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CAPÍTULO 2 O TEXTO E O PÓS-TEXTO DO RELATÓRIO

3.1 As alterações normativas

O pioneirismo e o sucesso do Convênio INCRA/FAPEX/UFBA/UNEB/RTID (descrito e analisado nos capítulos 1 e 2) deram visibilidade à Superintendência Regional do INCRA/BA, respaldando-a para pleitear mais recursos para novos convênios. Todavia, não foi possível simplesmente replicar a modelo deste convênio uma vez que agora vigia uma nova Instrução Normativa (Instrução Normativa INCRA/Nº 20/2005) que tinha como uma das exigências a produção de relatórios antropológicos propriamente ditos como uma das peças do RTID.

Como vimos no Capítulo 1, durante a formulação do Decreto 4.887/2003, posições divergentes quanto ao lugar dos laudos/ relatórios antropológicos foram expostas para o Governo Federal. Ocorre que a primeira regulamentação do Decreto, através da IN/INCRA/Nº 16/2004, dispensou o laudo/relatório antropológico como uma das partes do RTID. Contudo, entre os anos de 2004 e 2005, o cenário mudou. O INCRA produziu e publicou os primeiros RTID, gerando grandes repercussões. Inúmeras contestações administrativas foram recepcionadas e ações judiciais foram impetradas em todo o Brasil contra os relatórios, a exemplo do demonstrado no Pós-Texto do relatório técnico de Parateca e Pau D’Arco. Além do mais, em 25 de junho de 2004, o Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM), ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.239) contra o Decreto 4.887/2003. O Partido argumentava, em termos gerais, que o Decreto seria inconstitucional:

1. Pela invalidade de se regulamentar a Constituição por meio de Decreto;

2. Pela impossibilidade de desapropriação de imóveis rurais para a regularização fundiária quilombola;

3. Pela impossibilidade do uso do critério do autoreconheciento para identificar as comunidades quilombolas;

4. Pela impossibilidade de os próprios quilombolas indicarem os seus critérios de territorialidade.

Como aponta Treccani (2006: 137), todos os avanços do Decreto foram questionados judicialmente166. Na defesa do Decreto perante o STF, diversos órgãos públicos e organizações não-governamentais elaboraram pareceres que fizeram referências a uma bibliografia antropológica brasileira sobre quilombos e sobre o autorreconhecimento étnico.

(...) os pareceres sobre a improcedência da ação emitidos pela Procuradoria Geral da República e pela Advocacia-Geral da União recorreram ao livro da ABA Quilombos: identidade étnica e territorialidade (O’Dwyer, 2002), assim como outras publicações de antropólogos e utilizam seus argumentos na defesa do Decreto, principalmente sobre o critério de autoatribuição, que tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação ou os também chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas remanescentes de quilombos.

A perspectiva antropológica adotada pela ABA passa, assim, a ser um elemento fundamental na defesa do Decreto e, por extensão, do próprio artigo 68 do ADCT. Após impetrada a Ação Direta de Inconstitucionalidade, o MDA e o Incra contataram a ABA para novamente contarem com a participação de antropólogos no bojo dos processos de reconhecimento territorial das comunidades remanescentes de quilombos e é editada a Portaria nº 20167, que prevê a elaboração de estudos e relatórios antropológicos (O’Dwyer, 2010: 54). Foi neste cenário adverso, de reações políticas, administrativas e judiciais contrárias aos novos critérios adorados para identificação e delimitação dos territórios quilombolas, que o Governo Federal entendeu ser a melhor solução a incorporação dos “relatórios antropológicos” para todos os procedimentos administrativos. Desta forma, a

166 O decreto 4.887/2003 foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunbal Federal em julgamento

concluído em 08 de fevereiro de 2018, após 14 anos de tramitação da ADI 3.239.

IN/INCRA/Nº 20, de setembro de 2005, introduziu a obrigatoriedade da peça “relatório antropológico”, a ser elaborada por profissional especializado.

IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO (IN/INCRA/Nº20/2005)

Art. 8º O estudo e a definição do território reivindicado serão precedidos de reuniões com a comunidade e contarão com a participação do Grupo Técnico interdisciplinar, nomeado pela Superintendência Regional do INCRA, para apresentação dos trabalhos e procedimentos que serão adotados.

Art. 9º A identificação dos limites das terras das comunidades remanescentes de quilombos a que se refere o art. 4º, a ser feita a partir de indicações da própria comunidade, bem como a partir de estudos técnicos e científicos, inclusive relatórios antropológicos, consistirá na caracterização espacial, econômica e sócio-cultural do território ocupado pela comunidade, mediante Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, com elaboração a cargo da Divisão Técnica da Superintendência Regional do INCRA, que o remeterá, após concluído, ao Superintendente Regional, para decisão e encaminhamentos subsequentes.

Art. 10. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação será feito por etapas, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas, e compor-se-á das seguintes peças:

I - relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sócio-cultural do território quilombola identificado, devendo conter a descrição e informações sobre:

a) as terras e as edificações que englobem os espaços de moradia; b) as terras utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural do grupo humano a ser beneficiado;

c) as fontes terrestres, fluviais, lacustres ou marítimas de subsistência da população;

d) as terras detentoras de recursos ambientais necessários à preservação dos costumes, tradições, cultura e lazer da comunidade;

e) os sítios que contenham reminiscências históricas dos antigos quilombos.

II - planta e memorial descritivo do perímetro do território, bem como mapeamento e indicação das áreas e ocupações lindeiras de todo o entorno da área;

III - cadastramento das famílias remanescentes de comunidades de quilombos, utilizando-se formulários específicos do SIPRA;

IV - cadastramento dos demais ocupantes e presumíveis detentores de títulos de domínio relativos ao território pleiteado;

V - levantamento da cadeia dominial completa do título de domínio e de outros documentos similares inseridos no perímetro do território pleiteado;

VI - levantamento e especificação detalhada de situações em que as áreas pleiteadas estejam sobrepostas a unidades de conservação constituídas, a áreas de segurança nacional, a áreas de faixa de fronteira, ou situadas em terrenos de marinha, em terras públicas arrecadadas pelo INCRA ou SPU e em terras dos estados e municípios;

VII - Parecer conclusivo da área técnica sobre a legitimidade da proposta de território e a adequação dos estudos e documentos apresentados pelo interessado por ocasião do pedido de abertura do processo168.(grifo meu)

Com isso, outra medida adotada foi incorporar ao quadro efetivo de servidores do INCRA o/a profissional de Antropologia. Com efeito, num concurso público realizado em 2005, pela primeira vez, abriram-se vagas para o cargo de Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário, com habilitação em Antropologia. O edital do concurso colocou como exigência para o cargo a formação de Graduação em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia ou graduação em qualquer formação acompanhada de mestrado e/ou doutorado em Antropologia. Após o concurso, em 2006, com a nomeação de 41 (quarenta e um) antropólogos/as aprovados/as, uma nova expertise profissional passou a fazer parte das práticas institucionais do INCRA e a estes/as antropólogos/as foram atribuídas as tarefas de elaboração direta dos relatórios antropológicos e/ou de acompanhamento dos relatórios antropológicos conveniados ou contratados (execução indireta), bem como a participação em reuniões, grupos de trabalho e elaboração de pareceres sobre as mais variadas situações envolvendo a regularização fundiária dos territórios quilombolas. Para a Superintendência Regional do INCRA/BA foi nomeada

apenas uma antropóloga – Camila Dutervil Moliterno Franco – que deu início aos primeiros relatórios antropológicos por execução direta no estado.

Camila, ainda em 2006, fez o relatório antropológico da Comunidade Quilombola Dandá (Simões Filho/BA) e o da Comunidade Quilombola Salamina Putumuju (Marajogipe/BA). Em 2007, deu início à elaboração do relatório antropológico da Comunidade Quilombola São Francisco do Paraguaçu (Cachoeira/BA). Esta grande comunidade, localizada no Recôncavo Baiano, vivia várias situações de conflitos fundiários, gerando tensões e pressões de toda ordem (de movimentos sociais e do MPF) para que o INCRA atuasse. Por outro lado, os fazendeiros que possivelmente seriam desapropriados com o avanço do processo reagiram com ações judiciais, fazendo o caso repercutir na imprensa. Durante os trabalhos de campo, em 14 de maio de 2007, foi veiculada uma reportagem de 06 minutos e 09 segundos no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão. Esta matéria mostrou o resultado classificado pela Globo como “estarrecedor” de uma investigação jornalística em que os moradores da comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu diziam não existir no local um quilombo e que haveria uma suposta fraude no pedido de autorecohecimento quilombola169.

Com efeito, as discussões a respeito do trabalho do/a antropólogo/a e o papel dos relatórios antropológicos ganharam a mídia e provocaram enormes repercussões dentro do próprio INCRA e na FCP, chamando a atenção do Governo170. O caso de São

Francisco do Paraguaçu deu origem a um procedimento de sindicância da FCP que concluiu pela regularidade do processo de certificação da comunidade. Contudo, após esse episódio, a FCP editou a Portaria 98, de 26 de novembro de 2007, que estabeleceu novos procedimentos para a certificação das comunidades quilombolas171. Além disso, o caso motivou, mais uma vez, discussões normativas no âmbito dos procedimentos de regularização fundiária. A IN/INCRA/Nº/2005 foi submetida a análise de diversos órgãos, inclusive da Advocacia-Geral da União, e acabou sendo substituída, em 29 de setembro de 2008, pela IN/INCRA/Nº 49/2008. Esta nova IN não só manteve o relatório

169 A reportagem pode ser acessada pelo endereço: https://www.youtube.com/watch?v=_vEcbpMQeAU. 170 Após a publicação do RTID de São Francisco do Paraguaçu, em dezembro de 2007, este recebeu 46

contestações, todas argumentando uma suposta utilização equivocada e “alargada” do conceito de quilombo no relatório antropológico.

171 A possiblidade, a depender do caso concreto, do órgão realizar visitas técnicas às comunidades no intuito

antropológico como o regulamentou detalhadamente, além de tornar o procedimento de regularização fundiária quilombola mais burocrático ainda.

Portanto, desenhou-se um cenário político e institucional em que um novo convênio só poderia ser formalizado com alguma entidade com experiência na área de Antropologia172 ou que viabilizasse a contratação dos antropólogos e de outros técnicos com competência para dar conta de todas as exigências normativas. Não havia na época (2007) nenhum grupo de pesquisa de Antropologia em nenhuma universidade baiana especializado na questão quilombola. A solução encontrada pelo INCRA/BA para dar seguimento à produção dos RTID foi propor novos convênios com Fundações de Pesquisa que já desenvolviam projetos para a autarquia agrária voltados à prestação de assistência técnica em Projetos de Assentamento e de gestão do cadastro rural. O intuito foi aproveitar o diálogo já aberto em função dos convênios existentes e fazer tratativas com estas Fundações objetivando a construção de outros projetos de parceria com vistas à elaboração de RTID, agora com contratação de relatórios antropológicos como uma peça específica.

3.2 A construção dos convênios INCRA/FAPEC/SEPROMI/RTID e

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