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As cidades patrimonializadas e o planejamento urbano “Este é um livro de ataque!”

Presidência Depto de patrimônio

5 A QUESTÃO AMBIENTAL NOS PROGRAMAS DE PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL

5.1 As cidades patrimonializadas e o planejamento urbano “Este é um livro de ataque!”

Com esta frase a jornalista e ativista norte-americana Jane Jacobs publicou em 1961 aquele que seria um dos livros mais importantes sobre o

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Com esta frase a escritora norte-americana “abre” seu texto para tratar da segregação social nos espaços planejados urbanisticamente nos Estados Unidos. Cf. JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 267.

planejamento urbano. Embora não fosse arquiteta e urbanista de formação, sua capacidade de observação do cotidiano urbano permitiu que a ativista das causas relacionadas às cidades escrevesse um livro-denúncia tão importante quanto ‘Primavera Silenciosa’140 publicado na mesma década de 1960 por Rachel Carson, sendo que cada uma com sua causa visando públicos distintos.

O livro de Jacobs (1961) promovia uma reflexão sobre o papel do planejamento urbano funcional no espaço urbano e sua indiferença às formas de vida cotidiana da população, já o livro de Carson (1962) provocou um intenso debate sobre o uso de defensivo químico e as consequências ambientais deste procedimento. Sem perceber, ambas estavam lançando no debate público importantes reflexões que terminaria por aproximaria a questão urbana da questão ambiental décadas depois.

Jacobs (2011) deixa evidenciado logo na abertura do seu livro-clássico que o “ataque” é em relação “aos fundamentos do planejamento urbano”. Segundo a autora, uma das razões da decadência (morte) das cidades americanas está nos planejamentos urbanos que não preconizam o que ela chama de “diversidade urbana” (parques, museus, escolas, ruas largas, espaços livres, hospitais, moradias, etc.). A crítica ácida da ativista era destilada contra um tipo de planejamento urbano ortodoxo que em seus projetos de revitalização das cidades, desconsiderava o óbvio, a dinâmica da cidade.

É a partir de um olhar mordaz que os planejamentos urbanos realizados no Brasil devem ser analisados. Isto porque nem sempre os planejadores urbanos conseguiram eliminar as segregações do espaço social e, em muitos casos, o “[...] planejamento foi usado como um instrumento a serviço da manutenção do status quo capitalista” (SOUZA, 2011, p.24). Hoje, sem dúvida, o desafio para os planejadores é muito maior, principalmente se for levando em conta a necessidade de se incluir no planejamento urbano temas referentes ao meio ambiente, às cidades sustentáveis e ao desenvolvimento sustentável, discussão inevitável desde que a questão ecológica se tornou um problema de agenda mundial.

No entanto, quando se aborda o planejamento urbano e seus desafios, é imprescindível entender que seu campo teórico é complexo e bastante heterogêneo. Pois, mesmo que a crítica ácida que Jacobs realizou contra uma sociedade urbana nos sirva de parâmetro para não acreditar cegamente nos planos urbanos oferecidos pelos especialistas do espaço, é inegável que os planejadores tecnocratas e comprometidos com o ‘status quo’ sempre tiveram que

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Nesta importante obra, a escritora e bióloga norte-americana Carson denuncia os danos dos pesticidas para a flora e a fauna nos Estados Unidos. CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa. São Paulo: Gaia, 2010.

conviver com os urbanistas “utópicos”, idealizadores, que vislumbrava no planejamento a capacidade de mudar os rumos de suas cidades tornando-as mais agradáveis para seus moradores.

Como dito acima, num momento da contemporaneidade em que se debate a questão ambiental como inseparável dos problemas urbanos, teóricos urbanos já se debruçavam sobre os rumos da cidade. Por outro lado, quando falamos de cidades com seus núcleos urbanos históricos e sítios culturais, as cartas patrimoniais já mencionadas no texto, exerceram um importante papel na reflexão acerca da reordenação do espaço urbano patrimonializado.

Porém, ao que parece, o grande desafio dos projetistas das cidades, que outrora pensaram a cidade seja visando incorporar a temática ambiental na vida urbana, seja objetivando assimilar a preservação cultural no conjunto do planejamento urbano dos grandes centros metropolitanos, é de articular os dois campos – cultural e ambiental – tendo em vista conciliar com a dinâmica da cidade e seu crescimento econômico.

Posto isso, é possível afirmar que tem sido este o maior estímulo dado aos programas elaborados pelo Estado visando à reabilitação dos espaços urbanos. Assim aconteceu nos anos de 1970 com o PCH e assim ocorreu com o projeto Monumenta e o PAC Cidades Históricas141, ainda que tenham sido lançados com o intuito de atender a uma demanda aparentemente específica de cidades históricas tombadas, podem ser abordadas como instrumentos urbanos de requalificação do espaço e estratégia de gestão.

Sobre o uso da temática ecológica na cidade e, sobretudo, no planejamento urbano, antes do movimento da Agenda 21 surgida com a Conferência da ‘Rio-92’ com seu discurso de cidades sustentáveis, já se debatia no seio da teoria urbana soluções para dirimir os conflitos entre a cidade e o meio ambiente. Nos fins do século XIX e início do século XX, por exemplo, a industrialização e o forte grau de urbanização fez florescer um tipo de pensamento ecológico na teoria urbana. Foi caso das cidades-jardim pensado por Ebenezer Howard idealizada a partir de uma cidade ecológica:

Existiu uma relação estreita entre o movimento pelas cidades-jardim, que floresceu das propostas de Ebenezer Howard em 1900 almejando conter, via implantação de cinturões verdes, o crescimento das conturbações, e a

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O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) surgiu em 2007 com o objetivo de executar grandes obras de infraestrutura no país. No entanto, em 2013, é criada uma linha de crédito no Ministério do Planejamento destinada para as cidades possuidoras de sítios históricos tombados pelo Iphan. Ou seja, o PAC das Cidades Históricas é instituído em 2013 e encontra-se vigente até hoje. Para efeitos desta pesquisa, o PAC das Cidades Históricas não é objeto de estudo uma vez que seu ciclo de existência ainda não se esgotou.

planificação regional de Mumford nos anos 1920 contra o transbordamento suburbano [...]. Desse modo, a cidade-jardim se baseava numa interpretação ecológica da cidade inserida no interior da sua região (ALIER, 2012, p. 218).

Portanto, como pode ser notada na citação acima, há mais de 100 anos atrás a discussão sobre a sustentabilidade das cidades já era tema de debate entre os urbanistas. E, neste mesmo período, surgem as primeiras ideias sobre um pensamento urbanístico a partir de uma noção de planejamento urbano. Atribui-se a Patrick Geddes142, um biólogo especializado em botânica, uma reflexão sobre a interação dos seres com a cidade. Conforme Choay:

A polística (planejamento urbano) é o ramo da sociologia que trata das cidades, suas origens, sua distribuição; de seu desenvolvimento e estrutura; de seu funcionamento interno e externo, material e mental, de sua evolução, particular e geral. Do ponto de vista prático, enquanto ciência aplicada, a ‘polística’ deve desenvolver-se pela experimentação, e tornar-se assim uma arte cada vez mais eficaz, suscetível de melhorar a vida da cidade e de contribuir para a sua evolução (CHOAY, 2011, p. 274).

Para Choay (2011), Geddes é o precursor do planejamento urbano uma vez que ele procurava entender os aspectos históricos e geográficos das cidades. Como pode ser observado acima, seu planejamento urbano (polística) consistia numa visão totalizante da cidade a ponto de pensá-la de forma sistêmica e holística. Do mesmo modo que pensou Howard sobre as cidades-jardim, Geddes em sua “teoria do planejamento” recomendou “planos detalhados para a construção de espaços verdes” nas grandes cidades de seu tempo (Choay, 2011).

Atribui-se a Patrick Geddes, também, o termo de conurbação, tão aplicado nos estudos urbanos, para designar uma extensa área urbana formada por duas ou mais cidades, entretanto, Geddes não viveu para ver surgir e crescer assustadoramente o fenômeno da metropolização (SOUZA, 2004). Fenômeno mundial, a metrópole é tratada pelos estudos urbanos como um desafio em virtude de tudo que ela representa. Sobretudo se levarmos em conta as metrópoles143 surgidas na periferia do capitalismo mundial, cujos problemas de uma

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Cf. GEDDES, Patrick. Cities in Evolution: an introduction to the town planning movement. Hard Press Publishing, 2012.

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Milton Santos (2008) é a principal referência no entendimento sobre a metropolização em cidades periféricas do capitalismo. Segundo Santos (2008, p. 282), “As metrópoles são um fruto da modernização recente dos países subdesenvolvidos por influencia mundial e / ou nacional. As grandes cidades latino-americanas anteriores à segunda revolução industrial não podiam ser consideradas metrópoles, se reservamos esta expressão para as grandes cidades que se irradiam sobre um vasto território e dotadas de uma importante gama de atividades

grande área urbana são agravados pelas mazelas sociais. Na literatura especializada, a metrópole pode ser entendida como:

A metrópole, que pode ser caracterizada como o espaço de concentração populacional, de riquezas, de tecnologia, de inovação, de difusão da modernidade e de possibilidades, justamente pela existência concentrada de atividades e serviços, é também marcada pelo aumento da pobreza, da violência, das formas precárias de habitação e, atualmente, no caso brasileiro, pela ampliação do número de trabalhadores informais que ocupam os espaços públicos para a reprodução da vida (ALVES, 2011, p. 109).

Além de tudo isso, a metrópole é um espaço onde se concentram problemas ambientais em decorrência da forte presença antrópica em sua área e, também, um espaço onde a representação dos bens culturais de uma sociedade interage nem sempre de maneira harmônica com a dinâmica urbana (RODRIGUES, 2011). E, neste caso, muitas cidades históricas tombadas pelo órgão oficial, encontram-se situadas nas regiões metropolitanas de seus Estados, acentuando ainda mais os problemas de preservação patrimonial e da conservação do meio ambiente.

Não obstante, a fim de resolver as questões urbanas, onde a problemática ambiental e a preservação do patrimônio cultural se somam as demandas sociais já enfatizadas, desde 2001 foi instituído o Estatuto da Cidade por meio da formulação da lei número 10.257/2001, que regulamenta a política urbana no Brasil a partir do princípio do planejamento participativo aspirando alcançar o desenvolvimento urbano sustentável (ABAKERLI, 2011). Considerando, portanto, que planejamento urbano é diferente de urbanismo, isto é, enquanto o segundo é uma “modalidade do planejamento urbano”, o primeiro é “[...] muito mais abrangente e corresponde a uma ação interdisciplinar” (SOUZA, 2011, p. 2017).

Na interpretação de Souza (2011), o planejamento participativo, uma vez adotado, tende a consagrar a racionalidade comunicativa144 habermasiana de planejamento urbano, pois é participativa e intersubjetiva, em detrimento de um planejamento burocrático associado

destinadas a satisfazer as exigências da vida quotidiana da totalidade da população nelas contidas”. In: O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos. São Paulo: Edusp, 2008. 144

O conceito de racionalidade comunicativa foi tratado na publicação, entre outros escritos habermasianos, no texto Consciência moral e agir comunicativo. Cf. HABERMAS, Jurgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

à racionalidade instrumental145. Com isso, Souza (2011) associa as práticas do planejamento participativo aos ideais da filosofia de Habermas levando em conta as características de um planejamento de tipo participativo, isto é, multifacetado em termos de visão, com ampla comunicação entre os atores sociais, integrado e voltado para o desenvolvimento com sustentabilidade. Habermas (2003) concebe o conceito de ação comunicativa a partir da ideia de intersubjetividade entre atores sociais diferentes cujo fim é de chegar a um consenso político na esfera pública.

A compreensão acerca do planejamento urbano se revela importante ao tratar-se de patrimônio cultural, uma vez que em relação ao patrimônio histórico tangível, as intervenções nos sítios urbanos requerem a participação social da população, pressupondo uma ideia de desenvolvimento para a cidade histórica e que possa ser realizado com sustentabilidade. Portanto, os programas de preservação visaram atender a esse ideário no campo do planejamento urbano.