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Constituição de sentidos no processo da reciclagem

No documento 2014RubiamaraPasinatto (páginas 125-129)

3.5 As matrizes do sentido no dizer do sujeito catador

3.5.10 Constituição de sentidos no processo da reciclagem

O desenvolvimento sustentável55 e a sustentabilidade56 têm integrado as discussões em torno do tema meio ambiente na contemporaneidade. Historicamente, o debate sobre a crise ambiental, que tem feito com que o ser humano venha se mobilizando no sentido de propor alternativas para que o desenvolvimento da humanidade prossiga, contudo sem agredir ao ambiente, teve sua origem na Conferência de Estocolmo, realizada em 1972.

Desde então, esses termos não têm feito parte apenas de discursos de governantes e de representantes de entidades ambientalistas, mas também, de modo bastante especial, de das políticas de responsabilidade social de empresas que usam os recursos naturais em seus processos produtivos. Uma boa parte da sociedade também já tem entendimento de que todos os seres humanos precisam dar sua parcela de contribuição para a preservação do meio ambiente.

Nesse contexto, a reciclagem tem se mostrado uma ação importante, pois, segundo Pinhel (2013, p. 23-24), envolve a reintrodução dos materiais recicláveis nos processos produtivos, os quais passam a servir de insumos para a produção de novos produtos. Em outras palavras, é dar uma “segunda vida” aos materiais que retornam no nosso dia a dia.

Para ilustrar o processo de reciclagem trazemos a seguinte figura:

Figura 4: Processo de consumo e reciclagem

Fonte: Adaptado de Magalhães (2012, p. 46).

55

Leff (2001, p. 66) afirma que o desenvolvimento sustentável não se limita a tornar compatíveis a conservação e o desenvolvimento, mas, sim, leva a pensar um desenvolvimento alternativo que integre a natureza e a cultura como forças produtivas.

56Segundo Loures (2009, p. 60), a noção de sustentabilidade vem sendo usada como ponto de partida para a

construção de um novo modelo de sociedade, capaz de garantir a sobrevivência dos seres humanos e da natureza.

Assim, o termo está ligado à questão ambiental, mas não se resume a ela, também está relacionado à cultura, à sociedade e ao próprio ser humano.

indústria Lixo/materiais recicláveis indústrias recicladoras

produtos catadores

recolhimento

separação negociação e venda

A partir dessa reeleitura de Magalhães (2012, p. 46), temos então a logística do processo de reciclagem, que, segundo Pinhel (2013, p. 23-24), implica cinco elos: o primeiro está relacionado à dispensa do material produzido pelos seres humanos; o segundo é a coleta seletiva, ou seja, o recolhimento nos locais onde foram encontrados, para que o terceiro elo aconteça, a triagem, separação, prensagem e enfardamento dos resíduos; o quarto elo envolve as operações de beneficiamento nas empresas recicladoras; o quinto e último é a reciclagem propriamente dita, ou seja, a transformação do material em outro.

Conforme o autor, o catador está presente em três dos cinco elos descritos. Temos o trabalho dos sujeitos de nossa pesquisa no recolhimento, no transporte dos resíduos até as associações para depois a separação e no enfardamento dos materiais. Nesse sentido, reunimos nesta família parafrástica duas sequências discursivas em que presenciamos a descrição do processo de reciclagem no dizer dos catadores.

Quadro 22: Família Parafrástica 10: Capacitação para a reciclagem

Matriz do sentido Estruturas linguísticas que remetem à relação parafrástica

“Capacitação para a reciclagem”

SD 45 - O trabalho dentro do galpão é muito bom. O processo

começa com a chegada do material, depois os catadores começa a

triagem e o processo de enfardamento. Depois de feito o fardo, é pesado e colocado no lugar dos fardos quando chega o dia da venda, é carregado os fardos no caminhão e levado para o comprador.

Catador 3, Catador 4, Catador 5, março de 2013.

SD 46- [...] nos catamos, trazemos para o galpão. Cada um faz os

seus fardos, pesagem. Colocamos as iniciais do primeiro nome

para não aver erro na viagem. Catador 12, julho de 2013.

Fonte: Elaboração da autora, grifo nosso.

Na SD 45 temos as regularidades começa com a chegada, depois [...] começa a

triagem e o processo de enfardamento, depois de feito o fardo, é pesado, as quais justamente

descrevem os processos elencados na cadeia de reciclagem. Notadamente o catador sabe passo a passo como deve realizar o trabalho, atitudes que passaram a ser melhoradas e algumas até adotadas a partir do ingresso no Profissão Catador. Isso porque entre as atividades de capacitação que tiveram a oportunidade de participar, aprenderam, por exemplo, que os plásticos não são todos iguais57 (copos plásticos – os que podem ser reciclados – são diferentes das garrafas pets e de outras embalagens plásticas; papel de revista é diferente de

57

Explicações repassadas pelos próprios catadores durante as entrevistas.

CAPACI

TAÇÃO PARA

A

RECI

papelão e de outras embalagens de papel) e a separação errada diminui o rendimento na hora da negociação.

Há diante desses enunciados nesta SD um imbricamento de dois discursos. Fundem-se o discurso do sujeito produtor, que segue um sistema, uma engrenagem própria da rotina da fábrica, de produção, de empresa, e o sujeito que recicla, separa, organiza para um aproveitamento maior da matéria-prima, ou da reciclagem. Então podemos dizer que ao repercutir o sistema produtivo no qual cada um é representativo de uma engrenagem, sistema criticado por Marx (1996a, p. 11), há um distanciamento da posição-sujeito reciclador (PSR) e maior aproximação com o sistema empresarial, o capital.

Esse cruzamento discursivo verificado nesta sequência discursiva incide no que Indursky (2000, p. 16) denominou de “fragmentação da forma-sujeito”. A autora ressalta que a ideologia não é idêntica a si mesma e, pelos mesmos motivos, a formação discursiva também é ao mesmo tempo idêntica e dividida. Em outras palavras, a FD não é algo fechado, por isso, seu domínio do saber pode ser invadido/perpassado por saberes que vêm de outras FDs, de outra forma-sujeito e de outras posições-sujeito. E ainda, se a FD é dividida, a forma- sujeito também pode abrigar a diferença, isto é, a ambiguidade, não sendo espaço apenas de uma PS, mas podendo dividir-se em número maior de posições. Desse modo, a heterogeneidade a que nos referimos não é apenas em relação à FDC, mas à FS da PSR.

Ainda nesta SD há marcas que apontam para os demais elos da cadeia de reciclagem, como o enunciado quando chega o dia da venda, é carregado os fardos no caminhão e levado

para o comprador. Cabe lembrar que antes do Projeto os catadores não tinham a chance de

acompanhar esse processo que foi discursivizado, já que muitas vezes acabavam vendendo na rua o material catado, assim não visualizavam a logística de seu trabalho.

Na SD 46 também temos regularidades que indicam para os elos da reciclagem. São eles: catamos, trazemos para o galpão, faz os [...] fardos, pesagem. Aqui novamente o catador descreve como trabalha diariamente, o que leva a compreender que assume PSR da mesma forma que na sequência anterior. Na materialidade enuncia que para não acontecer problemas de identificação com os fardos dos demais associados são colocadas as iniciais do

primeiro nome para não aver erro na viagem. Sobre essa situação precisamos ressaltar que os

materiais catados são vendidos individualmente, ou seja, cada um recebe por aquilo que catou. As divisões acontecem quando há doações ou no caso de o grupo participar de eventos, como, por exemplo, o Carnaval de Rua ou a Coxilha Nativista58.

58

Dois tradicionais eventos de Cruz Alta em que os catadores participaram realizando a catação, principalmente de latas das bebidas. Informações estão disponíveis em: <http://www.unicruz.edu.br/projeto-profissao-catador-

Desse modo, o discurso dos catadores nessas duas SDs indica que eles têm consciência de como o trabalho deve ser realizado, principalmente em relação às questões de separação dos materiais que catam. Contudo, isso não foi sempre assim, muitas de suas práticas mudaram a partir daquilo que aprenderam no Projeto. Nesse ponto trazemos reflexões sobre as questões ligadas ao aprender, retomando as discussões que fizemos em seções anteriores, como em 3.5.6 e 3.5.7.

O fato de ter aprendido como devem ser separados corretamente os materiais, garantindo mais ganho, e, assim, uma renda maior, remete-nos a Rancière (1996, p. 42). Pois temos aí uma quebra, um litígio na ideologia dominante do capital pela qual os catadores deveriam seguir desconhecendo os processos que poderiam valorizar seu trabalho, como a separação correta e, dessa forma, ganhando menos. Isso significa que mesmo não tendo sucesso na escola formal, ou seja, não dominando à língua da escola, marginalizados pelo aparelho ideológico escolar, conseguiram aprender outras coisas que estão lhes sendo preciosas para a vida, tanto no sentido de empoderamento financeiro como pessoal.

Precisamos ainda fazer mais uma reflexão, esta ligada à questão de que ao estar de posse dos catadores o “lixo” deixa de ser descarte e, ao passar pelo processo de reciclagem, ganha atributos de mercadoria: se levarmos em conta a definição proposta por Marx (1996b, p. 176) para mercadoria, que, de acordo com ele, precisa ter valor de uso e de troca, verificamos que a partir da utilidade adquirida pelos materiais recicláveis após serem conduzidos à cadeia de reciclagem pelos catadores, faz com que passem a ser origem de novos produtos, atribuindo a eles o status de mercadoria. Em outras palavras, recuperando o ponto de vista marxista, as coisas são ditas mercadorias por sua duplicidade, isto é, ao mesmo tempo úteis e veículos de valor. Assim, podemos dizer que o “lixo”, ao ganhar novo destino pelas mãos dos catadores, que o conduzem para a reciclagem, passa por um processo de ressignificação, deixando de ser algo inútil e produto de descarte para se tornar algo útil e com valor, o que permite que possamos dizer que esse processo de (re)aproveitamento também é perpassado por saberes capitalistas.

Na próxima subseção 3.5.11 dedicaremos atenção a um recorte em que foram reunidas SDs em torno do tema “União como potencial de força da categoria”.

fecha-parceria-com-a-liga-das-escolas-de-samba-e-secretaria-de-turismo-n8202.html> e

<http://www.unicruz.edu.br/integrantes-do-profissao-catador-irao-recolher-materiais-reciclaveis-durante-a-32- ordf-coxilha-nativista-n6408.html>.

No documento 2014RubiamaraPasinatto (páginas 125-129)