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A língua que cala

No documento 2014RubiamaraPasinatto (páginas 114-118)

3.5 As matrizes do sentido no dizer do sujeito catador

3.5.7 A língua que cala

A oportunidade de aprender, discusivizada pelo sujeito da família parafrástica anterior, mostrou-nos que, por meio do Projeto, os catadores estão conhecendo o verdadeiro sentido do

político, aquele que tem feito emergir um novo cidadão. Neste recorte, seguimos com essa linha de reflexão, contudo, discutindo sobre o imaginário dos sujeitos de nossa pesquisa a respeito da língua da escola. Para isso, reunimos duas SDs em que eles não se sentem habilitados a utilizá-la e acabam calando-se. É a ação do aparelho ideológico escolar, que, assim como os demais AIE, trabalha no reforço da divisão da sociedade e pela reprodução das relações de produção.

Dorneles (2011, p. 35-36) afirma que a escola tem sido fundamental para (de)marcar quem sabe ou não a língua materna. Dessa forma, constitui o imaginário de um não-lugar também em relação à língua, assim como muitos seguem sendo “invisíveis”, mesmo vivenciando todo o dia o urbano. A invisibilidade a que nos referimos é aquela retratada por Costa (2008) em Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social, que não trata da não presença física, mas de estar e não ser notado, não ser considerado.

Ainda segundo Dorneles (2011, p. 36), a língua tem a função de possibilitar a constituição do sujeito político catador. A autora chama atenção que quanto mais o imaginário da língua domesticada, escolarizada, interferir, mais distantes esses sujeitos estarão da politicidade, aquela que liberta pela voz e que quer igualdade. Além disso, mais difícil será o ato revolucionário de rompimento da ordem.

Passamos então a discutir cada uma das SDs da FP 7:

Quadro 18: Família Parafrástica 7: O reconhecimento do ensino formal para a autonomia do sujeito

Matriz do sentido Estruturas linguísticas que remetem à relação parafrástica

“O reconhecimento do ensino formal para a autonomia do sujeito”

SD 37 - [...] porque nos não temo estudo suficiente para nós aprender negosiar com as industria. [...] é dificio para nos vira de catador para negociador. [...] desculpe pelas palavras erradas.

Catador 2, março de 2013.

SD 38 - Desculpe pelo erro eu sei poco escrever. Catador 11, julho de 2013.

Fonte: Elaboração da autora, grifo nosso.

Na SD 37, a partir da expressão não temo estudo suficiente, o catador revela não se sentir habilitado a negociar com as indústrias recicladoras o material catado e delega essa impossibilidade à falta de estudo. Temos um sujeito que projeta no seu discurso o imaginário de que somente quem tem estudos, ou seja, frequentou e teve bons resultados na escola formal, pode ascender ao papel de negociador. Na enunciação, o uso do verbo aprender indica

O RECONHE- CI M E NTO DO ENSI NO FORM AL PARA A AUTONOM IA DO SUJ E IT O

que, pelo entendimento desse sujeito, o fato de não dominar os conteúdos da escola o impediria de aprender a estar frente aos empresários recicladores para comercializar o seu trabalho.

O enunciador da materialidade pressupõe uma distância grande entre o “ser catador” e “ser um negociador”, evidenciada por vira. Essas marcas indicam novamente uma divisão baseada no saber escolar. O imaginário que o catador tem acerca de si, como um indivíduo que não frequentou a escola, não sabe ou sabe pouco ler e escrever, o faz duvidar da sua própria capacidade de aprender ao ponto de assumir a negociação pelo seu trabalho. Em outras palavras, mesmo estando em x, condição de associado, na qual está recebendo capacitação para autogestão de seu trabalho, ainda não se desprendeu de y, condição que refere à sua vida antes do Projeto.

Esta SD incide ainda na imagem que o catador tem sobre a figura do negociador, ocupada pela equipe que o acompanha no Projeto53, que contata as empresas do ramo da reciclagem para encontrar a que paga o melhor preço, bem como na imagem que tem sobre os empresários recicladores. Há um questionamento: “como eu, alguém que não sabe ou domina pouco a língua, posso assumir esse trabalho de negociador feito pela equipe do Projeto, que é escolarizada?”, além disso, “como eu, alguém que não sabe ou domina pouco a língua, poderei negociar de igual para igual com os empresários?”

Também nesta SD, o catador direciona seu dizer para as questões do domínio da língua, já que ao final da carta (Anexo 1 – Carta 2) pede desculpas por não saber escrever, como se estivesse cometendo “um crime” por não dominar a língua domesticada, aquela da sintaxe, da morfologia e da fonética. Novamente aqui verificamos que o aparelho escolar se mostra um forte opressor, criando um estigma que faz com que o sujeito peça desculpas por seu ato “infracionário” contra a língua, que “só pode” ser escrita e falada daquela forma padrão, a escolarizada. O imaginário do sujeito sobre língua está presente na medida em que ao escrever a carta e sabendo que ela será encaminhada à Petrobras, pois faz parte de um sistema de acompanhamento, sente-se no compromisso de “avisar” que os erros são decorrentes de seu pouco estudo, ou seja, da falta de oportunidades. Isso é reforçado pela imagem de que as pessoas que lerão a carta têm domínio da língua dita culta e, diante disso, porque julga que está ferindo-a e precisa pedir perdão. Essas pistas não levam a entender que aqui temos o retorno da posição-sujeito lixeiro (PSL), já que circulam nesta SD saberes que estão ligados à forma-sujeito universal da FDC, como, por exemplo: o analfabetismo ou semi,

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A equipe do Projeto, em sua maioria, possui grau superior completo ou está cursando. A sede, denominada Cencor, fica localizada na sede da Unicruz Centro - Av. Andrade Neves, 308 - Centro, Cruz Alta.

a exploração pelos atravessadores e a imagem de que, pelo trabalho que realiza, não pode aprender, portanto não está credenciado a gerir seus negócios.

A SD 38 apresenta uma materialidade linguística que se aproxima da anterior. Nesta, o catador se desculpa novamente pelos erros, enunciando que sabe pouco escrever e segue, desse modo, na PSL. Assinalamos a recorrência do imaginário de que para usar a língua é preciso fazê-la da forma culta, do contrário, estaria “ferindo” um patrimônio do Brasil. É esse contexto de achar que não está autorizado a usar a língua, porque não frequentou a escola, que reforça uma divisão constituída pela língua, na qual o aparelho escolar funcionaria como um guardião, levando a que o catador se cale.

Diante das SDs desta FP, verificamos que, de maneira geral, o catador construiu um imaginário a respeito de aonde podem chegar e que cargos podem assumir, as pessoas que frequentam o ensino formal e aprenderam a língua domesticada. Caso que não é o dele. Nosso entendimento é reforçado pelas palavras de Althusser (1992, p. 80), que, ao demarcar o aparelho escolar como produtor e força de exclusão, destaca que os mecanismos relacionados à ideologia da classe dominante, isto é, o regime capitalista, são acobertados pela escola, tida como neutra e desprovida de ideologia. Desse modo, a escola é uma espécie de “ator” que tem papel principal na reprodução das relações de produção, preparando indivíduos para entrarem no mercado de trabalho e seguirem a ideologia dominante.

Sobre isso, Dorneles (2011, p. 38) nos traz que a língua deveria oferecer condições para que o catador, emergente a partir da economia solidária, se constitua como sujeito político. Entendendo que, mesmo sem dominar a língua padrão, possui condições de falar, de se manifestar, assumindo a gestão de sua profissão, bem como os rumos de sua vida, será ponto importante para sua constituição enquanto sujeito político. A autora enfatiza ainda que é justamente esse aspecto que permitirá a revolução, aquela que gera o litígio, a (des)ordem abordada por Rancière (1996, p. 41), pois isso refletirá no reconhecimento de que os catadores, na condição de emergentes, novos cidadãos, têm formas organizacionais de trabalho, habilitando-os, mesmo sem dominar por completo a língua escolar, podem, sim, se fazer ouvir, deixando desse modo de serem um grupo de invisíveis que produzem apenas um barulho.

Na próxima subseção das análises voltaremos as atenções para a família parafrástica 08, na qual reunimos SDs que apontam para a insegurança de estar sozinho e ter de tomar suas próprias decisões.

No documento 2014RubiamaraPasinatto (páginas 114-118)