• Nenhum resultado encontrado

2.1 Redes sociais: conceito, teoria e métodos

2.1.2 As bases teóricas da Análise de Redes Sociais

Tönnies e Durkheim, entre outros, contribuíram em maior ou menor grau para a formação do conceito de redes sociais. Entretanto, as bases teóricas para o que se conhece hoje como Análise de Redes Sociais (ARS) foram postas por Georg Simmel (Cf. FREEMAN, 2004; WELLMAN, 1988; FONTES, 2012). Para este autor, a sociedade existe quando um certo número de indivíduos interage e o estudo dessas interações é ele mesmo o objeto da sociologia. É porque as pessoas interagem que existe sociação.

Para Mercklé (2004), Georg Simmel teria sido um dos precursores da teoria das redes, mas Fontes (2012) discorda, pois considera o sociólogo alemão não um precursor, mas “um autêntico fundador da disciplina Redes Sociais, construindo alguns conceitos e princípios metodológicos que ainda hoje são recorrentes entre os que trabalham com este campo disciplinar” (FONTES, 2012, p. 88).

Wellman (1988) observa que foi a partir da tradução do trabalho de Simmel para o inglês, no pós-guerra, que muitos pesquisadores norte-americanos puderam se familiarizar com o argumento simmeliano de que “as formas determinam seu conteúdo”. Em Simmel, as

formas são as interações sociais concretas e, os conteúdos, as pulsões, os interesses, as finalidades, tendências, desejos etc., tidas como necessidades fundamentais do ser humano.

Teria sido a partir do trabalho de Simmel que surgiu o interesse em saber, por exemplo, como o tamanho dos sistemas sociais, e os modos através dos quais os relacionamentos estão interconectados, constrangem o comportamento individual e a troca diádica. Em Simmel, o processo de sociação se dá mesmo que os indivíduos reajam às formas, mas não existe contradição entre ação e estrutura, forma e conteúdo. Uma constitui a outra, em uma relação dialética.

Como atento observador das mudanças trazidas pela modernidade, Simmel ([1903] 1979) enxergava um contraste profundo entre a vida na metrópole e aquela na cidade pequena e na vida rural, contraste este que impacta os fundamentos sensoriais da vida psíquica. Tal contraste estaria intimamente relacionado ao movimento e à velocidade, noções que vão influenciar a ideia que o autor tem de modernidade. Na pequena cidade e no campo, o ritmo de vida e daquilo que o autor chama de “conjunto sensorial de imagens mentais” flui de maneira mais lenta, de forma mais habitual e uniforme. Mais emocional, até.

Na metrópole, esse ritmo é cada vez mais frenético, de forma que nossos sentidos são impactados a todo momento, cada vez que atravessamos a rua, por exemplo. Haveria uma alteração brusca e ininterrupta entre estímulos exteriores e interiores, alteração essa que passa a fazer parte da base psicológica da individualidade metropolitana, causando o que Simmel vai chamar de atitude blasé, isto é, a incapacidade de reagir a novas sensações com uma energia apropriada, um “embotamento do poder de discriminar” (SIMMEL, [1903] 1979, p. 16). Na metrópole, significados e valores deixam de ser diferenciados e o indivíduo passa a reagir sempre com a cabeça, pouco com o coração. Mais razão, menos emoção. Em Simmel, o sujeito metropolitano é, portanto, caracterizado por uma personalidade intelectualizada e

calculista, revelando uma prevalência do intelecto sobre as emoções e, a metrópole, o lugar próprio da atitude racionalista ou blasé, aqui configurada como um mecanismo de defesa.

O movimento e a velocidade seriam, para Simmel, a fonte fisiológica da atitude blasé. A outra fonte seria a economia do dinheiro, que deixou a mente moderna mais calculista, reduzindo os valores qualitativos a quantitativos, pois “A técnica da vida metropolitana exige pontualidade, integração de atividades e relações mútuas em um calendário estável e impessoal” (SIMMEL, [1903] 1979, p. 15). Passamos a viver de forma reservada, desconfiada, o que “nos faz parecer frios e desalmados”. Segundo Simmel, seria a antipatia, a aversão burguesa ao outro, numa atitude de estranheza e repulsão mútuas (dissociação), que nos protegeria dos “perigos” da metrópole. Nas grandes cidades, os contatos inter-humanos seriam breves e escassos, pois o “espírito objetivo” estaria sempre se sobrepondo ao “espírito subjetivo” (SIMMEL, [1903] 1979, p. 23). Ideias como essas nos levam a inferir que, se antes (em Durkheim, por exemplo) a racionalidade era algo externo ao indivíduo, em Simmel essa mesma racionalidade pode estar dentro do indivíduo.

Interessante notar uma aproximação entre Simmel e Elias (1994b) quando este último fala em sociogênese, relacionada aos processos de mudança nas relações sociais, e

psicogênese, que seriam as transformações do comportamento humano e da estrutura psíquica

humana. Apesar de aparecerem como conceitos separados, eles estariam inter-relacionados e como tal precisam ser compreendidos. Na medida em que as sociedades foram ficando cada vez mais complexas, as pessoas foram sendo compelidas a regular sua conduta de maneira cada vez mais estável, diferenciada e reflexiva. O controle social se tornou mais profundamente entranhado na estrutura psíquica humana, sendo absorvido como uma função autônoma da consciência das pessoas (HUGUES, 1998). Desse modo, Elias argumenta que o processo de sociogênese e a psicogênese estão fundamentalmente relacionados.

Enquanto a sociogênese (Elias) ou a cultura objetiva (Simmel) se desenvolve, “os indivíduos se tornam, paradoxalmente, cada vez mais pobres e pouco cultivados” (SOUZA, 1998, p. 14)58

Seguindo esse raciocínio, a economia do dinheiro (SIMMEL, [1896] 1998a) teria substituído as antigas comunidades, como as corporações de tecelões (que integravam o ser humano por inteiro, desde os aspectos técnicos, sociais, religiosos, políticos etc.), por associações de caráter puramente técnico. Significa dizer que, nesta nova dinâmica, podemos entrar e sair de grupos sem nada perder de nossa personalidade, pois não haveria um envolvimento pleno como havia na corporação medieval. A relação é de impessoalidade, anonimidade, individualismo e independência.

. A separação entre as culturas subjetiva e objetiva seria, para Simmel, o fenômeno mais geral e característico da modernidade ocidental – uma fatalidade, ou tragédia, resultante da própria lógica interna do ser humano (Cf. SOUZA, 1998, p. 9-10). O domínio das coisas sobre as pessoas já havia sido apontado por Karl Marx, com a ideia de fetichismo, e por Max Weber em seu conceito de racionalidade orientada por valores e por fins. Simmel inova ao analisar os fatores estruturais e relacioná-los à vida cotidiana.

Simmel (1964) nos chama a atenção, ainda, para a possibilidade de pertencimento simultâneo a múltiplos agrupamentos, ainda que fluidos, momentâneos, que envolvem o ser humano numa teia de relações mútuas e dinâmicas – fenômeno chamado de interseção dos

círculos sociais ou, na teoria das redes, de multiplexidade. Tal experiência enriqueceria as

vidas individuais e aproximaria, na mesma extensão, os ideais de individualismo e coletivismo. Essa multiplicação de vínculos e relações seria, então, uma espécie de pré- condição para o surgimento da noção de indivíduo e, consequentemente, da ideia de que “o indivíduo pode possuir uma identidade própria, apartada da social” (SOUZA, 1998, p. 11).

58 Numa nota de rodapé, Souza (1998) fala de uma aproximação entre essa ideia simmeliana e a tese de “fragmentação do mundo vivo”, de Jürgen Habermas, como uma das patologias do mundo moderno.