• Nenhum resultado encontrado

Arte e conflito social

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Arte e conflito social"

Copied!
128
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

CYNTIA MALAGUTI MOYA

ARTE E CONFLITO SOCIAL

CAMPINAS

2016

(2)

CYNTIA MALAGUTI MOYA

ARTE E CONFLITO SOCIAL

Dissertação de Mestrado

apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientador: Liliana Rolfsen Petrilli Segnini

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO CYNTIA MALAGUTI MOYA E ORIENTADA PELA PROFa. DRa. LILIANA ROFSEN PETRILLI SEGNINI.

CAMPINAS 2016

(3)
(4)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ARTE E CONFLITO SOCIAL

Autor: Cyntia Malaguti Moya

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Liliana Rolfsen Petrilli Segnini Prof. Dr. Alexandro Henrique Paixão Prof. Dr. Ruy Sardinha Lopes

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno. 2016

(5)

Resumo

Esta pesquisa analisa a relação entre arte, enquanto um dos aspectos constitutivos da cultura, e a minimização de conflitos sociais, considerando um diálogo entre autores e obras selecionados: Cultura e Sociedade, do intelectual inglês Raymond Willians (2011), O Processo Civilizador, do sociólogo alemão Norbert Elias (2011, v.1), A Conveniência da Cultura, do especialista norte-americano em cultura e globalização George Yúdice (2006) e Privatização da cultura, da pesquisadora taiwanesa Chin-Tao Wu (2006). Para tanto privilegiou-se a música, enquanto expressão artística, e como se legitima socialmente no presente diante da lógica utilitária que avança nessa esfera. Essa perspectiva foi analisada na sociedade brasileira por meio da Virada Cultural de São Paulo, organizada e financiada pelo poder público municipal desde 2005 e que se concentra na região central da cidade.

O evento, como fenômeno artístico e sociológico, reitera as dimensões teóricas dos autores analisados, que colaboram para a compreensão da arte não apenas como fruição ou mercadoria, mas como instrumento para minimização de conflitos sociais. Ao conteúdo pacificador de cultura, demonstrado pela obra de longo prazo de Elias, e o seu uso pela minoria cultura no século XIX, conforme estudado por Williams, é associado, no presente, o interesse do capital privado na arte, como pesquisado por Wu, e o papel singular dessa espera na coesão social quista pelo mercado diante da redução do Estado do bem-estar social, de acordo com o livro de Yúdice.

O uso da cultura para pacificar está presente nos discursos institucionais que legitimam a Virada Cultural em São Paulo. Após episódios de violência, ressaltados pela mídia, este objetivo teve que ser articulado com a inclusão de uma maior diversidade de expressões artísticas. Isto é manifesto na busca de um modelo de organização que assegure a expressão controlada de conflitos por meio da arte em evento que agrega milhões de pessoas em mesmo tempo e espaço em cidade desigual.

Para analisar como ocorre a distribuição espacial dos cachês e das programações artísticas, especialmente as de música, majoritárias no evento, privilegiou-se a edição de 2015, em que o projeto de descentralização da Virada Cultural para as periferias foi intensificado com objetivo principal de evitar a violência. A planilha institucional Contratação Artística 2015, em anexo, foi replicada nesta pesquisa no banco de dados MySQL, que permitiu o cruzamento complexo dos dados, para gerar gráficos, tabelas e quadros. Por meio deles observamos como a arte é usada na tentativa de gerenciar conflitos sociais e de controlar a sua expressão no espaço da cidade.

Palavras-chave: Arte, teoria social, conflitos sociais, cidade, Virada Cultural de São Paulo

(6)

Abstract

This research analyses the relation between art, as one of the constitutive aspects of culture, and the minimization of social conflicts, considering a dialogue among selected authors e books: Culture and Society, by the British intellectual Raymond Williams (2011), The Civilizing Process, by the German sociologist Norbert Elias (2011, v. 1), The Expediency of Culture, by the North American expert in culture and globalization George Yúdice (2006) and Privatising Culture, by the Taiwanese researcher Chin-Tao Wu (2006). We focused on music, as an artistic expression, and how it legitimizes itself in the present before the utilitarian logic that advances in this sphere. This perspective was analyzed in Brazilian society by means of the Virada Cultural (Cultural Turn) of São Paulo, organized and financed by the municipal public power since 2005 and that is concentrated in the center of the city.

The event, as an artistic and sociological phenomenon, reiterates the theoretical dimensions of the analyzed authors, which collaborate to the understanding of art not only as fruition or merchandise, but as an instrument for the minimization of social conflicts. To the pacifying content of culture, demonstrated by Elias’s long-term work, and its use by the cultivated minority in the XIX century, as studied by Williams, it is associated, in the present, the interest of private capital in the art, as researched by Wu, and the singular role of this sphere in the social cohesion well seen by the market before the reduction of the Welfare State, according to Yúdice’s book.

The use of culture to pacify is present in the institutional speeches that legitimize the Cultural Turn of São Paulo. After violence episodes, highlighted by the media, this objective had to be articulated with the inclusion of a greater diversity of artistic expressions. This is manifested by the search of an organization model able to ensure a controlled expression of conflicts trough art in an event that aggregates millions of people at the same time in the same place in an unequal city.

To analyse the spatial distribution of the money paid to artists and the event’s programming, specially music, the majority in the event, we focused on the 2015 edition, in which the decentralization project of the Cultural Turn of São Paulo to the peripheries was strengthened with the main purpose of avoiding violence. The institutional spreadsheet Contratação Artística 2015 (Artistic Hiring), in the attached, was replicated in this research in the MySQL database, which allowed to conduct a complex data crossover, to generate the charts and tables. By means of these figures we have observed that art is being used in the attempt to manage social conflicts and to control their expressions in the city space.

(7)

Résumé

Cette recherche analyse les relations entre l´art, en tant qu´un des aspects constitutifs de la culture, et la minimisation de conflits sociaux en prenant en compte un dialogue entre des auteurs et des oeuvres sélectionnés: Culture and Society, de l´intellectuel anglais Raymond Williams (2011), La Civilisation des mœurs (The Civilizing process), du sociologue allemand Norbert Elias (2011, v.1), The Expediency of Culture, du spécialiste nord-américain en culture et globalisation George Yúdice (2006) et Privatising Culture, de la chercheuse taiwanaise Chin-Tao Wu (2006). Pour ce faire, nous avons privilégié la musique, en tant qu´expression artistique, pour analyser comment elle se légitime socialement de nos jours face à la logique utilitariste qui se diffuse dans cette sphère. Cette perspective a été analysée dans la société brésilienne à travers la “Virada Cultural de São Paulo”, évènement public festif organisé et financé par le pouvoir public municipal depuis 2005 et qui se concentre dans la région centrale de la ville.

L´évènement public, comme phénomène artistique et sociologique, réitère les dimensions théoriques des auteurs analysés, qui collaborent à la compréhension de l´art non seulement comme consommation ou marchandise, mais aussi comme instrument pour la minimisation de conflits sociaux. Au contenu pacificateur de culture, démontré par l´oeuvre au long cours de Elias, et son usage par la minorité cultivéeau XIXième siècle, selon l´étude de Williams, se trouvent associés, de nos jours, l’intérêt du capital privé pour les arts, selon la recherche de Wu, et le rôle singulier de cette demande de cohésion sociale visée par le marché face au recul de l´État-Providence, selon le livre de Yúdice.

L´usage de la culture pour pacifier est présent dans les discours institutionnels qui légitiment la “Virada Cultural de São Paulo”. Après des épisodes de violence, mis en exergue par les médias, cet objectif a dû être articulé avec l’inclusion d’une plus grande diversité d’expressions artistiques. Cela est manifeste dans la recherche d´un modèle d´organisation qui assure l´expression contrôlée de conflits par le truchement de l´art dans l’évènement public festif qui réunit des millionsde personnes en un même lieu et temps dans une ville inégalitaire.

Pour analyser comment se fait la distribution spatiale des cachets et des programmations artistiques, tout particulièrement pour les musiques, majoritaires dans cet évènement festif, nous examinerons celui de 2015, pour lequel le projet de décentralisation de la “Virada Cultural” pour les banlieues a été intensifié avec comme objectif principal d´éviter la violence. Le programme institutionnel Contrats Artistiques 2015, en annexe, a été reproduit dans cette recherche dans la banque de données MySQL, ce qui a permis le croisement complexe des données, pour élaborer des graphiques et des tableaux. Au moyen de ceux-ci, nous pouvons observer comment l´art est utilisé dans la tentative de gérer des conflits sociaux et de contrôler leur expression dans l´espace de la ville.

Mots-clés: Art, théorie sociale, conflits sociaux , ville, Virada Cultural de São Paulo.

(8)

Lista de Figuras

Gráficos

GRÁFICO1-QUANTIDADE DE PROGRAMAÇÕES DE MÚSICA POR REGIÃO – CENTRO E PERIFERIA –VIRADA

CULTURAL DE SÃO PAULO,2015. ... 37 GRÁFICO2-SOMATÓRIA DE CACHÊS DE PROGRAMAÇÕES DE MÚSICA REGIÃO – CENTRO/PERIFERIA –VIRADA

CULTURAL DE SÃO PAULO,2015 ... 38 GRÁFICO3-QUANTIDADE DE PROGRAMAÇÕES MUSICAIS POR LOCAIS ESPECÍFICOS MAIS RECORRENTES ... 39 GRÁFICO4-AUMENTO DA DESIGUALDADE DE RIQUEZA NO MUNDO ENTRE 2000 E 2015 ... 49

GRÁFICO5-QUANTIDADE DE PROGRAMAÇÃO ARTÍSTICA CONTRATADA POR ÁREA DE ATUAÇÃO, EM

PORCENTAGEM -VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO,2015 ... 56 GRÁFICO6-QUANTIDADE DE CONTRATOS DE MÚSICA POR FAIXAS DE VALOR DO CACHÊ ... 63

Quadros

QUADRO1-CURADORIA COLEGIADA COMPLETA.VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO,2015. ... 33 QUADRO2- LOCAIS ESPECÍFICOS DE PROGRAMAÇÕES MUSICAIS NO CENTRO DE SÃO PAULO –VIRADA

CULTURAL,2015 ... 40 QUADRO3-LOCAIS DE PROGRAMAÇÕES FINANCIADAS PELA SECRETARIA MUNICIPAL DE PROMOÇÃO DA

IGUALDADE RACIAL (SMPIR)–VIRADA CULTURAL 2015 ... 60

Imagens

IMAGEM1-VIRADA CULTURAL SÃO PAULO 2005.APRESENTAÇÃO DE ADRIANA CALCANHOTO 20 DE

NOVEMBRO 2005, ÀS 13H, NO ENCERRAMENTO DO EVENTO.PARQUE DA INDEPENDÊNCIA,IPIRANGA ... 80 IMAGEM2-PÚBLICO NA VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO (2005) ... 81 IMAGEM3-CORDEL DO FOGO ENCANTADO EM APRESENTAÇÃO NA VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO.PRAÇA

DA SÉ,20 DE MAIO 2006, COM INÍCIO ÀS 21H ... 82 IMAGEM4-PÚBLICO EM APRESENTAÇÃO DA BANDA CORDEL DO FOGO ENCANTADO,VIRADA CULTURAL DE

SÃO PAULO,20 DE MAIO 2006.PRAÇA DA SÉ ... 82

IMAGEM5-VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO 2013.PÚBLICO NA APRESENTAÇÃO DA BANDA DE RAP

RACIONAIS.VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO,19 MAIO 2013 ... 83 IMAGEM6-IMAGENS VIRADA CULTURAL 2015. PERFORMANCE DE ACROBATA EM GUINDASTE E PIANISTA

SUSPENSO ... 85 IMAGEM7-IMAGEM VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO 2015.APRESENTAÇÃO DE CAETANO VELOSO NO

PALCO JÚLIO PRESTES NO ENCERRAMENTO DO EVENTO ... 85 IMAGEM8-VIRADA CULTURAL 2015.APRESENTAÇÃO DA ORQUESTRA PAULISTANA DE VIOLA CAIPIRA EM

(9)

Lista de Tabelas

TABELA1-CURADORIA COLEGIADA CONTRATADA.VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO,2015 ... 34

TABELA2-PROFISSIONAIS DA MUSICA, POR POSICÃO NA OCUPACÃO NO BRASIL... 52

TABELA3-RESUMO DOS INVESTIMENTOS DA VIRADA CULTURAL 2016 ... 53

TABELA4-QUANTIDADE DE PROGRAMAÇÃO ARTÍSTICA CONTRATADA POR ÁREA DE ATUAÇÃO, EM NÚMEROS ABSOLUTOS –VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO,2015 ... 55

TABELA5-SOMATÓRIA DOS VALORES DE CACHÊS ARTÍSTICOS DAS PROGRAMAÇÕES CONTRATADAS, POR ÁREA DE ATUAÇÃO (EM VALORES ABSOLUTOS): ... 56

TABELA6-SOMATÓRIA DOS VALORES DE CACHÊS ARTÍSTICOS DAS PROGRAMAÇÕES CONTRATADAS, POR ÁREA DE ATUAÇÃO (EM PORCENTAGEM): ... 57

TABELA7-ORIGEM DOS RECURSOS DE CACHÊS, SOMATÓRIA DOS VALORES TOTAIS, QUANTIDADE DE EVENTOS E VALOR MÉDIO POR ORGANISMO FINANCIADOR (CONSIDERANDO TODAS AS ÁREAS DE ATUAÇÃO) ... 58

TABELA8-ORIGEM DOS RECURSOS PAGOS EM CACHÊS, VALORES, QUANTIDADE DE EVENTOS E VALOR MÉDIO (CONSIDERANDO APENAS MÚSICA) ... 58

TABELA9-PROGRAMAÇÃO DO PALCO JÚLIO PRESTES, CACHÊS E ORIGEM DOS RECURSOS -VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO 2015 ... 61

TABELA10-VALORES DE CACHÊS MAIS FREQUENTES PAGOS EM MÚSICA E QUANTIDADE ... 62

TABELA11-AS 16 PROGRAMAÇÕES DE MÚSICA COM CACHÊS MAIS ELEVADOS E RESPECTIVOS LOCAIS DE APRESENTAÇÃO E ESTILOS MUSICAIS. ... 64

TABELA12-GRAU DE INSTRUÇÃO VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO 2015... 74

TABELA13-ETNIAS ... 74

TABELA14-OCUPAÇÃO OU ATIVIDADE PRINCIPAL ... 75

TABELA15-RENDA FAMILIAR MENSAL ... 75

TABELA16-O QUE MOTIVOU SUA VINDA NESTA EDIÇÃO? ... 76

TABELA17-DA PROGRAMAÇÃO OFERECIDA NA VIRADA CULTURAL 2015, QUAL MAIS TE AGRADOU? ... 78

TABELA18-QUE TIPO DE MÚSICA VOCÊ GOSTARIA DE OUVIR NA VIRADA CULTURAL? ... 78

TABELA19-PROGRAMAÇÕES DE MÚSICA CONTRATADAS COM CACHÊS INFERIORES A 4 MIL REAIS –VIRADA CULTURAL DE SÃO PAULO 2015. ... 93

(10)

Lista de Abreviaturas e Siglas

BDMs: Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, 23 BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento, 14

CEUs: Centros Educacionais Unificados, 19, 25, 30, 35, 38, 41, 53 DEM: Partido Democratas, 19

MPB: Música Popular Brasileira, 61, 64, 77, 78, 93 NEA: National Endowment for the Arts, 46, 91 NEH: National Endowment for the Humanities, 46 ONGs: Organizações não Governamentais, 22

Oxfam: Oxford Committee for Famine Relief, 48, 49, 97 PDE: Plano Diretor Estratégico, 31

PM: Polícia Militar, 20, 28, 32

PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira, 19, 92 PT: Partido dos Trabalhadores, 28, 29, 90

SECOM: Secretaria Executiva de Comunicação, 18, 28, 30, 34, 35, 38, 40, 98, 99 SESC: Serviço Social do Comércio, 19, 30, 33, 98

SMC: Secretaria Municipal de Cultura, 17, 18, 19, 20, 23, 29, 31, 33, 34, 40, 41, 53, 57, 58, 61, 62, 73, 93, 99, 100

SME: Secretaria Municipal de Educação, 57, 58

SMPIR: Secretaria Municipal de Promoção Igualdade Racial, 35, 57, 58, 60, 61, 63, 90, 91, 92 SP Turis: São Paulo Turismo, 18, 41, 53, 54, 73, 74, 75, 76, 77, 78

(11)

Sumário

1 INTRODUÇÃO ... 12

1.1 OBJETIVOS ... 15

1.2 REFERENCIAL TEÓRICO E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ... 15

2 ARTE, POLÍTICA E CIDADE ... 19

3 ARTE E FINANCIAMENTO PÚBLICO ... 43

3.1 VIRADA CULTURAL, TRABALHO ARTÍSTICO E FINANCIAMENTO PÚBLICO ... 53

4 ARTISTA, MERCADO E PÚBLICO ... 68

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 89

6 REFERÊNCIAS ... 95

(12)

1 Introdução

Com referência ao desenvolvimento, a cultura é cada vez mais reconhecida como uma dimensão transversal dos três pilares – econômico, social e ambiental – presentes em todas as formas de desenvolvimento verdadeiramente sustentado. Relativamente à paz e à prevenção de conflitos, o reconhecimento da diversidade cultural enfatiza a “unidade na diversidade,” ou seja, na humanidade comum, inerente às nossas diferenças. (Relatório Mundial da UNESCO, 2009, p.31)

As recentes transformações políticas, econômicas e sociais observadas inclusive na esfera cultural e, mais especificamente, na arte são objeto de análise nesta dissertação. Para tanto privilegiamos a música enquanto expressão artística e os mecanismos pelos quais ela se legitima socialmente diante das demandas utilitárias com a qual se defronta no presente.

A materialidade que organiza as relações nessa esfera passa por uma ressignificação com a reorganização do capitalismo, alterando seu papel e significado na sociedade. Nesta pesquisa sustentamos a hipótese de que a arte, considerada uma das dimensões de cultura, adquire no capitalismo avançado uma importância singular na construção da paz social e na minimização de conflitos, numa sociedade desigual. Tal perspectiva é discutida teoricamente a partir dos autores e obras selecionados, que são empregados para analisar a música na sociedade brasileira por meio da Virada Cultural de São Paulo.

A funcionalidade da cultura para o exercício da dominação na sociedade tem origem em um longo e complexo processo histórico que culminou na emergência do sistema capitalista na Europa. O processo de pacificação das sociedades ocidentais arrastou-se por vários séculos. O sociólogo alemão Norbert Elias define como marco inicial desse processo o momento de transição da sociedade de cavalaria, guerreira, mais precisamente o século XIII até a sociedade burguesa nos séculos XVIII e XIX. Ao longo do tempo, a classe alta, conforme a nomeia o autor, adquire a noção de civilização, concomitante à centralização política que vai transformando as estruturas da sociedade medieval em direção ao Estado centralizado. O maior controle e racionalização das emoções e dos impulsos, bem como a elevação do patamar de vergonha e sensibilidade traduz “a compulsão por policiar o próprio corpo” (ELIAS, 2011, p.89)

Inferimos por meio da leitura do autor que o capitalismo nasce no contexto de sociedades pacificadas; sua manutenção é funcional ao sistema, devendo ser reproduzida culturalmente por não ser natural, mas sim aprendido socialmente. Na reprodução das normas de comportamento consideradas legítimas, converte-se a violência física em simbólica, que reforça a dominação de classe. O processo civilizador possui estreitas relações com a

(13)

organização do poder político e econômico e as relações hierárquicas, assim como com o desenvolvimento do capitalismo. Os comportamentos civilizados, considerados legítimos, se difundiram pelo corpo social a partir da classe alta.1

Ser civilizado, portanto, carrega em sua origem uma conotação de julgamento de valor, de distinção social e de violência simbólica produzida socialmente, sob o pretexto do refinamento. Ou, conforme analisou o autor, nada escapa às configurações sociais, elas possuem um sentido político. Do uso do talher, até as expressões faciais e posturas corporais, tudo que fazemos naturalmente e que é considerado bom comportamento, é fruto da internalização do poder hegemônico, na tentativa de controlar o corpo e as disposições humanas.

A hierarquia de poder simbólico que se coaduna com poder econômico e político reafirma o status quo, necessário para manutenção da paz social no interior das hierarquias de classes e da lógica de valores hegemônicos. O processo de expansão do capitalismo caminha concomitante com a internalização da cultura ocidental e o poder hierárquico correlato e naturalizado.

A arte, tal como se expressa no sistema capitalista, tem sua origem na modernidade ocidental, enquanto uma das dimensões de cultura. As transformações que atingiram a Europa com as Revoluções Francesa e Industrial alteraram a bases de organização da sociedade instituindo o mercado como necessário intermediário das relações sociais. No período ocorreram transformações estruturais em todas as esferas da sociedade que também redefiniu o conteúdo da arte e seu lugar na sociedade inglesa. (WILLIAMS, 2011)

A arte foi sendo convertida em comércio e o artista em trabalhador especializado na indústria. Ao viverem na pele as mudanças sociais, os artistas criticaram o mercado, ao mesmo tempo em que eram absorvidos por ele. A concepção da arte enquanto “realidade superior”, lócus da experiência imaginativa, ameaçada pela técnica e pela sujeição de todos ao sistema de produção comum, e a rejeição do público, foram reações de defesa dos artistas ao domínio do mercado.2

As artes estabelecem relações de interdependência com o capitalismo e estão sujeitas à lógica instrumental, que se intensifica na contemporaneidade. No contexto das recentes transformações econômicas, políticas e sociais nas últimas décadas do século XX, ampliou-se o predomínio do capital privado na sociedade, incluso nas artes, conforme analisa a pesquisadora taiwanesa Chin-Tao Wu (2006). A autora conclui que o processo foi promovido pelo Estado, legitimando ideologias liberalizantes por meio do poder simbólico contido na arte

1 Id. Ibid., p. 178.

(14)

– “realidade superior”3 ou, conforme nomeia a autora: alta cultura. Tais ideologias se difundiram especialmente nos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos -1981 a 1989 - e Margareth Thatcher na Inglaterra – 1979 a 1990.

Trazendo para a contemporaneidade, o pesquisador norte-americano de cultura contemporânea George Yúdice (2006, p. 32) complementa, citando representante do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID): “Nesse cenário, alerta Santana, a ‘cultura pela cultura’, seja lá o que isso represente, nunca receberá fomentos a não ser que possa oferecer de forma indireta um retorno. ” O autor analisa que, na medida em que a globalização avança, também as artes estão sendo generalizadas enquanto recurso como outro qualquer, isto é, como meio para atingir um fim.4 especialmente minimizando efeitos do livre mercado na sociedade.

Esta pesquisa analisa a relação entre arte, especialmente música, enquanto um dos aspectos constitutivos da cultura, e o seu papel instrumental na minimização de conflitos sociais em conformidade com a teoria social selecionada, a partir da qual pesquisamos esse processo no contexto brasileiro por meio da compreensão sociológica da Virada Cultural de São Paulo. Para tanto, os autores selecionados para contribuírem nesta reflexão foram o sociólogo Norbert Elias (2011), o intelectual inglês em Cambridge Raymond Williams (2011), o especialista em cultura e línguas latino-americanas George Yúdice (2006), e a pesquisadora taiwanesa em arte contemporânea Chin-Tao Wu (2006).

A Virada Cultural da cidade de São Paulo é organizada e financiada pelo poder público municipal desde 2005 e é composta por programações artísticas gratuitas, majoritariamente apresentações musicais realizadas no espaço público. Nos discursos oficiais sobre este evento, o uso da cultura/arte como recurso5 para minimização de conflitos sociais e convivência pacífica, ocupação e renovação urbana é reiterado constantemente e emerge como justificativa para sua criação e permanência do calendário cultural da cidade, articulada com distribuição das programações no espaço urbano (capítulo 1 Arte, política e cidade). No capítulo 2 Arte, financiamento e trabalho artístico, discutimos o papel do Estado no financiamento da arte no passado e no presente e sua relação com o lugar da arte e do artista na sociedade. Por meio da análise extensiva das programações artísticas da Virada Cultural de São Paulo 2015, investigamos como as dimensões teóricas se manifestaram na organização das apresentações de música do evento, em articulação com o objetivo pacificador. No capítulo 3. Artista, mercado

3 WILLIAMS, op. cit. 4 Id. Ibid., p. 25. 5 YÚDICE, op. cit.

(15)

e público, analisamos as mudanças relações entre artista e público e como se expressaram na 11ª. edição da Virada Cultural.

1.1 Objetivos

Objetivo desta dissertação é analisar a perspectiva da música na sociedade brasileira contemporânea em conformidade com as dimensões teóricas dos autores e obras selecionadas (WILLIAMS, 2011; ELIAS; 2011; WU, 2006, dialogando com uma outra dimensão expressa por Yúdice (2006) a música como recurso. O objetivo específico desta dissertação é analisar a música ao vivo, enquanto manifestação artística, na Virada Cultural, edição de 2015, na cidade de São Paulo, como fenômeno artístico e sociológico.

1.2 Referencial teórico e procedimentos de pesquisa

Nesta pesquisa, recorremos às noções de cultura e arte tal como elaboradas por Williams. (2011). O autor nos desafia a enxergar a realidade como processo em constante mutação. Entende que as palavras adquirem novos significados de acordo com o tempo e o espaço, guardando em suas histórias, os caminhos e dilemas suscitados pelas mudanças sociais, perspectiva que se adequa ao contexto de reorganização do capitalismo na contemporaneidade com o qual as mudanças na arte observadas no presente se relacionam.

Nas últimas décadas do século XVIII e na primeira metade do século XIX, um número de palavras que hoje são de importância capital surgiram pela primeira vez no inglês comum, ou, nos casos em que já tinham sido usadas normalmente no idioma, adquiriram significados novos e importantes. Há com efeito um padrão geral de mudança nessas palavras e isso pode ser utilizado como um tipo especial de mapa pelo qual é possível examinar uma vez mais aquelas mudanças mais amplas na vida e no pensamento às quais evidentemente se referem as mudanças no idioma. (WILLIAMS, 2011, p.15)

Cultura para o autor enseja uma gama infinita de sentidos, ou todo o modo de vida. Este sentido amplo da noção de cultura é entendido por Williams como um equivalente da palavra sociedade.6 Esta noção ampliou-se ao longo do século XIX, abarcando as reações às

(16)

mudanças sociais e deve ser apreendida em movimento e em conexão com as experiências sentidas.7

Arte é um dos sentidos de cultura e teve seu conteúdo ressignificado na emergência da sociedade industrial. Ao final desse processo, as artes significam atividades criativas específicas, dentre elas a música. Artista surge como individualidade criativa, associado à noção de gênio, como um ser humano dotado de faculdades especiais, diferente dos meros mortais:

As artes – literatura, música, pintura, escultura, teatro – foram agrupadas, nessa nova fase, considerando-se que tinham algo essencialmente em comum que as distinguia de outras habilidades humanas. (...) Essas mudanças, que pertencem ao período das outras mudanças discutidas, formam um registro de uma mudança extraordinária nas ideias de natureza e propósito da arte e de suas relações com outras atividades humanas e com a sociedade como um todo.8

A arte expressou e reagiu a mudanças sociais que, ao longo do século XIX, resultaram em alterações na concepção de artista e de arte na sociedade. Na citação acima, o autor relaciona a dimensão artística com as mudanças que estavam se processando nas demais esferas da sociedade e em sua totalidade, isto é, na cultura enquanto todo um modo de vida. Cultura é termo polissêmico que pode ser intercambiável com arte. Essas duas palavras foram sinônimas em meados no século XIX, representando o ideal de perfeição, conforme definido pela burguesia, que a tornou parâmetro normativo e sinônimo de melhoria na sociedade.9

O significado de arte está articulado com os movimentos da sociedade, com quem a nomeia, isto é, quais classes sociais, e em nome de que é utilizada. No presente, a racionalidade econômica e política intensifica a conversão dessa esfera em recurso e a ameaça ao conteúdo crítico da arte. Afirma Yúdice (2006, p. 25):

Em vez de focalizar o conteúdo da cultura – ou seja, o modelo da melhoria (segundo Schiller ou Arnold) ou da distinção (segundo Bourdieu), tradicionalmente aceitos, ou sua antropologização mais recente, como todo um meio de vida (Williams), segundo a qual reconhece-se que a cultura de qualquer um tem valor – talvez seja melhor fazer uma abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura da globalização acelerada, como um

recurso.

7 Ibid., p. 19. 8 Ibid., p. 18. 9 Ibid., p. 135.

(17)

A noção de recurso, na perspectiva do autor, absorve “as noções convencionais de cultura”: 1.enquanto perfeição, 2. enquanto distinção e 3. como todo um modo de vida, como compreende Williams. No decorrer desta pesquisa apropriamo-nos da noção recurso empregada por Yúdice, 2006, pois verificamos sua relevância especialmente para analisar os discursos oficiais e midiáticos a respeito da Virada Cultural de São Paulo. Por meio desta categoria, o autor compreende que a conveniência da cultura é característica evidente na contemporaneidade. (p. 47) Ela consiste na instrumentalização política e econômica da arte e da cultura, enquanto meio para atingir um fim, por exemplo a redução de conflitos sociais por meio de renovação urbana e da redução de problemas sociais, o que é explícito na análise dos objetivos e valores da Virada Cultural de São Paulo.

As discussões teóricas nesta pesquisa estão fundamentadas em mediações entre as obras e autores selecionados (Norbert Elias, 2011, v.1; Raymond Williams, 2011; Chin-Tao Wu, 2006, George Yúdice, 2006) empregados para analisar o objeto. Privilegiamos a 11ª. edição da Virada Cultural de São Paulo, realizada nos dias 20 e 21 junho de 2015, pois é quando se coloca em marcha projeto, aprofundado em 2016, para descentralizar o evento por meio da instalação de palcos em espaços abertos, que são uma das singularidades do evento, em regiões periféricas da cidade. As questões que guiaram a análise do objeto foram: 1. Como se manifestam os discursos da arte enquanto recurso para minimização de conflitos sociais na Virada Cultural de São Paulo? 2. Como foram organizadas as programações artísticas em 2015 no território da cidade e qual espaço, físico e simbólico, ocupado pela música na edição analisada do evento?

Os principais documentos analisados foram os seguintes: dados quantitativos institucionais da planilha de transparência Contratação Artística 2015, da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) de São Paulo, em anexo nesta pesquisa e disponível para consulta pública no site oficial da Virada Cultural.10 A planilha exibe as programações artísticas contratadas, as áreas de atuação, os respectivos cachês, origem dos recursos, locais, datas e horários das apresentação e número dos processos. Em complementação, foi consultado documento Propostas enviadas para a Virada Cultural 2015, também da SMC e disponível para consulta11, o qual elenca totalidade dos milhares de projetos submetidos à curadoria do evento naquele ano.

10Disponível em:

<http://www.viradacultural.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/04/contratacao-artistica-2015.pdf>. Acesso em 24 set. 2016.

11 Disponível em: < http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/propostasvirada_1432665555.pdf>. Acesso em: 25 de jul. 2016.

(18)

Ambas as planilhas foram replicadas no banco de dados MySQL, que possibilitou cruzamento informações de forma complexa para gerar as gráficos e tabelas apresentados nesta dissertação. O documento Contratação Artística, 2015 foi trabalhado exaustivamente por meio de gráficos, tabelas e quadros elaborados por mim a partir de cruzamento de tais dados institucionais. A consolidação dos dados permitiu avaliar, com relação à edição pesquisada, as dimensões do evento, o espaço ocupado pela música em relação às outras artes, a diferentes estilos musicais e na distribuição dos recursos e artes no espaço público. Tais informações foram analisadas do decorrer desta pesquisa, especialmente no segundo capítulo: Arte e Financiamento Público.

Outro documento institucional analisado foi pesquisa realizada pela São Paulo Turismo (SP Turis), por meio do seu Observatório do Turismo, sobre perfil de público da Virada Cultural 2015, de onde retiramos algumas tabelas referentes à composição de gênero, raça, escolarização, renda, ocupação e preferências artísticas feitas com a amostragem entrevistada. Pesquisas desta instituição sobre edições anteriores (2010 a 2013) foram empregadas pontualmente como comparação quando necessário.12

Os dados qualitativos empregados como fontes consistiram em sua maioria de discursos oficiais extraídos de sites institucionais da prefeitura de São Paulo, da SMC, da Secretaria Executiva de Comunicação (SECOM) e da Virada Cultural, além do Relatório de Gestão 2005-2008, referente às ações da SMC no período em que o evento foi concebido e implementado na cidade. Também foi empregada entrevista com o produtor cultural José Mauro Gnaspini concedida para a Rádio Cultura FM em 2014, considerada relevante por ter o entrevistado atuado como diretor da Virada Cultural entre 2005 e 2012 e apresentar percepções sobre as edições mais antigas e as recentes. Trechos de artigos de jornais foram citados para serem analisadas as reações da mídia a respeito de episódios de violência que ocorreram em algumas edições mais especificamente.

(19)

2 Arte, política e cidade

A Virada Cultural da cidade de São Paulo é realizada anualmente durante dois dias na capital do estado desde 2005.13 Tem início no final da tarde do sábado, adentrando a madrugada, para finalizar no mesmo horário domingo, período em que, durante 24h contínuas, são realizadas programações artísticas em grandes e pequenos palcos ao ar livre, nas ruas, em estruturas montadas para esse fim, em equipamentos públicos – bibliotecas, Centros Culturais, Centros Educacionais Unificados (CEUs), no Theatro Municipal de São Paulo e em equipamentos do Serviço Social do Comércio (SESC).

Com exceção da primeira edição – que ocorreu em novembro de 2005, das 14h do sábado às 14h do domingo – as demais tiveram os horários ajustados para as 18h e foram realizadas no outono, especialmente no mês de maio – em 2006, 2007, 2009, 2010, 2012, 2013, 2014 e 2016 -, duas edições abril – em 2008 e 2011 - e uma em junho – em 2015. O motivo da consolidação das datas nesse período do ano foi, de acordo com a SMC, o menor volume de chuvas, o que comprometeria as programações ao ar livre. (Virada Cultural, 2016a)14

A primeira Virada Cultural da cidade de São Paulo foi organizada no primeiro ano do mandato do então prefeito José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de 2005 a 2006, continuada por Gilberto Kassab, do Partido Democratas (DEM), e da gestão do secretário municipal de cultura, Carlos Augusto Calil até 2012. Em apresentação do evento em fontes oficiais é afirmado que a inspiração para este projeto foi a “Nuit Blanche” ( Noite em claro), que teve sua primeira edição em 2002 em Paris com proposta de “inversão de expectativas”: proporcionar atividades culturais inusitadas especialmente o funcionamento dos museus durante a noite. A intenção seria transportar o aspecto “inusitado” do evento francês para o brasileiro, por meio de programações artísticas gratuitas no centro de São Paulo com acesso garantido pelo funcionamento de metrôs e trens durante madrugada.

O seu espírito de festa múltipla e inclusiva, que promove o convívio entre classes, gerações e gêneros, ficou bem assinalado. Esta celebração mobiliza a rede dos CEUs e conta com parceiros estratégicos: tanto o SESC quanto o governo do Estado a ela aderem com seus equipamentos culturais descentralizados. Mas a Virada Cultural ocorre principalmente no centro da cidade; faz parte do esforço de reocupação dessa área crítica, ainda deprimida após quarenta anos de abandono. (...)

13 Em 2016 pela primeira vez houve uma prévia do evento – nomeada Happy Hour – na sexta-feira entre as 17h às 23h, integrando o projeto de descentralização espacial e temporal do evento que será analisado neste capítulo. 14 Disponível em: <http://www.viradacultural.prefeitura.sp.gov.br/12-anos/>. Acesso em 06 set. 2016.

(20)

Em 2007, as características de evento de rua foram consagradas, mas a fatalidade do confronto entre a PM (Polícia Militar) e os jovens do hip-hop na praça da Sé turvou o resultado de cordialidade que predominou do outro lado do Anhangabaú. Até então, nas duas primeiras edições, a Virada não tinha apresentado nenhuma ocorrência policial de porte. Perdida a inocência, e com ela a vã esperança de que a celebração das culturas suspenderia as diferenças e os conflitos latentes, tornou-se inevitável considerar as peculiaridades dos grupos, de suas manifestações e gostos, de forma mais cautelosa, sob pena de inviabilizar o conjunto. Com esse espírito e o sentimento vivo de que a festa é marcadamente paulistana, a ampla programação de 2008, buscou acentuar o diálogo entre os artistas locais e os nacionais, entre a produção histórica e a contemporânea, abrindo-se discretamente à participação dos estrangeiros. A área passou a abranger o centro expandido, e testando os próprios limites, dobrou o volume do investimento e sua capacidade de realização. O que se viu nesse ano teve lances inéditos: famílias inteiras passeando tranqüilamente pelo centro na madrugada de sábado, grupos artísticos marginalizados, como o das “Estátuas Vivas”, montaram um museu vivo ao longo do Viaduto do Chá, para deleite do seu público. (...)

A esse amplo movimento se pode dar o nome de reurbanização humana do centro. (...)A experiência da Virada Cultural, que se converte na Festa da Cidade, constitui um exemplo eloquente de que há um anseio por cultura em São Paulo, e o desejo de tomar posse do seu centro, o território comum a todos. Associar recuperação concreta à simbólica, reurbanização física à humana, criar espaços de convívio, trazer de volta o governo do Estado, estimular atividades de participação e de apropriação pública parece ser o caminho que se descortina. Basta observar os movimentos de uma população que, apesar de tudo, ama a sua cidade. (Relatório de Gestão 2005-2008. SMC, 2009: p. 7-8, grifo nosso)15

Os trechos acima são referentes à gestão 2005-2008 da SMC e significativos dos objetivos e valores iniciais da Virada Cultural de São Paulo. De acordo com tal discurso, a “Festa da Cidade” consistiu em proposta para “tomar posse” do centro, espaço entendido como apropriado pela violência, pobreza, criminalidade e degradação urbana. Para remediar problemas sociais, a arte foi invocada nesse discurso para fortalecer o poder público. Arte, conforme definida pela municipalidade, foi usada para promover inclusão social, recuperação e embelezamento do centro da cidade.

O pesquisador e teórico cultural norte-americano George Yúdice (2006) na obra A Conveniência da Cultura, analisa o significado da cultura no presente, e seus usos nas sociedades contemporâneas. Ele conclui que a cultura na globalização “não é mais

15 Disponível em: < http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/relatorio_2009_baixa_1257345776.pdf>. Acesso em 16 abr. 2016.

(21)

experimentada, valorizada ou compreendida como transcendente” (YÚDICE, 2006, p. 28) A lógica utilitária que se intensifica no presente vincula o aporte de dinheiro a um retorno do investimento; o setor artístico reagiu a esta exigência do financiamento privado com o argumento de que a arte seria necessária para reduzir conflitos sociais, conforme o trecho abaixo:

Em recente encontro internacional de especialistas em política cultural, uma funcionária da UNESCO lamentou o fato de que a cultura é invocada para resolver problemas que anteriormente eram da competência das áreas econômica e política. No entanto, ela prosseguia, o único meio de convencer os líderes governamentais e empresariais de que vale a pena apoiar a atividade cultural é o argumento que ela reduz os conflitos sociais e promove o desenvolvimento econômico.16 O discurso referente à cultura no interior das organizações preocupa-se em torna-la atrativa ao investimento, vinculando-a a uma suposta capacidade de reduzir conflitos e, assim, contribuir para a pacificação da sociedade, reiterando a análise elaborada por Elias (2011) no início desta pesquisa. O conteúdo pacificador da cultura e da arte, especialmente, presente na fala da UNESCO, acima e, analisado por outros autores (Yúdice, 2006; Elias, 2011; Williams, 2011) é generalizado e torna-se corrente na contemporaneidade nos discursos das organizações.

O argumento/denúncia foi desenvolvido no interior do setor artístico e o vincula à capacidade de “melhorar a educação, abrandar a rixa racial, ajudar a reverter a deterioração urbana através do turismo cultural, criar empregos, diminuir a criminalidade e talvez tirar algum lucro. Essa reorientação das artes está sendo realizada por seus administradores”17

Há especialmente uma intensificação da utilidade da arte para melhorar as condições de vida, enquanto remédio para os problemas sociais, como racismo e a violência urbana, e para democratizar o espaço público, argumentos também presentes nos trechos sobre a Virada Cultural expostos anteriormente. No presente, o discurso que prioriza a cultura enquanto recurso é generalizante, conforme a afirmação abaixo

hoje em dia é quase impossível encontrar declarações públicas que não arregimentem a instrumentalização da arte e da cultura, ora para melhorar as condições sociais, como na criação de tolerância multicultural e participação cívica através de defesas como a da UNESCO pela cidadania cultural e por direitos culturais, ora por estimular o crescimento econômico através de projetos de desenvolvimento cultural e urbano e a concomitante proliferação de

16 Ibid., p. 13

(22)

museus para o turismo cultural, culminados pelo crescente número de franquias Guggenheim. (YÚDICE, 2006, p. 27)

De acordo com a citação acima, a instrumentalização da arte e da cultura é praticamente totalizante no tocante às declarações públicas sobre o tema. O discurso está presente nos movimentos sociais e ONGs, organismos internacionais, como a Unesco e os BID, nas corporações, governos e mídia, reiterando a necessidade da arte para melhorar a sociedade. Recorre-se a ela para impulsionar o desenvolvimento econômico, gerar de empregos e legitimar demandas por cidadania e representação no espaço público. A cultura se generalizou como meio para atingir um fim – recurso – sendo cada vez mais racionalizadas nessa lógica.18 Tal discurso, presente na criação da Virada Cultural de São Paulo, tem sido mantido ao longo dos anos. O trecho a seguir é de 2016 e foi transcrito da página oficial do evento:

Criada para refletir o espírito tipicamente paulistano de uma cidade que “nunca para”, a Virada Cultural é um evento promovido pela Prefeitura de São Paulo, com duração de 24 horas, que oferece atrações culturais para pessoas de todas as faixas etárias, classes sociais, gostos e tribos que ocupam, ao mesmo tempo, a mesma região da cidade (...) a Virada Cultural busca, antes de tudo, promover a convivência em espaço público, convidando a população a se apropriar do Centro da cidade por meio da arte, da música, da dança, das manifestações populares. (Virada Cultural, 2016b)19

O uso político da arte e da cultura no evento para ocupar o espaço urbano e promover a convivência pacífica entre as classes está em conformidade com a instrumentalização observada nessa esfera. Os financiamentos em cultura são entendidos como investimentos estratégicos sobretudo quando focam a pobreza e a nomeia “grupo de risco”. Analisando os argumentos de James D. Wolfenson, presidente do Banco Mundial em 1999, o autor afirma que a cultura “os capacitam a suportar ‘o trauma e a perda’, afugentar a ‘desagregação social’, ‘manter a auto estima’ e ainda fornecer recursos materiais. (YÚDICE, 2006, p. 30)

A elevação da autoestima para suportar condições traumáticas e a busca da coesão sem discutir as origens das desigualdades expressam o objetivo da instrumentalização da arte e da cultura no discurso do Banco Mundial. A avaliação quantitativa deste retorno “pacificador” é atrelada a pesquisas sobre índices de criminalidade, de educação, desemprego, dentre outros.

18 YÚDICE, 2006, loc. cit.

(23)

“É por isso que a maioria dos projetos culturais financiados por BDMs20 se atrelam a outros projetos educacionais ou de renovação urbana”21

O Relatório de Gestão 2005 – 2008 da SMC, citado no início deste capítulo usa como argumentos para legitimar a Virada Cultural, a suspenção momentânea dos conflitos sociais. Valores como “tranquilidade”, “cordialidade”, “festividade” e o “convívio entre as classes”, são apregoados pelo poder público municipal em tal relatório. Em contraposição, no mesmo documento, destacamos a descrição de episódio em que tais objetivos e valores inicialmente propostos tiveram que ser reajustados à primeira grande experiência concreta de conflito, entre policiais e jovens de hip-hop, ocorrida em 2007.

A pacificação das sociedades ocidentais, necessária à manutenção da dominação resultou, não na supressão da violência, mas sua conversão em simbólica. O Processo Civilizador (ELIAS, 2011) consistiu em moldagem de fora para dentro dos indivíduos a partir de valores considerados superiores – os do homem na corte, mais especificamente, da corte francesa de Versailles que era central no Europa no século XVIII. O progressivo refinamento dos costumes “aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre a outra e a exigência de ‘bom comportamento’ é colocada mais enfaticamente. ” (p.86) resultando em autocontrole dos impulsos e paixões considerados bárbaros. As noções de “civilidade” e “civilização” consistiram em ideais das classes altas que com pretensão universal deslegitimaram maneiras e comportamentos tidos como “não-civilizados”, estruturando valores institucionais, especialmente os do Estado moderno: o processo ocorreu em sincronia com a centralização do poder político.

A cultura enquanto mecanismo de dominação simbólica é forjado nas elites e é pautado na pacificação e no autocontrole, que diminui progressivamente a legitimidade de formas de comportamento consideradas violentas. (ELIAS, 2011, p. 178) A análise de Norbert Elias, nomeada “processo civilizador” se desdobra em outros convincentes argumentos.

Quanto mais polido e menos espontâneo, mais dependente de uma pedagogia presente na classe alta, acessível nos círculos de proximidade. Corrobora essa análise o objeto de estudo do autor, manuais e tratados de etiqueta relativos aos comportamentos da elite, destinados a lhes catalogar e introduzir, cada vez mais, complexidade na noção de civilização. Opondo-se à barbárie da Idade Média, período em que a violência era compreendida como trivial e quotidiana, e o poder político era disperso, foi considerado grosseiro e violento o comportamento distante te tais normas. Por exemplo, o dos pobres.

20 Sigla para Bancos Multilaterais de Desenvolvimento. 21 YÚDICE, op.cit., p. 33

(24)

O conteúdo pacificador da cultura, presente nos discursos oficiais da Virada Cultural de São Paulo, que motivou sua realização ocorreu em espaço e tempo nos qual classes sociais antagônicas foram agrupadas. Diante do episódio de conflito entre jovens de hip hop e a polícia, descrito no Relatório de Gestão 2005-200822, o uso da arte para pacificação constituiu, ao menos parcialmente, “vã esperança”, ante a impossibilidade de obscurecer as origens das desigualdades. Isto engendrou a necessidade de promover espaços para a “peculiaridades dos grupos, de suas manifestações e gostos, de forma mais cautelosa, sob pena de inviabilizar o conjunto”. O documento afirma que artistas locais foram convidados pela organização para integrar o evento por expressarem tais diferenças e desigualdades.

O rearranjo das atrações na Virada Cultural abarcando o centro expandido a partir de 2008, também emergiu como reação diante da aglomeração conflituosa. As primeiras edições do evento haviam sido realizadas em espaço restrito: “Ao longo dos anos, a festa foi se difundindo cada vez mais por este perímetro, até recentemente incorporar a região da Luz, além da República e Anhangabaú. ” 23

Apesar da concentração do evento no centro, a instalação de palcos ao ar livre em locais afastados já havia ocorrido anteriormente para evitar aglomeração e proporcionar a espaço para as artistas locais. Em 2006, por exemplo, houve palco no distrito de Grajaú. O discurso oficial comemorou, conforme termo da citação abaixo, a “perfeita harmonia”, que triunfou por meio da expressão dos artistas daquela região no espaço organizado para eles, e reforçou a importância da música enquanto recurso para conquistar cidadania, paz e melhores condições de vida.:

O encerramento oficial foi neste domingo (21) às 18 horas, no Parque da Independência, com show de Luiz Melodia, mas no Grajaú a Virada Cultural foi até as 20h15 e foi encerrada com as apresentações das bandas A Firma e SWA Family.

A Capela do Socorro mais uma vez deu um exemplo de cidadania e arte colocando no palco da Virada Cultural mais de 15 artistas da região. De RAP a música regional, passando por Punk Rock e Soul Music o Grajaú pôde ver um pouco da arte que é produzida pelos seus filhos que muitas vezes necessitam apenas de um espaço para mostrar o seu talento. Como em 2005, a Virada Cultural na Capela do Socorro foi muito animada e abriu espaço para artistas novos e músicos consagrados. Mais de 3 mil pessoas acompanharam as mais de 8 horas de espetáculo na Praça do Parque Brasil na avenida Dona Belmira Marin. Todo o evento seguiu na mais perfeita harmonia não foi registrada nenhuma ocorrência. A periferia mostrou que a paz é a melhor escolha e que arte

22 Cf. nota de rodapé 19.

(25)

e a cultura são os caminhos que levam a uma vida melhor. (Subprefeitura Capela do Socorro, 2006)24

Segundo a pesquisa “Mapa da desigualdade 2016” elaborada pela Rede Nossa São Paulo que inclui diversos movimentos sociais, fundações e empresas, o Grajaú está entre 6 distritos com piores índices sociais da cidade. Foram medidos 40 indicadores em 11 categorias, entre elas, cultura, em escala que variou de zero a dez. Cultura recebeu o pior indicador no Grajaú em cinco das sete avaliações (número per capita de centros culturais, espaços e casas de cultura, sala de show e concerto, teatro, cinema e museus). Os outros dois indicadores (acervo per capita de livros infanto-juvenis e de livros para adultos em bibliotecas municipais) ficaram próximos de zero.25

A Virada Cultural é um evento que não privilegia as regiões periféricas. A característica singular do evento, palcos ao ar livre, ficaram concentrados no centro. Os espaços fechados dos CEUs foram os locais onde programações nas periferias prioritariamente ocorreram.

A organização deste evento e seus dilemas suscitam reflexões teóricas no tocante às relações entre arte, política e cidade. A associação construída pela elite entre a pobreza e violência é analisada por Williams (2011), no capítulo Os Romances Industriais, da obra Cultura e Sociedade. No século XIX, no contexto de emergência do capitalismo industrial em uma Inglaterra dividida em classes, a cultura foi considerada pelas elites intelectuais como antídoto à barbárie presente classes trabalhadoras. O autor analisou literários da época e concluiu que, em suas obras, personagens pobres estavam frequentemente associados a atos de violência. Williams identificou o medo enquanto estrutura de sentimento: modo de sentir coletivo característico de um momento histórico, expresso como reações individuais.

O mais agudo era o “medo da violência generalizado que existia entre as classes médias e altas naquele momento” em relação às classes trabalhadoras, ainda que associado à compaixão pelo sofrimento inerente à sua condição social. Dentre os romances analisados é em Mary Barton que a estrutura de sentimento do medo da violência aparece com maior intensidade. Williams relata a relação da autora, Sra. Gaskell, com a personagem John Barton, seu “herói”. Em princípio uma relação de solidariedade, convertida em recusa quando este,

24 Disponível em:

<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/capela_do_socorro/noticias/?p=3427>. Acesso em: 15 maio 2016.

25 As 11 categorias foram: assistência social, cultura, educação, esporte, habitação, inclusão digital, meio ambiente, saúde, trabalho e renda, transporte/acidentes de trânsito e violência. Mapa da desigualdade 2016. Rede Nossa São Paulo. Disponível em <http://www.nossasaopaulo.org.br/arqs/mapa-da-desigualdade-completo-2016.pdf>. Acesso em 30 set. 2016.

(26)

representante da população trabalhadora pobre, comete um assassinato político contra outra personagem, Henry Carson, que desdenhava este sofrimento. John Barton expressou o medo imaginado da violência. “Mas, na verdade, se tomarmos o período como um todo, o assassinato político como reação é tão pouco característico que parece ser uma distorção óbvia”, analisa Williams.26 Ele salienta que a vivência da autora permitia-lhe ser testemunha dos dramas da pobreza, porém sua condição de classe, esposa de um pastor protestante, atrelava-a ao sentimento difuso do medo existente nas elites.

Aliada à crítica à sociedade industrial, presente em todos os romances, evidencia-se o medo da democracia, enquanto movimento popular ameaçador à condição social das elites. Williams compara o romance Mary Barton, da Sra. Gaskell, a Felix Holt, de George Eliot, reforçando a presença do sentimento medo em relação aos pobres. Na leitura de Williams havia um padrão de sentimento nesses romancistas que expressavam o espírito da época, isto é:

“O reconhecimento do mal estava equilibrado com o medo de se envolver. A solidariedade estava transformada não em ação mas sim em recuo. Todos nós podemos observar até que ponto essa estrutura de sentimento persistiu tanto na literatura quanto no pensamento social de nossa própria época. ”27

Em Cultura e Anarquia, ensaio de Matthew Arnold analisado por Williams a cultura é considerada antídoto para a anarquia. 28 Comportando ideais tidos como superiores e apropriados pela burguesia como parâmetro de julgamento e crítica à feiura e ao caos da sociedade industrial, a arte foi incorporada no discurso arquitetônico como solução para organizar o espaço público. Naquele momento, cultura e arte eram consideradas sinônimos; representavam ideal de perfeição burguês, portador de um caráter de organização da nação e humanização da classe operária.

Os pobres foram associados à anarquia e não à cultura. Williams analisa que, para Arnold, seriam alguns indivíduos dotados de capacidade de acessar o “melhor eu”29, personificados em uma espécie de elite literária, que estariam aptos a se desvincular de valores de classe e imbuir-se de humanitarismo generalizado e, assim, ocupar o Estado e promover a tarefa de organização da nação.

No capítulo seguinte, Arte e Sociedade, Williams analisa a apropriação da noção de arte pela elite na tarefa de criação de melhores seres-humanos e contenção da violência. O

26 Ibid., p. 114. 27 Ibid., p. 133. 28 Ibid., p. 136.

(27)

contexto social em ebulição impôs-se como um desafio àqueles membros da burguesia que compreendiam a arquitetura como mecanismo de separação e organização do populacho, a partir da lógica dos espaços. Foram valores medievais que guiaram o discurso arquitetônico nesse momento, como a bondade e a retidão, reinterpretados com base em uma crítica ao liberalismo a partir de um retorno à arquitetura gótica. Nas palavras Williams, citando o crítico de arte conservador do século XIX, Ruskin: “Uma sociedade deve ser governada com nenhum outro objetivo a não ser aquilo que ‘é bom para os homens, elevando-os e fazendo-os felizes’ – ‘o exercício correto da vida perfeita no homem’”30

É importante ressaltar que “o conceito de uma minoria culta, em uma posição superior a uma massa ‘decreada’ ” é criticado por Williams. O autor compreende que o “dogma da ‘cultura de minoria’ ” nega a experiência real por estar baseado em abstração de um passado idealizado, leva a um “autoritarismo pseudoaristocrático” e ausência de “compromisso social contemporâneo”.31 A consolidação da arte enquanto domínio de uma pequena parcela da sociedade é analisada pelo autor como um desdobramento posterior e não planejado da atribuição desse papel de humanização à cultura.

O autor critica tal ‘autoritarismo”, compreendendo a arte e a cultura como integradas na sociedade e disponível a todos e não como uma dimensão separada. Entendendo cultura como “todo um modo de vida”, o autor concebe essa dimensão parte da vida ordinária. Dessa forma, também as artes, no sentido mais restrito, por exemplo música, pintura ou poesia, são (ou deveriam ser) processos da vida comum. (Williams, 1989)

Na perspectiva de Williams, cultura possui também um sentido de humanização da sociedade, considerada recurso de esperança, diferentemente da dimensão da cultura como recurso encontrada em Yúdíce, que a analisa primordialmente como conveniente segundo a lógica da racionalidade econômica. Difere também das análises de Elias, em que a dominação simbólica e a hierarquia social são partes constituintes do processo civilizador e do refinamento dos costumes.

Os elementos identificados por Williams em suas análises: estrutura de sentimento do medo da violência, a necessidade de organização do populacho entrelaçada com o ideal burguês da vida perfeita, dogma da cultura de minoria e o aspecto de humanização da cultura integram o conteúdo atual da cultura enquanto recurso para melhorar a sociedade, conceder cidadania e promover a sociabilidade e a integração com a cidade.

30 Ibid., p. 165.

(28)

Porém, atentamos para a associação entre pobreza e violência está presente na mídia brasileira e consiste em preocupação central dos organizadores da Virada Cultural de São Paulo. Trata-se de uma estrutura de sentimento que existe nesse evento. Na nona edição, em 2013, houve episódios de violência considerados graves para o evento. O balanço oficial da Prefeitura de São Paulo contabilizou 2 mortes, 10 ferimentos, 12 arrastões e 33 pessoas detidas, além de 9 adolescentes interceptados. O efetivo da PM foi de 3.440 policiais. (SECOM, 2013a)32 Sobre o ocorrido, o prefeito Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), afirmou em entrevista coletiva na noite de encerramento que a função da Virada Cultural é ocupar o centro da cidade reforçou o papel pacificador da cultura:

A cidade é nossa. Nós vamos ocupar a cidade. Isso não pode servir de nenhum tipo de intimidação. Ao contrário. Façam o planejamento e vamos expandir a cultura em São Paulo. É com mais cultura que isso deixará de acontecer” (...) “O número de homicídios na madrugada de sexta foi exatamente o mesmo da madrugada da Virada, só que com 4 milhões de pessoas a mais e concentradas” (Haddad, in: SECOM, 2013b) 33

A grande imprensa anunciou o ocorrido considerando a nona edição uma das mais violentas; o jornal O Estado de S. Paulo afirmou: “São Paulo registrou no fim de semana a Virada Cultural mais violenta desde sua primeira edição, em 2005. Os crimes se concentraram entre 2h e 5h do domingo, 19, e causaram cenas de terror, como a do jovem esfaqueado na região do Viaduto do Chá.” (MANSO, B. P.; et al. O Estado de S. Paulo, 20 de maio 2013) 34

Sobre os arrastões, o jornal Folha de S. Paulo reportou: “Em todos os casos, a descrição dos crimes é a mesma. Grupos de aproximadamente 50 pessoas passavam abordando os frequentadores da festa e, após agressões, arrancavam à força celulares, carteiras, bonés e blusas” A reportagem também salientou que episódios semelhantes aos de 2013 já haviam ocorrido em outras edições, ressaltando inclusive brigas entre grupos de skinheads e punks em 2011. (KREPP, Ana.; ARANTES, S. Folha de S. Paulo, 19 de maio 2013). 35

A gestão do partido dos trabalhadores na prefeitura de São Paulo entre 2013 e 2016 indicou 3 nomes que ocuparam o cargo de secretário municipal de cultura: Juca Ferreira, de

32 Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=148382>. Acesso em: 29 set. 2016.

33 Disponível em: <www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=148321>. Acesso em: 29 set. 2016.

34 Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,sp-teve-a-virada-cultural-mais-violenta,1033652>. Acesso em 30 set. 2016

35 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/05/1281410-balanco-da-virada-aponta-seis-esfaqueados-e-quatro-baleados.shtml>. Acesso em 30 set. 2016.

(29)

2013 a 2014, Nabil Bonduki, 2015, e Maria do Rosário Ramalho que assumiu em abril de 2016. No período tem se fortalecido discurso que reproduz os argumentos pacificadores da cultura, mas afirma a necessidade de descentralizar a Virada Cultural em direção às periferias, por meio da instalação de palcos ao ar livre e ampliação qualitativa da programação para abarcar maior variedade de expressões artísticas. O então vereador Nabil Bonduki do PT em discurso na Câmara dos Deputados a respeito dos incidentes da Virada Cultural 2013 afirma:

É claro que houve problemas de segurança, que precisam ser discutidos nos devidos fóruns. Mas quero ressaltar que a Virada Cultural foi um grande sucesso do ponto de vista cultural. Tivemos uma programação excepcional. Essa programação foi decidida num conselho curador. Não foi decisão de uma única pessoa. Houve um grupo que fez a curadoria da Virada, com representação da sociedade civil e do meio artístico, de modo que tivemos uma programação de primeiro nível. Evidentemente, existem ajustes que precisam ser feitos sobre a Virada Cultural. Como vários companheiros do Partido dos Trabalhadores defendem, penso que devemos ter uma Virada não só no Centro, mas também em áreas públicas da periferia. Temos de, gradativamente, descentralizar a Virada para que possamos ter um Centro vivo durante os fins de semana, com comércio, bares e restaurantes abertos, ruas povoadas; é isso o que dá vida à Cidade. (...)

É claro que quando se concentram 4 milhões de pessoas na região central, os problemas de segurança se agravam. Então, evidentemente, precisamos ter políticas específicas para enfrentar essa questão. (Bonduki, Nabil. Cidade Aberta, 22 maio 2013)36

Bonduki se refere à criação de um conselho curador para pluralizar as programações do evento e desenvolver necessário diálogo entre membros do setor artístico e representantes da sociedade. A medida deve ser articulada com a pulverização do evento gradualmente para periferias, e em outras épocas do ano. As diretrizes da nova gestão para a Virada Cultural seriam povoar o centro não apenas em evento impactante, porém efêmero, uma vez ao ano, mas ao longo do ano, utilizando a cultura como recurso, diminuir a concentração de público na região central para conter a violência, além da consolidação da curadoria artística.

O primeiro colegiado de curadores foi composto de 9 membros (7 homens e 2 mulheres): a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Giselle Beiguelman, a atriz e educadora Maria Tendlau, os jornalistas Alex Antunes e Marcus Preto, os produtores culturais Alexandre Youssef, José Mauro Gnaspini e Pena Schmidt, o poeta Sérgio Vaz e o cientista social Tião Soares. (SMC, 2013)37 Os nomes

36 Disponível em: <http://cidadeaberta.org.br/2013/05/22/tema-virada-cultural/>. Acesso em 05 jul. 2016. 37 Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=12129>. Acesso em: 15 jun 2016.

(30)

foram anunciados em março de 2013, dois meses antes da Virada Cultural. O questionamento da “cultura de minoria”, Williams (2011) por meio da ampliação do debate é conveniente para fortalecer a inclusão e minimizar conflitos sociais. Antes de sua criação a definição da programação era centralizada na figura do ex diretor do evento; de acordo com Juca Ferreira em entrevista à revista Carta Capital: “ ‘José Mauro fazia um trabalho quase individual de curadoria’, afirmou o secretário, referindo-se ao doutor em direito José Mauro Gnaspini, diretor da Virada nas gestões anteriores, agora convertido em um entre nove curadores.” (FERREIRA, Juca. in: Carta Capital, 2013)38

Complementar as mudanças artísticas no evento com a descentralização espacial também é sustentada pelo ex-secretário desde o início do mandato. Em outra afirmação alguns dias antes da Virada Cultural de 2013, Juca Ferreira também sustentou a necessidade de organizar o evento pelo território da cidade de São Paulo e em calendários mais abrangentes ao longo do ano para contemplar as demandas dos artistas, que excedem a capacidade da Virada Cultural. “Precisamos de grandes, médios e pequenos eventos por todo o território da cidade porque são muitas atrações e elas não cabem numa Virada só. ”39

Naquele ano, contudo, os CEUs, onde se realizam as programações em regiões periféricas, não participaram. O evento ocorreu em 25 palcos no centro, em SESCs e dez museus.40 Houve concentração de atrações no centro: das mais de 900 atrações anunciadas, 784 ocorreram no centro totalizando 86,6% do total (SECOM, 2013c) 41 Na edição no ano seguinte os CEUs voltaram a integrar as programações da Virada Cultural com eventos em 30 unidades (Contratação Artística, 2014). Sobre a décima edição, reportagem do jornal Folha de S. Paulo afirmou permanência da violência:

Fracassaram as tentativas da Prefeitura Municipal de São Paulo e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de conter a violência na virada cultural que, terminou neste domingo (18) às 18h.

A reportagem da Folha presenciou ao menos 18 casos de arrastão na madrugada de sábado para domingo, em diferentes pontos da região central. As detenções passam de cem, mas não há um balanço oficial. (Folha de S. Paulo, 19 maio 2014) 42

38 Disponível em: <http://farofafa.cartacapital.com.br/2013/03/13/uma-virada-cultural-paratodos/>. Acesso em: 15 jun. 2016.

39 Id., São Paulo (Prefeitura). Secretaria Executiva de Comunicação, 02 maio 2013. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=146977>. Acesso em 15 jun. 2016. 40 Cf. nota de rodapé 40

41 Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=148317>. Acesso em: 06 set. 2016.

42 Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/166598-seguranca-fracassa-e-violencia-volta-a-marcar-virada-em-sp.shtml>. Acesso em: 03 abr. 2016.

Referências

Documentos relacionados

AMU Análise Musical MTOB Música de Tradição Oral Brasileira. AMUA Análise Musical Avançada MUSITEC Música

Deus não tem boca e fôlego humanos: sua boca é o profeta e seu sopro, o Espírito Santo. “Tu serás a minha boca”, diz Ele próprio a seus profetas, ou ainda,

Tendo esclarecido esses pontos iniciais, Koyré passa as criticas de Bruno às concepções aristotélicas de espaço e universo: “Se o mundo é finito, e fora dele não há

Departam ento de

Convênio de colaboração entre o Conselho Geral do Poder Judiciário, a Vice- Presidência e o Conselho da Presidência, as Administrações Públicas e Justiça, O Ministério Público

Parágrafo Primeiro – As Etapas Municipais, Regionais, e Estaduais serão realizadas sob a responsabilidade das Federações Universitárias Estaduais (doravante

Promovido pelo Sindifisco Nacio- nal em parceria com o Mosap (Mo- vimento Nacional de Aposentados e Pensionistas), o Encontro ocorreu no dia 20 de março, data em que também

os casos novos de câncer no mundo, sendo o carcinoma de células renais o tipo histológico mais frequente nos Estados Unidos da América, correspondendo a 85% das