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As associações e o (re)surgimento do catador

No documento 2014RubiamaraPasinatto (páginas 31-36)

Uma das saídas encontradas, na atualidade, para fortalecer o ofício da catação, bem como valorizar o sujeito catador, tirando-o da informalidade, é a organização de cooperativas e associações. Entretanto, antes de passarmos a discutir sobre este assunto, precisamos trazer ao debate, mesmo que de maneira breve, de onde surgiu a ideia da sindicalização dos homens, com “pensamentos” e ideais afins em associações ou cooperativas.

Encontramos embriões desse panorama atrelados às correntes de esquerda que se consolidaram no século XIX na Europa, sobretudo ligadas aos saberes socialistas, marxistas e anarquistas, que tinham como ponto em comum a transformação social a partir de mudanças e reconfigurações no trabalho e entre os trabalhadores.

Rego e Moreira (2013, p. 63) relatam que os princípios cooperativistas estão presentes no socialismo utópico através da abordagem de representantes, como Robert Owen e Charles Fourier, passando pelos teóricos do socialismo marxista, com aporte em Karl Marx, Rosa de Luxemburgo e Karl Kautsky, chegando à discussão travada pelos anarquistas, a partir dos teóricos Proudhon, Elisée Reclus e Piotr Kropotkin.

Do ponto de vista do socialismo marxista, verificamos que já no Manifesto comunista, lançado em 1848, Marx e Engels ressaltam a luta da classe operária contra a burguesia, bem como conclamam os proletários à união.

A princípio, empenham-se na luta operários isolados, mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente, operários do mesmo ramo da indústria [...] o operário e o burguês tomam cada vez mais o caráter de choque entre duas classes. Os operários começam a formar uniões contra os burgueses atuam em comum na defesa de seus salários [...] chegam a fundar associações [...]. Aqui e ali a luta se transforma em motim [...]. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união mais ampla dos trabalhadores. [...] Que as classes dominantes tremam diante da revolução comunista! Os proletários nada têm a perder senão os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos! (MARX; ENGELS; 2003, p. 21- 59, grifo nosso).

Como nos trouxeram os autores, os primeiros registros em que presenciamos a luta de operários começa tímida, iniciada por trabalhadores isolados, posteriormente com difusão nas mesmas fábricas e indústrias do mesmo setor. O principal motivo era a questão salarial, que no decorrer da história também dividiu espaço com aspectos ligados à jornada de trabalho no movimento operário.

Outra marca dos princípios cooperativistas está presente nas resoluções do Primeiro Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT),16 também chamado de Primeira Internacional ocorrido em Genebra em 1866. O texto aponta o movimento cooperativo “[...] como uma das forças transformadoras da sociedade atual, baseada no antagonismo de classes. O seu grande mérito é o de demonstrar na prática que o sistema despótico e empobrecedor, de subordinação do trabalho ao capital, pode ser suplantado pelo sistema republicano da associação de produtores livres e iguais.” (MARTINS, 2000, p. 16).

16

Em 1876, a AIT foi definitivamente extinta. Outras Internacionais foram criadas posteriormente, como a II Internacional, também conhecida como Internacional Socialista (1889), na Europa; III Internacional, a Internacional Comunista (IC), março de 1919; em 3 de setembro de 1938, a IV Internacional foi fundada numa conferência em Paris. Ver mais em: Dicionário de Política.

Conforme nos traz o autor, o movimento cooperativo foi indicado no documento como uma entidade que poderia atuar na transformação social, modificando o sistema da época e trazendo uma nova realidade aos proletários, com um projeto baseado na liberdade e igualdade.

De acordo com Schons, também no AIT tem origem um saber próprio da formação discursiva anarquista:

[...] consiste na solidariedade na organização dos operários em ligas, em associações e em confederações. Nesse espaço, os anarquistas debateriam propostas e estratégias de luta e, dessa maneira, criariam base para a sustentação de formação de uma sociedade livre. Entretanto, para chegar a esse estágio, o proletário deveria receber educação política. A união dos trabalhadores na luta contra o capitalismo e todas as suas formas de exploração seria uma forma pressão e sustentação para a criação de estratégias como: a) a ação de luta direta como forma de auto-representação, pela classe proletária, de seus próprios interesses; b) a execução de práticas políticas não- pacíficas; c) a excelência da unidade na diversidade em defesa dos proletários. (SCHONS, 2006, p. 106, grifo da autora).

A Primeira Internacional foi o berço de saberes anarquistas com base na solidariedade, os quais fortaleceram, sem sombra de dúvidas, a organização e a sustentação dos operários em ligas, associações e confederações, numa sociedade livre e igualitária. Contudo, para isso foi preciso trabalhar a educação política com os operários.

O político referido é o inaugurado por Aristóteles e também trabalhado por Rancière (1996, p. 17-18), o qual prega que o homem político é aquele que tem posse da palavra como manifesto, como meio para diferir sobre o útil e o nocivo. Não é a possibilidade da voz, do falar de prazer e sofrimento, mas aquela que tem percepção do útil e do nocivo.

Outro princípio anarquista ao qual Schons (2006, p. 107) refere é a autogestão, isto é, o controle da produção e da distribuição de mercadorias sem a presença do Estado, levando em consideração a coletividade.

A autora afirma que para Kropotkin, um dos líderes do anarquismo russo, o trabalho dos anarquistas é de orientar e alertar os proletários sobre a exploração dos governos e os perigos das leis, principalmente em relação aos aparelhos ideológicos de estado. Assim, “[...] para os anarquistas, a solidariedade existe à medida que os trabalhadores, num amplo espaço educativo e formativo, promovem um processo de conscientização da importância do papel do indivíduo no coletivo e passam a questionar a realidade atual na direção de uma sociedade baseada na autogestão.” (SCHONS, 2006, p. 107, grifo da autora).

A busca dos anarquistas não contemplava apenas as questões do trabalho, mas perpassava a vida do homem como um todo. Diante disso, o ser humano, além de trabalhar, devia “viver”, ou seja, dar vez ao amor, pautando sua vivência na comunhão e na justiça.

A vida humana só atinge sua plenitude quando inclui amor, trabalho e “comunhão social” ou justiça. Preenchidos essas condições, declara Proudhon, a vida é plena: ela é uma festa, uma canção de amor, um perpétuo entusiasmo, um infinito hino de felicidade. E não importa o momento em qual sinal possa ser dado, o homem estará pronto, pois ele estará sempre morrendo, o que significa que está sempre vivendo. (WOODCOCK, 1975, p. 25).

Conforme acompanhamos, o anarquismo não trouxe apenas princípios ligados ao trabalho, como a solidariedade e a autogestão, também vislumbrou o homem numa perspectiva que ultrapassa a atividade laboral, de um ser que não tinha apenas como fim o

labor, o capital, mas que “merecia” uma vida completa, com direito à felicidade, vivendo a

comunhão e a justiça.

A contextualização que realizamos permite-nos propor uma “ponte” dos saberes anarquistas com o modo pelo qual estão organizados os sujeitos de nossa pesquisa a partir de associações, que têm influenciado, entre tantos aspectos, no desenvolvimento de direitos de cidadania e emancipação política, econômica e social dos envolvidos.

Sobre esse modelo organizativo de catadores, Pinhel (2013, p. 19) comenta que foi alavancado a partir da década de 1990, com as campanhas de coleta seletiva, que começaram a se multiplicar, sobretudo em razão de políticas e ações no gerenciamento de resíduos, contando com o apoio dos governos, das organizações não governamentais, instituições sociais, incubadoras etc.

Consequentemente, começam a surgir alternativas para fortalecer os catadores e deixá-los mais independentes [...]. Nesse contexto, a possibilidade de organização aparece como uma saída da situação de exploração. Assim, a estruturação de cooperativas busca romper algumas das amarras existentes no circuito de separação e comercialização de resíduos, com intuito de melhorar as condições de vida e de trabalho dos catadores. (PINHEL, 2013, p. 19-20).

O fortalecimento dos catadores, que a partir desse modelo cooperativo de organização passam a unir forças, traz à classe uma série de aspectos positivos. Podemos elencar melhorias nas questões econômicas, com a negociação dos resíduos catados sem a presença

dos atravessadores e a organização do trabalho de maneira coletiva, com divisão de tarefas, lucros e decisões tomadas em grupos.

A respeito da organização de trabalhadores, independentemente de qual setor, em cooperativas ou associações, podemos afirmar:

[...] o associativismo melhora a convivência entre os indivíduos, pois faz com que eles tenham entre si uma relação mútua, que possibilitará a criação de hábitos de colaboração e de solidariedade, e, por conseqüência, o crescimento e desenvolvimento como cidadão. Além disso, a junção de forças em forma de associação fortalece a produção individual e coletiva, dando uma melhor oportunidade de abertura de mercado e, por conseguinte, retorno de renda, propiciando uma melhor força de interesses e favorecendo, portanto, a emancipação da cooperação. Assim, [...] a ampliação das relações de associativismo contribui para o avanço da democracia e para a conquista e efetivação dos direitos civis, políticos e sociais. (DUTRA, FREITAS et al., 2011, p. 125-126).

Dessa maneira, organizar os trabalhadores em associações ou cooperativas, além da união para a melhoria das condições de trabalho e renda, significa um espaço de democracia no sentido mais amplo da palavra. É a construção de espaços democráticos de vez e voz às minorias que passam a contar com um lugar onde sua individualidade é ouvida.

Ainda sobre a importância do associativismo, Leonello (2010, p. 18) ressalta que, quando o contexto é o mundo do trabalho, este modo de organização desempenha papel fundamental nas transformações que estão em curso na atualidade. Constitui-se numa das principais referências que determinam não somente os direitos e deveres nas relações de trabalho, mas padrões de identidade e sociabilidade, interesses e comportamentos políticos, modelos de famílias e estilos de vida.

Mesmo que diferentes teorias se dediquem a estudar questões de ação coletiva expressa no associativismo, Leonello (2010, p. 19) observa que o princípio embutido é o mesmo: a proposição de um modelo de sociedade que luta por igualdade, sem perder de vista aspectos como sustentabilidade e consagração de indivíduos livres, emancipados, verdadeiros donos de seus destinos.

A título de ilustração,trazemos a SD 01, na qual o catador cita aspectos positivos da união dos catadores nas cooperativas ou associações:17

17

Temos conhecimento de que os termos “associação” e “cooperativa” têm compreensões diferenciadas, entretanto, neste estudo, iremos utilizá-los como uma designação alinhada aos princípios anarquistas da autogestão.

SD 01 – [...] hoje com a Petrobrás nos semo respeitado por todos, semos tratados como trabalhadores. Mas também somos gratos ao projeto que nos ensinam a trabalha nas maquinas e somo unido por uma razão de podermo nos orgulhar de nós mesmo. Oje gostaria de poder que se nós foce mais unido nós conseguiria mais do que nós imaginamos, nós não podemos parar porque o sonho continua.

Catador 11, jul. 2013, grifo nosso.

Verificamos, no dizer do catador, que o trabalho nas associações presentifica os saberes anarquistas de solidariedade e autogestão, marcados pela união e pela possibilidade de aprender, os quais oportunizam o resgate da dignidade humana desse sujeito, favorecendo o princípio de ajuda mútua. Além do que, temos marcadores como orgulhar e sonho, índices que ultrapassam a questão do trabalho e remetem às questões de satisfação pessoal, de se orgulhar daquilo que faz e de permitir que isso lhe possibilite sonhar, indo, dessa forma, além do campo do labor.

Prosseguimos o estudo com a questão da inserção do catador na cadeia de reciclagem a partir do reconhecimento de sua importância na política de resíduos sólidos, bem como o fortalecimento da “classe” que tem ocorrido na união em associações e cooperativas, como é o caso dos sujeitos que são fonte da materialidade linguística, que pretendemos analisar a seguir.

No documento 2014RubiamaraPasinatto (páginas 31-36)