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2.1 Redes sociais: conceito, teoria e métodos

2.1.3 Simmel e a ideia de círculos sociais

Simmel (1964) utiliza a palavra círculo como sinônimo de grupo, em uma analogia geométrica59

A coesão desses grupos, portanto, deixa de depender de fatores geográficos e de parentesco, e esses fatores são cada vez menos significativos quanto maior o desenvolvimento da sociedade. Simmel vai chamar esses círculos sociais secundários de “comunidades de interesse” ou “associações voluntárias”, substituindo o conceito de sociedade (Gesellschaft) pelo de sociação (Vergesellschaftung). Vamos procurar entender o por que desta substituição.

. Para este autor, o círculo social original é a família, formada por indivíduos que acidentalmente nasceram próximos. Além do parentesco, a vizinhança também seria determinada por critérios primários – no caso, proximidade geográfica. Posteriormente, cada indivíduo estabeleceria para si contatos com pessoas que estão fora destes dois círculos primários (família e vizinhança), porém relacionadas em virtude de uma similaridade de talentos, inclinações, atividades, interesses etc. Assim, formam-se grupos secundários baseados na racionalidade, determinados por um propósito (SIMMEL, 1964, p. 128), fenômeno característico de sociedades cada vez mais complexas.

Para Simmel ([1917] 2006, p. 15), sociedade é um conceito abstrato que significa “interação psíquica entre os indivíduos”. Interação esta que tem origem em impulsos e finalidades as mais diversas, tais como

Instintos eróticos, interesses objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa, ataque, jogo, conquista, ajuda, doutrinação e inúmeros outros fazem com que o ser humano entre, com os outros, em uma relação de convívio, de atuação com referência ao outro, com o outro e contra o outro, em um estado de correlação com os outros. Isso quer dizer que ele exerce efeito sobre os demais e também sofre efeitos por parte deles. Essas interações significam que os portadores individuais daqueles impulsos e finalidades formam uma unidade – mais exatamente, uma “sociedade”. (SIMMEL, [1917] 2006, p. 59-60)

Essas interações entre indivíduos podem ser duradouras, isto é, aquelas que já foram objetivadas em formas/unidades caracterizadas como Estado, família, corporações, igrejas, classes, associações etc., ou transitórias/fluidas/momentâneas, aparecendo em casos isolados, conscientes ou inconscientes, consequentes ou inconsequentes. A sociedade teria, para Simmel, um caráter funcional, no qual os indivíduos exercem influência e são influenciados ao mesmo tempo, isto é, a sociedade seria feita de relações mútuas e dinâmicas (uma das ideias-chave da abordagem de redes). Por isso, Simmel prefere falar em sociação, ao invés de sociedade. Sociedade seria apenas um nome para um círculo de indivíduos ligados e determinados mutuamente, enquanto que sociação seria

a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados –, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses, sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, casuais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana. (SIMMEL, [1917] 2006, p. 60-61)

Para Simmel, portanto, a vivência interativa com outros indivíduos – objeto da sociologia – é o que determina o ser humano. É neste sentido que “a sociedade é concebida como a interação entre indivíduos” ou como uma “ação recíproca entre indivíduos”, isto é, como sociação (SIMMEL, [1917] 2006, p. 33).

Não por acaso, os modos formais de comportamento dos indivíduos, considerados isoladamente, são os mesmos que encontramos nos grupos sociais, seja uma comunidade religiosa ou um grupo de conspiradores: “Dominação e subordinação, concorrência, imitação, divisão do trabalho, formação de partidos, representação, simultaneidade da união interna e da coesão perante o mundo exterior e outras incontáveis formas semelhantes” (SIMMEL, [1917] 2006, p. 34).

Entretanto, Simmel ([1917] 2006, p. 39-40) assinala uma diferença fundamental entre grupos e indivíduos: enquanto o indivíduo é transitório, o grupo é imortal. Os grupos conseguem descartar elementos importantes e ainda assim não se extinguem. Não apenas isso. Enquanto o indivíduo é habitado por sentimentos, impulsos e pensamentos contraditórios, o grupo social está convencido de sua orientação. Sabe quem é amigo, quem é inimigo, havendo uma discrepância menor entre o querer e o fazer, os meios e os fins. Já os objetivos seriam os mesmos, tanto para os indivíduos quanto para os grupos: sobrevivência, aquisição de bens materiais, desejo de ampliar a própria esfera de poder, defesa do que já foi conquistado etc.

Ao preferir trabalhar com o conceito de sociação, ao invés de sociedade, Simmel separa a mera agregação isolada de indivíduos das formas de estar com o outro e ser para o

outro, que segundo o autor pertencem ao conceito geral de interação. É isso que faz com que

cada indivíduo, ao mesmo tempo, gere efeitos sobre os outros e receba efeitos dos outros, ideia bem próxima do conceito de rede social como conhecemos hoje.

É possível, ainda, pertencer a diferentes grupos sem que haja conflito, pois, segundo Simmel, os grupos não se superpõem (um não anula o outro) e o laço com o grupo primário continua a existir – fenômeno que o autor chama de interseção dos círculos sociais. Tal experiência, diz o sociólogo alemão, enriqueceria as vidas individuais, fortalecendo o indivíduo a partir da diversidade de interesses existentes em cada grupo60. Além disso, o padrão de participação em grupos de cada pessoa é único. Mesmo que pertençam ao mesmo grupo, dois indivíduos vão pertencer a um conjunto de grupos diferentes, distinguindo-se um do outro em referência a esses grupos.

O pertencimento a múltiplos círculos sociais pode fortalecer o indivíduo e reforçar a integração de sua personalidade (…) o ego pode se tornar mais

60 Schutz (1979, p. 84), que faz uma distinção entre grupos “existenciais” e grupos voluntários, menciona a ideia de interseção dos círculos sociais em Simmel. O autor argumenta que o pertencimento simultâneo a grupos diversos pode, sim, levar a “conflitos na personalidade”, causados pelo esforço de atender à expectativa de desempenhar múltiplos papéis sociais, cada um correspondendo a uma parte de sua personalidade que é dedicada a cada um dos grupos que integra.

claramente consciente de sua unidade, quanto mais é confrontado com a tarefa de reconciliar dentro dele mesmo uma diversidade de interesses de cada grupo (SIMMEL, 1964, p. 141-142)

Segundo Simmel (1964, p. 162-163)., o pertencimento a uma multiplicidade de grupos implica que os ideais de individualismo e coletivismo se aproximam na mesma extensão. “De um lado, o indivíduo encontra uma comunidade para cada uma de suas inclinações e esforços que torna fácil satisfazê-los. (...) De outro, as qualidades específicas do indivíduo são preservadas”. O autor já realçava que cada grupo/associação possui suas regras, seus códigos de conduta, que em caso de transgressão o indivíduo sofre sanções cujo objetivo é controlar os interesses individuais, que não podem se sobressair aos do grupo.

Haveria, portanto, padrões de liberdade e de obrigações nos círculos sociais secundários, em alguns até divisão de trabalho, assim como nas famílias, nas guildas, nas comunidades religiosas etc. A diferença é que, nos círculos sociais secundários, o que mantém os indivíduos coesos é apenas um critério racional: solidariedade ou afinidade. Isto é, não há laços de parentesco ou de vizinhança, aquilo que os autores clássicos costumam chamar de comunidade de vida. Como observa Bauman (2003), contemporaneamente, as pessoas não nascem, crescem e vivem mais nos mesmos lugares, sem precisar “sair”, rodeadas sempre pelas mesmas pessoas. Por isso, defende o autor, as comunidades de hoje não seriam mais naturais – seriam produzidas, provocadas artificialmente a partir de desejos comuns.

Um aspecto interessante da ideia de círculos sociais em Simmel é que, quando o indivíduo pertence a uma multiplicidade de grupos, a relação entre competição e socialização varia. O indivíduo age e sente com outros, mas também contra outros. Em um grupo, ele tem a oportunidade de socialização e, em outros, de competição. Desconfiamos, contudo, que é bastante comum encontrarmos socialização e competição como fenômenos individuais simultâneos no interior de um único grupo, como indica nossa pesquisa de campo.

O conceito de círculos sociais em Simmel, talvez seja interessante colocar, aproxima- se da ideia de figuração desenvolvida por Elias (1994a, 1994b)61. Na sociedade de indivíduos, as cadeias que ligam uma pessoa a outras não são visíveis – são elásticas, variáveis, mutáveis, mas, nem por isso, são menos reais. Os indivíduos estariam enredados em uma teia infinita, móvel e dinâmica e a configuração dessa teia mudaria a todo instante uma vez que é resultado da interdependência entre esses mesmos indivíduos. Essa é a ideia de figuração em Elias. O autor recorre a uma metáfora para explicar como ocorre a relação entre os indivíduos: a rede de tecido.

Nessa rede, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto, nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente considerados; a rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. Essa ligação origina um sistema diferente, conforme seu lugar e função na totalidade da rede. A forma do fio individual se modifica quando se alteram a tensão e a estrutura da rede inteira. No entanto essa rede nada é além de uma ligação de fios individuais; e, no interior do todo, cada fio continua a constituir uma unidade em si; tem uma posição e uma forma singulares dentro dele. (ELIAS, 1994a, p. 35)

Para Elias, portanto, a sociedade não é a mera somatória de indivíduos e nem o indivíduo está de todo isolado, pelo contrário. Elias alerta que esse modelo, ainda que sirva para nos dar uma ideia de como uma rede de muitas unidades origina uma ordem que não pode ser estudada nas unidades individuais, é estático. Ele sugere que a rede deve ser imaginada como algo em constante movimento, “como um tecer e destecer ininterrupto”. Afinal, o indivíduo cresce como um ponto nodal “partindo de uma rede de pessoas que existiam antes dele para uma rede que ele ajuda a formar”.

61 Em nota de rodapé, Fontes (2012, p. 116) faz uma referência a Elias como “um autor aparentemente distante da perspectiva teórica simmeliana (mas ao mesmo tempo conhecedor e crítico de sua obra)”, que teria construído “um conceito bastante similar ao de círculo social”: a ideia de configuração (que aqui tratamos como figuração).

Na tentativa de resolver esse que considera “um dos problemas cardiais da sociologia” (o dilema agência/estrutura), Elias propõe um novo modelo no qual os seres humanos estão ligados uns aos outros numa pluralidade, isto é, numa sociedade. “É incomum falar-se em uma sociedade de indivíduos. Mas talvez isso seja muito útil para nos emanciparmos do uso mais antigo e familiar que, muitas vezes, leva os dois termos a parecerem simples opostos” (ELIAS, 1994a, p. 7).

E não são. No apêndice do primeiro volume de O processo civilizador (ELIAS, 1994b), o autor critica a análise dos fenômenos sociais a partir de pares de conceitos, isto é, de dicotomias. Defende que a relação entre indivíduo e sociedade não é de interpenetração, como se fossem duas entidades diferentes (ideia que está presente em Parsons, por exemplo), mas de interdependência. As pessoas devem ser vistas como Homines aperti, isto é, abertas, ligadas, interdependentes.