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O Iphan: trajetória nas políticas públicas Preservação patrimonial e a questão ambiental.

4 AS PRÁTICAS INSTITUCIONAIS: PATRIMÔNIO CULTURAL E MEIO AMBIENTE.

4.1 O Iphan: trajetória nas políticas públicas Preservação patrimonial e a questão ambiental.

Em 1937, o Brasil vivia um período sui generis tanto pelas disputas políticas e ideológicas quanto pelo debate cultural em torno da construção de uma identidade nacional. Era inquestionável o papel do Estado como indutor da economia105, do mesmo modo que não se questionava a sua função como organizador na vida social dos brasileiros106. Diante de tudo isto, cabia ao Estado fomentar a política cultural do país107. Portanto, a partir deste quadro é instituído graças a um decreto presidencial, um órgão estatal cuja funcionalidade teria como competência a tutela do patrimônio cultural e natural do país, auxiliando na construção de uma narrativa de identidade nacionalista compatível com a mentalidade histórica dos anos de 1930.

Desta forma, é fundado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), através do Decreto-lei Nº 25/1937 visando “[...] organizar e proteger o patrimônio histórico e artístico nacional” (BRASIL, 1937, p.01), conforme indica o documento assinado pelo governo de Getúlio Vargas. O projeto de uma política cultural compreendia também a criação do Museu Nacional de Belas Artes e o chamado Livro de Tombo, onde seria inscritos os bens culturais de acordo com sua natureza. Neste caso, os livros de tombo foram divididos em quatro categorias:

a) O Livro de Tombo Arqueológico;

b) O Livro de Tombo Etnográfico e Paisagístico; c) O Livro de Tombo Histórico;

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Para entender os esforços do Estado visando inserir o Brasil no mercado mundial capitalista ver o clássico da historiografia: PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 287.

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Sobre este tema ver CARVALHO, José M. Em seu estudo sobre a concepção de cidadania no Brasil e, em especial, no Brasil dos anos de 1930. A ideia de uma “cidadania regulada” pelo Estado agindo para tornar harmônicas as relações entre as classes sociais no Brasil. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 115.

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A respeito do papel do Estado como fomentador da cultura ver CALABRE, Lia. No seu estudo sobre as políticas culturais no Brasil a pesquisadora aborda o surgimento do Ministério da Educação e, por conseguinte, o que chama de “processo de construção institucional do campo da cultura”. CALABRE, Lia. Políticas Culturais

d) O Livro de Tombo de Belas Artes e das Artes Aplicadas.

Assim, o patrimônio cultural passou a ser organizado pelo Iphan (antigo SPHAN), que agiu como ator social sistematizador do campo cultural produzindo conhecimento sobre o patrimônio, ao passo que se comportava como uma instituição técnica importante na validação das políticas públicas do campo patrimonial de acordo com os bens culturais inscritos a partir da divisão do livro de tombo discriminados assim:

Quadro 1 – Divisão dos livros do tombo do Iphan.

Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico - Onde são inscritos os bens culturais em função do valor arqueológico, relacionado a vestígios da ocupação humana pré-histórica ou histórica; de valor etnográfico ou de referência para determinados grupos sociais; e de valor paisagístico, englobando tanto áreas naturais, quanto lugares criados pelo homem aos quais é atribuído valor à sua configuração paisagística, a exemplo de jardins, mas também cidades ou conjuntos arquitetônicos que se destaquem por sua relação com o território onde estão implantados.

Livro do Tombo Histórico - Neste livro são inscritos os bens culturais

em função do valor histórico. É formado pelo conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no Brasil e cuja conservação seja de interesse público por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil. Esse Livro, para melhor condução das ações do Iphan, reúne, especificamente, os bens culturais em função do seu valor histórico que se dividem em bens imóveis (edificações, fazendas, marcos, chafarizes, pontes, centros históricos, por exemplo) e móveis (imagens, mobiliário, quadros e xilogravuras, entre outras peças). Livro do Tombo das Belas Artes - Reúne as inscrições dos bens

culturais em função do valor artístico. O termo belas-artes é aplicado às artes de caráter não utilitário, opostas às artes aplicadas e às artes decorativas. Para a História da Arte, imitam a beleza natural e são consideradas diferentes daquelas que combinam beleza e utilidade. O surgimento das academias de arte, na Europa,, a partir do século XVI, foi decisivo na alteração do status do artista, personificado por Michelangelo Buonarroti (1475 - 1564). Nesse período, o termo belas- artes entrou na ordem do dia como sinônimo de arte acadêmica, separando arte e artesanato, artistas e mestres de ofícios.

Livro do Tombo das Artes Aplicadas - Onde são inscritos os bens

culturais em função do valor artístico, associado à função utilitária. Essa denominação (em oposição às belas artes) se refere à produção artística que se orienta para a criação de objetos, peças e construções utilitárias: alguns setores da arquitetura, das artes decorativas, design, artes gráficas e mobiliário, por exemplo. Desde o século XVI, as artes aplicadas estão presentes em bens de diferentes estilos arquitetônicos. No Brasil, as artes aplicadas se manifestam fortemente no Movimento Modernista de 1922, com pinturas, tapeçarias e objetos de vários artistas.

Fonte: Iphan, 2018.

O quadro acima indica que o Iphan já era uma instituição com um raio de ação bastante abrangente no campo patrimonial desde os anos de 1930. Do mesmo modo é possível perceber que a ideia de patrimonialização não ficava limitada ao patrimônio cultural, mas, incluía-se a natureza como um bem suscetível a patrimonialização caso seu valor fosse considerado excepcional. A partir destas condições, o bem natural era inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Por outro lado, entendia-se a natureza como um bem não apenas seu caráter de espaço natural intacto a intervenção humana, mas, também, o meio natural que circundavam os sítios históricos das cidades tombadas pelo Iphan. Ou seja, dava-se importância na hora do tombamento, ao valor paisagístico que “emoldurava” o núcleo histórico.

Este é o caso de Olinda em Pernambuco, na Ata do Iphan de 1937, o Conselho Consultivo da instituição inscrevia a cidade histórica no livro de tombo descrevendo-a como um "conjunto arquitetônico e paisagístico”, cuja preservação deveria levar em conta suas “feições históricas e seus aspectos naturais”. A Ata daquele ano ainda ressalta os monumentos históricos que corresponderia ao conjunto arquitetônico emoldurado pelas belezas naturais do seu entorno:

[...] Monumentos = Palácio Episcopal de Olinda e Seminário de Olinda. Proprietário = Arquidiocese de Olinda. Relator. Senhor Marques dos Santos. Resolução: O conselho resolveu, por unanimidade de votos, julgar improcedente a impugnação ao tombamento do Palácio Episcopal e do Seminário de Olinda a fim de manter e tornar definitivo o referido tombamento das duas edificações, tendo também deliberado que sejam tomadas as providências necessárias para o tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico da Colina de Olinda a fim de preservar-lhe a feição

histórica e os aspectos naturais (IPHAN, processo 131-T, 1937, p. 02, grifos

Desde então, as demais cidades históricas seguiriam a mesma lógica do tombamento, isto é, a preservação dos monumentos históricos em interface com os aspectos naturais que a circundam. Como será abordado mais a frente, a natureza era tratada pelas primeiras práticas institucionais do Iphan, apenas como uma moldura, pois, o monumento histórico, em seu conjunto arquitetônico, era o elemento principal. Como pode ser notado na figura abaixo:

Figura 1 – Olinda: conjunto urbano inscrito no livro de tombo “Arqueológico, etnográfico e paisagístico”. Fonte: Arquivo Central do Iphan, foto de Pedro Lobo, 1981.

Em relação aos primeiros anos da instituição, com a abrangência de seu campo de atuação para a época, além de se ocupar com a preservação dos bens culturais imóveis, havia também a preocupação com os bens móveis e, os bens culturais oriundos das pesquisas arqueológicas, etnográficas, bibliográficas e artísticas. E, os já mencionados monumentos naturais e as paisagens. Para dar conta de todo este lastro criado na década de sua fundação, o Iphan lançou mão de seu principal instrumento de preservação: o tombamento. Instituído no mesmo decreto-lei com o que fora inaugurada o Iphan.

Capítulo 1

Do patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Artigo 1º - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens

móveis e dos bens imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

§ 1º - os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro livros de tombo.

§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela Natureza ou agenciados pela indústria humana. (IPHAN, 1937, p. 01-02).

Como pode ser percebido neste excerto, o tombamento atendia as expectativas de uma época. O patrimônio cultural de maior relevância para os padrões da década de 1930 se concentrava nos bens móveis e bens imóveis. Portanto, o tombamento108 era estendido, principalmente, aos bens de natureza física. Importante evidenciar a vinculação do patrimônio cultural a ser tombado com os fatos históricos relevantes da história do Brasil como faz crer o decreto. Ou seja, como foi apontado já no primeiro capítulo, o uso do patrimônio, seja cultural ou natural, atendia ao discurso ideológico de construção de uma identidade nacional na qual o Estado era o principal ator na produção desta narrativa. Logo, o tombamento excedeu o sentido de um singelo ato administrativo e burocrático de uma prática institucional, para se tornar um poderoso catalisador daquilo que seria relevante ou não para a identidade cultural brasileira.

O tombamento de um monumento histórico ou natural legitimava um discurso. E, de saída, atribuía valor109 a um determinado bem cultural ou natural que fosse considerado de “excepcional” valor nacional ou que estivessem vinculadas às glórias “memoráveis” do passado; como indicava o decreto-lei de 1937. Para além de um instrumento meramente burocrático, o tombamento transmitia uma mensagem forte acerca da identidade cultural ao decidir sobre o que deveria ser preservado. Conforme refletiu Fonseca (2009, p. 41), o “patrimônio tombado era mais uma forma de comunicação social” tão importante quanto os outros meios de comunicação que se dispunha à época.

A respeito do patrimônio como um discurso, Gonçalves (2015) envereda por uma abordagem na qual vê a ideia de perda como organizador de todo o sentido do discurso patrimonial. A “retórica da perda”, como ele designou o discurso de preservação patrimonial,

108

Cf. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em:

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Tombamento2.pdf Acessado em 03 de janeiro de 2019. 109

O urbanista italiano Giulio Argan abordou o valor cultural concedido a um bem ou um monumento no início das políticas preservacionistas na Europa. O núcleo histórico das cidades era tratado como uma obra de arte fruto do engenho humano. Portanto, o valor artístico era o critério que servia de parâmetro para a patrimonialização de um monumento. Cf. ARGAN, Giulio. História da Arte: como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes,

pode ser compreendido à luz da inscrição do conjunto arquitetônico e paisagístico a Colina de Olinda em 1938. Ou seja, preservar as feições históricas e os aspectos naturais, pois, subentende-se que a perda do patrimônio cultural e natural estava em vias de perda. O valor excepcional de suas belezas naturais e os fatos históricos memoráveis que encobrem Olinda justificaria seu tombamento em detrimento de outros núcleos urbanos históricos.

Entretanto, em sua longa caminhada, o Iphan instituiria novos instrumentos de preservação visando atender a crescente complexidade que seu campo de ação haveria de ter. Precisamente com o alargamento do sentido de patrimônio cultural ocorrido com o transcorrer das décadas e devido à introdução de novos objetos ao campo patrimonial. Novas abordagens sobre o patrimônio cultural impuseram inovação na prática preservacionista da instituição adotando novas categorias operacionais, incluindo a chancela da paisagem cultural, que no caso brasileiro, foi lançando por decreto em 2009.