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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.3 A colheita as lições deixadas pela AMANE em seus dez anos de

4.3.2 As conquistas

4.3.2.4 As aprendizagens do trabalho em rede

As aprendizagens foram colhidas nas falas dos entrevistados quando perguntados sobre as oportunidades do trabalho conduzido pela AMANE. Falando sobre a entrevista compreensiva, Kaufmann, 2013 (p. 99), explica: “Aquele que fala não se limita a dar informações”. O trabalho que se constrói é sobre a unidade identitária, apresentada ao entrevistador, de maneira experimental.

Uma das entrevistas aconteceu durante uma caminhada na propriedade da agricultora e liderança do Assentamento Dom Hélder, foi importante esse formato para perceber a memória do trabalho realizado presente no lugar, no campo, na propriedade, no assentamento. Para Yi- Fu-Tuan, 1983, os lugares possuem atributos de valor e significado construídos a partir de vivências no espaço, antes indiferenciado e desprovido de significação. Ao longo do tempo, os lugares adquirem identidade e se transformam em referências para as pessoas. Estas referências são constituídas por pensamentos e emoções que criam elos entre as pessoas e os lugares, contribuem para a formação da história de uma época. Sendo mais que espaço físico,

o lugar é o suporte através do qual se realizam as funções sociais e que lhe dá significado, construindo assim a sua identidade.

A memória do lugar está associada à participação da equipe no campo, o nome da equipe técnica é pronunciado na descrição das propriedades, nas culturas existentes, nos plantios, inclusive dá nome às árvores plantadas nos lotes (IR, 2016, p. 3). Nessa entrevista a agricultora indicava a localidade, sua prática, sua aprendizagem e associava o trabalho ao técnico que a orientou. A equipe da AMANE está impressa nos Assentamentos trabalhados, são marcos da memória que asseguram a intervenção e a constatação dos resultados obtidos, como a abundância de água em época de seca, a produção agrícola, a participação crescente da comunidade nas feiras, a manutenção da reserva legal do Assentamento, o diálogo com instituições fiscalizadoras e a gestão dos conflitos.

a AMANE trouxe pessoas que amavam o que fazia e que as plantas foram plantadas e todas tem nome, sabe? A primeira sucupira que eu trouxe lá da AMANE, eu plantei, botei o nome seu, as primeiras mudas eu vou botando o nome de cada uma. Elas cresceram, estão vivas, então, eu acho que a AMANE nunca vai morrer porque aquela sucupira vai dar frutos e vai plantar outras plantas... outras sucupiras (IR, 2016, p.182).

“...nós estamos roçando as laranjeira, mas, ali embaixo eu e Fábio plantamos, temos cacau, temos... fizemos assim... uma misturada, né? ele dizia: aqui é sua agrofloresta” (IR, 2016, p.176). Essa afirmativa nomeia a iniciativa nova, aquela que não foi percebida, portanto, promove o poder de incluir a agricultora enquanto grupo de agricultores da agrofloresta, com um poder e força mais abrangente (BOURDIEU, 2004).

Aí Helena quando veio me deu uma dica: naquela abertura ali, plantar capim e banana alta, tá vendo? Porque quando a água vier correndo dá uma paradinha. Aí a gente vai ver se vai plantar em curva de nível porque todas as vezes que chover, ela não leva o solo, a chuva não vai levar o solo. Ali é outro lugar onde ficam as cabras, embaixo é... quando Fábio vir vai ficar feliz. Eu fiz o açude, como planejava, sabe? (IR, 2016, p.176)

O gerente da ESEC Murici, do ICMBio, na época, dá testemunho da importância dos trabalhos realizados para o reconhecimento da Unidade, sejam seus limites físicos, seja a legislação, mas, também para “chamar a atenção” para a riqueza da floresta, não somente para os moradores locais, mas, também para os pesquisadores, o setor acadêmico, e a população de forma geral (JF, 2016, p. 240). A atual gestora da unidade ressalta também a importância da troca de experiências, da confiança junto à comunidade (NM, 2016, p.186).

“Olha... a AMANE iluminou, sabe? ela iluminou porque me ajudou a realizar muitos sonhos” (IR, 2016, p.179). A agricultora dá um testemunho das mudanças na prática com a agricultura e o meio ambiente no Assentamento Dom Hélder, em Murici, e ressalta a consciência em não

usar agrotóxico nem adubos químicos, e que, apesar da ausência da AMANE, a prática foi internalizada e garante a seriedade e compromisso em denominar as feiras de “ecológicas”. (IR, 2016, p.178).

A cooperação pode ser compreendida como uma troca em que as partes se beneficiam, com ganhos pessoais, institucionais e de resultados palpáveis. Nessa troca há que se ter habilidade, na escuta com atenção, no tato do agir, na busca de convergências, na gestão da discordância ou evitando a frustração em uma discussão difícil. Todas são atividades que Sennett, denomina “habilidades dialógicas” (SENNETT, 2013). Cunhada pelo crítico literário russo Mikhail Bakhtin, a dialógica se refere a uma discussão que não resulta na identificação de um terreno comum. Mesmo sem se chegar a esse acordo, as pessoas podem ampliar a compreensão recíproca e ter mais consciência dos seus próprios saberes (SENNETT, 2013).

A dialógica é característica fundamental do pensamento complexo, ou seja, de um pensamento capaz de unir conceitos que tradicionalmente se opõem, considerados racionalmente antagônicos, e que até então se encontravam em compartimentos fechados (VASCONCELLOS, 2002, p. 114).

A conversação dialógica evolui pela empatia, a curiosidade e a aprendizagem sobre os outros, dando-lhes atenção, sem a obrigação de ser como eles e chegar a uma mesma conclusão (SENNETT, 2013). “A AMANE pelo tempo que ela passou é como se ela fosse uma casa, cuidava das pessoas, cuidava assim da limpeza, do fazer com a natureza. Eu tento cuidar, mas, eu não sei passar esse cuidado” (JO, 2016, p.191).

O equilíbrio entre a cooperação mútua e a competição deve ser encontrado na prática da conversação, coalizões, práticas comunitárias ou oficinas de trabalho (SENNETT, 2013).

A AMANE ensinou a gente a sentar prá conversar, a gente não sabia. Era cada um por si e Deus por nós todos. Mas, Deus só pode ser por nós todos se nós sentarmos e dissermos o que nós queremos, tivermos juntos, ajudou a gente preservar a mata, a gente não desmatava tanto mas a gente usava muita madeira (...) (IR, 2016, p.178).

A orientação dada era para podar as árvores do lote, principalmente as espécies exóticas invasoras como jaqueiras, mangueiras, sabiá.

ficaria mais baixo prá gente colher o fruto e teria madeira, (...), hoje você não vê carroçadas de lenha como antes, isso é muito bom, (...), que o pessoal não vai prá mata caçar. A gente tem o que comer, a gente não precisa disso, né? (IR, 2016, p.178).

O depoimento da agricultora e liderança do Assentamento Dom Hélder, exemplifica suas palavras tratando sobre a relação construída com o ICMBio e outros órgãos governamentais, que hoje mantém fácil diálogo e há mais confiança na conversação e negociação sobre eventuais infrações ou solicitações de melhorias para a localidade. A gestora também ressalta

como saldo desse empoderamento a autonomia das mulheres nas ações estratégicas de mobilização no Assentamento (IR, 2016, p.181,182).

Os trabalhos de mobilização, capacitação, principalmente aqueles desenvolvidos nos centros de educação imprimiram um censo de responsabilidade da população moradora do entorno

das florestas diante da sua biodiversidade

: “

Quem mora na zona rural, assentado, acampado,

somos nós que protegemos e isso nos dá uma grande responsabilidade, certo?”. Observa-se

ainda a percepção acerca dos serviços ambientais das florestas

“...

despertou em nós aquele

senso, se eu desmato, vou ficar sem água, sem água ninguém vive e sem ar? então, eu preciso da mata, né? isso criou um bom senso” (IR, 2016, p.182).

Na expectativa de parada das atividades da AMANE, a liderança do Assentamento Dom Hélder entrou em contato com algumas instituições buscando desenvolver projetos semelhantes de maneira a encontrar soluções em conjunto. Os contatos foram com órgãos governamentais como o Instituto de Inovação para o Desenvolvimento Rural Sustentável de Alagoas - EMATER, SEBRAE, IFAL e Prefeitura. Algumas iniciativas já estão em implementação no Assentamento com o IFAL, na produção de adubo orgânico (IR, 2016).

Para o antropólogo, professor da UFAL, que coordenou o Censo Demográfico do Complexo Florestal de Murici, em 2004, com o apoio da SNE, uma semente de consciência ambiental, por menor que seja pode alterar “o modus operandi de qualquer comunidade, ela se perpetua, mesmo que não tenha uma escala que altere a realidade (...) ela não morre”. Havendo sempre a possibilidade de ressurgimento das ações por outros agentes que intervenham com o que foi plantado, consolidado. Esses resultados podem vir em curto, médio ou longo prazo, embora não seja fácil mensurar, hoje já se pode observar o manejo sustentável em alguns setores das atividades agrícolas e do extrativismo (BC, 2016).

Para esse professor, citado acima, o desenvolvimento do trabalho no Censo Demográfico do Complexo Florestal de Murici, com a SNE, em 2004, e posteriormente no acompanhamento das ações de mobilização das comunidades, com a AMANE, deixou um saldo positivo bem acima do esperado. O trabalho resultou em um artigo científico para a Revista Horizontes Antropológicos, denominado Desejos de Cidade (CAVALCANTI e BARROS, 2007), sobre imaginários urbanos, coexistindo com essas populações assentadas, que tinham origem urbana. Posteriormente uma resenha sobre o mesmo artigo foi publicada em uma importante revista antropológica norte americana (CAVALCANTI e BARROS, 2006; PINHO, 2007).

Ressalta que, em termos metodológicos o estudo impulsionou os pesquisadores para outras pesquisas em temas diversos, mas, “que teve a mesma perspectiva de um engajamento, de um envolvimento com as comunidades”, citando que, no trabalho desenvolvido com a AMANE na região, houve uma interação com a população assentada, um envolvimento posterior. “Foi uma pesquisa que me chamou muito a atenção para esse compromisso, para a ideia de você fazer pesquisas que elas não só satisfaçam suas curiosidades conceituais, teóricas, mas, pesquisas que tenham impacto na vida das pessoas” (BC, 2016, p.266).

Então, isso foi prá mim o grande saldo desse trabalho com a AMANE, foi perceber que a gente pode unir, o trabalho produtivo da ciência com uma participação social da pessoa, do pesquisador, como um cidadão igual aquele que ele estuda (BC, 2016, p.266).

Algumas falas tratam da aprendizagem no nível do desenvolvimento pessoal do interlocutor a partir do trabalho na rede, suas relações e suas capacitações, como “conhecer essas pessoas me ajudou a formar quem eu sou hoje, pessoalmente” (BP, 2016, p.349). Em muitos casos, as realidades vivenciadas, sejam no contexto do indivíduo, sejam no contexto de grupo, são oportunidades que essas pessoas não teriam como conviver de maneira tão próxima, por exemplo, jovens de classe média fazendo o almoço para as comunidades e lavando a louça junto com um agricultor que não sabe ler e escrever, ou cultivar a terra junto e trocar saberes dessa prática (BP, 2017, p.349). Nesse sentido o filósofo e professor da UFPE, participante da equipe da AMANE comenta que a organização propiciou um “baita espaço de aprendizado (...) com o ambiente de trabalho, com os projetos em si (...) ao lidar com a equipe, com as

comunidades (...) essas são as oportunidades fundamentais...”(MP, 2016, p.312).

A oportunidade de ter trabalhado com essas pessoas, seja com os beneficiários dos projetos que são amigos hoje, todos os agricultores eu tenho certeza que qualquer um, a casa que eu chegar, tenho amigos, aprendi muito com eles, você não só vai lá ensinar, a gente aprende muito, como com a equipe também, com essa equipe multidisciplinar (FP, 2016, p.221).

Para aqueles que vivem nas áreas rurais, os encontros presenciais têm um valor ainda maior do que para os moradores das cidades, assim, as capacitações e os encontros da rede são

destacados nas falas:

porque não é em todo canto que a gente se conhece, gente que a gente

conhecia de vista e, de outros estados, (...) a gente uniu todo mundo, uniu as forças, fazendo essa rede de gestão...” (ZZ, 2016, p. 281).

Um jovem cientista ambiental da equipe técnica da AMANE comenta que a principal colheita foi a visão do ser interior, da capacidade de se auto-observar, de ver o aprendizado de dentro prá fora, vivenciando as questões profissionais ao mesmo tempo, refletir com o grupo as

principal legado que a AMANE deixou prá mim além da pessoa, do profissional” (BP, 2017, p.343).

Para o filosofa e educadora, da equipe da AMANE, o trabalho na organização ensinou coisas que já sabia na teoria, mas, não sabia na prática, como a lidar com a alteridade:

eu pensava que a alteridade era que não sou eu, mas, não, porque quando eu encontro alguém que não sou eu mas, que eu tenho afinidade, isso é uma identidade, alteridade é aquele que me desafia (...), porque... eu simplesmente deixava no vácuo, a gente não precisa perturbar o outro mas, vai embora. E eu aprendi na AMANE a não ir embora, a ficar ali. Isso foi um aprendizado e é incrível como esse aprendizado eu estou usando nesse meu outro trabalho (CC, 2016, p.292).

Para gestores do setor público estadual, a mudança de atitude com relação à gestão de Unidades de Conservação foi uma aprendizagem significativa, pois, promove uma mudança nas intervenções, nas práticas e nos investimentos. A fala da gerente da APA de Murici, em Alagoas, demonstra essa compreensão, essa responsabilidade:

...prá mim ficou uma inquietação porque, quando você tem uma informação, você tem um saber, você tem mais uma responsabilidade né? Você não tem como você dizer: ahhh, eu não sabia disso, está ali, tudo foi passado tudo transmitido prá gente, então, você tem uma responsabilidade com o meio ambiente, com as pessoas, não era só uma interação ambiental, gerou também um lado social também, de ver o parceiro (LN, 2016, p.258).

Para outro gestor do órgão ambiental de Alagoas, o destaque é dado à comunicação com as pessoas e com os saberes, ele critica a compreensão de que o órgão ambiental é visto muitas vezes apenas para fiscalizar, licenciar e aplicar regras, aplicar a lei e que, a gestão de unidades de conservação implica em muitos outros itens. Para isso as capacitações deixaram muitas lições sobre o valor dos saberes de cada um, desde a comunidade tradicional até o doutor que atua na área. Perceber esses conhecimentos, suas articulações e suas práticas em uma gestão participativa foi uma aprendizagem que muda a estratégia na gestão das unidades (AN, 2016).