com.br/?s=virada+cultural>. Acesso em: 27 jul. 2016.

TABELA 12 - Grau de Instrução Virada Cultural de São Paulo 2015 Item % Fundamental incompleto 2,5 Fundamental 5,6 Médio incompleto 10,1 Médio completo 30,2 Superior incompleto 15,1 Superior completo 30,1 Pós-Graduação 6,5

Fonte: SP Turis, 2015. p. 1 Disponível em:

<http://www.observatoriodoturismo.com.br/pdf/VIRADA_CULTURAL_2015.pdf >. Acesso em: 17 jun. 2016

TABELA 13 - Etnias Item % Branca 65,2 Parda 19,0 Negra 14,1 Amarela 1,3 Indígena 0,4 Fonte: SP Turis, 2015, p.2.

Um quadro geral do público (multidão) da Virada Cultural 2015 até o momento evidencia que a maior parte da amostragem está situada nas faixas intermediárias de educação e com predomínio de brancos. A maioria feminina da 11ª. edição esteve distante de ser refletida dos palcos de música, havendo contraste entre a extensa participação das mulheres enquanto público e seu reduzido número nos palcos analisados, Júlio Prestes e Funk SP, e entre os cachês de música mais elevados.117 O fato reitera análise de Segnini (2014), que constatou extensa maioria de homens no campo da música.

Os assalariados com registro em carteira de trabalho constituíram a maior parcela (40,9%) do público, predominando renda familiar entre 1 a 5 salários mínimos (63%). As duas faixas de renda imediatamente superiores, até 15 salários mínimos, representaram parcela significativa (27%).

TABELA 14 - Ocupação ou atividade principal

Item %

Assalariado com registro 40,9

Assalariado informal 6,9 Funcionário público 5,9 Profissional liberal 3,3 Autônomo 17,0 Estudante 10,6 Empresário/Microempresário 2,5 Aposentado/Pensionista 4,1 Dona de casa 2,5 Desempregado 6,3 Fonte: SP Turis, 2015. p.2

TABELA 15 - Renda Familiar Mensal

Item % Até R$ 788 4,1 De R$ 788 a R$ 2.364 34,8 De R$ 2.365 a R$ 3.940 28,3 De R$ 3.941 a R$ 7.880 19,8 De R$ 7.881 a R$ 11.820 7,5 De R$ 11.821 a R$ 15.760 3,0 Acima de 15.761 2,5 Fonte: SP Turis, 2015. p.2.

A partir dos dados institucionais acima a Virada Cultural pode ser caracterizada como evento de trabalhadores assalariados formais de estratos inferiores e médios da classe média com ensino médio ou diplomados do ensino superior. Os mais pobres e com pouca ou nenhuma escolarização representam parcela reduzida do público, assim como os mais ricos, com renda familiar superior a 15 salários mínimos, e os mais escolarizados, com pós- graduação.118

118 Não possuímos informações sobre os locais onde foi colhida a amostragem, 1846 entrevistados, para, caso necessário, problematiza-la.

Indagados sobre as motivações para frequentar o evento, houve predomínio de objetivos externos à arte. Somadas, as respostas “espetáculos diversificados”, “curtir com amigos/parentes”, “poder andar a pé a noite pelo centro” e “condições do clima/tempo” obtivemos mais da metade (56,7%) de objetivos relacionados ao entretenimento e ao passeio.

TABELA 16 - O que motivou sua vinda nesta edição?

Item %

Novas atrações e talentos 25

Espetáculos diversificados 24,6

Curtir amigos / parentes 23,6

Apreciar a cultura da cidade 7,4

Poder andar a pé à noite pelo centro 4,6

Condições do clima / tempo 3,9

Outros 10,9

Fonte: SP Turis, 2015. p.5.

A lógica interessada que predomina na arte e analisada por Wu (2006) e Yúdice, (2006) é manifestada nas motivações do público que frequenta eventos musicais. A música ao vivo representa primordialmente um instrumento para a socialização em espaços públicos, o que prevalece sobre o conteúdo artístico. Ao realizar pesquisas na cidade de Madri, Espanha, o etnomusicólogo e professor da Universidade Complutense de Madri Héctor Fouce (2012), conclui que a música, na perspectiva dos jovens entrevistados, é pretexto para encontrar amigos. Nas falas de tais jovens, o autor salienta a rejeição da ideia de que o gosto musical delimite identidades e fronteiras bem definidas entre amigos, separando-os pela identificação com o conteúdo de um estilo musical em especial. O autor afirma, citando um dos entrevistados: “Para os ouvintes, ‘os concertos são legais, ainda que não goste da música’.”119 (FOUCE, 2012, P. 175, tradução própria) O forte predomínio da socialização e do consumo na música é também evidente nas tentativas de defesa de espaços de preservação da expressão artística “pura”. Eventos em locais pequenos, frequentemente dentro de residências, em espaços restritos com divulgação “de boca em boca” ou em rede, ocorrem em cidades globais como Madri em contraposição às interferências na música, como forma de resistência que emana especialmente de jovens entusiastas culturais pertencentes aos extratos superiores da sociedade.

Esse valor central da socialização no espaço público é discutido por vários músicos e produtores entrevistados. Em Madri está surgindo uma cena de concertos domésticos (como o Live in the living ou Concertos íntimos), que se celebram em casa particulares ou em espaços habitualmente alheios à música, enfatizando a possibilidade de escutar a música sem interferências. 120

O predomínio da arte como recurso para socialização e ocupação do espaço público, é confirmado pela motivação principal do público da Virada Cultural de 2015 e nos discursos políticos analisados no capítulo precedente. Dentre as artes que compuseram a programação, apesar da música ter sido a maioria, não foi eleita em 2015 programação preferida dos entrevistados. Música apareceu em sétimo lugar na preferência dos entrevistados, porém pode estar oculta em outras categorias, por exemplo show. (Tabela 17) Essa preferência pela cultura popular em relação à música não é confirmada na edição subsequente. Considerando a discrepância dos dados decidimos não nos aprofundar nesse aspecto nesta pesquisa. De acordo com o site oficial, citando pesquisa da SP Turis, 2016, afirma-se: “O levantamento aponta ainda que 91% dos entrevistados apontaram os palcos musicais como o melhor da programação do evento, seguidos pelas apresentações de Cultura Popular com 15,6%, espetáculos de dança com 10,5% e Teatro com 10,3%121

Na Virada Cultural 2015, em relação aos estilos musicais, houve preferência por MPB e Rock (Tabela 18) e esteve ausente, na discriminação por estilo musical na tabela abaixo, as menções ao Funk e ao pagode.

120 Ese valor central de la socialización en el espacio público es discutido por varios de los músicos y productores entrevistados. En Madrid está surgiendo una escena de conciertos domésticos (como Live in the living o Conciertos íntimos), que se celebran en casas particulares o en espacios habitualmente ajenos a la música, enfatizando la posibilidad de escuchar la música sin interferências. (Id. Ibid., tradução própria)

No documento Arte e conflito social (páginas 68-89)

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